sábado, 19 de dezembro de 2009

O viajante estacionário



Era um fim de tarde quando uma linda garota de olhos calmos, desconfiados, singelos, chamou a minha atenção para fora da janela do veículo em que nos encontrávamos. Havia uma espécie de estação de trem no meio do nada, não haviam nem mesmo trilhos, provavelmente um resquício de décadas atrás que foi mantido como patrimônio histórico. O que mais me intrigou foi a presença de um senhor trajado à moda antiga, aparentemente aguardando alguma coisa por ali.

Não me recordo bem quantos dias se passaram desde aquele dia, mas passei denovo por ali, desta vez sozinho. Ao me lembrar da tal estação, decidi espiar pela janela do ônibus. Tive uma constatação assustadora. Para minha surpresa, o velho ainda estava lá. Usando os mesmos trajes, com a mesma aparência, o semblante taciturno, o corpo firmemente postado no chão, assim como uma estátua. Senti uma pontada gélida na espinha. Ao chegar em casa, não conseguia tirar aquela cena da cabeça. O "viajante estacionário", era como eu o chamava em minhas introspecções.

Exatamente quatro dias depois, já era de madrugada e eu estava voltando de algum lugar que não me recordo bem, é até mesmo irrisório saber disso. Por pura curiosidade, decidi pegar a estrada que levaria até a tal estação. Não esperava encontrar o senhor àquela hora. Mas, aquela velha tendência de futucar a realidade, de saborear o absurdo quando só provamos do velho e rançoso cotidiano, me seduziu libidinosamente até o lugar. Pobre do absurdo, deve estar empoeirado. Entendam o absurdo, como aquilo que é insólito e transcende o que chamo de realidade pré-pronta.

Bom, a essa altura vocês já fazem uma idéia do que eu vi, ou melhor, de quem eu vi. O velho postado naquele mesmo lugar. Decidi descer do carro e pôr um fim naquilo que tanto me atormentava dia após dia. Enquanto me aproximava do velho, ele me parecia uma montanha, uma rocha gigante, antiga, mas polida pelo impacto ininterrupto da água, que com o passar dos milênios constroem um aspecto suave à superfície da matéria pedregosa.

- O que faz aqui a essa hora, meu bom senhor?

O velho dirigiu sua face, que estava mirando um trilho imaginário ou qualquer coisa do gênero, para mim. Quase que tão silencioso quanto uma pedra ele me respondeu: - O trem - o timbre de sua voz era como uma vibração sísmica, o núcleo da terra em prantos, dotado de uma melancolia típica dos eremitas do monte mais alto e solitário que poderia existir. Praticamente não se ouvia nada em sua voz, se tateava no vento. Ele mostrou um passaporte azulado com as seguintes palavras: "Lugar nenhum para algum lugar. Data e horário indeterminados do respectivo ano. Não aceitamos a devolução de sua paciência."

- Não passam mais trens por aqui há décadas. Essa estação está fechada há mais de quarenta anos!

Eu havia feito algumas pesquisas sobre o lugar. Não era mais viável para o governo utilizar-se dessa linha férrea, pois haviam outros meios mais eficientes de transporte que reduziam as despesas do Estado. Eles desmantelaram toda a linha de trem e preservaram apenas a estação, que não era tão grande assim e por isso não prejudicaria a expansão física das construções urbanas. Estávamos lá, eu e o velho, no meio do nada.

Ainda passei por ali algumas outras vezes e em um certo dia, o velho não estava mais lá. Não havia nenhum sinal do velho, provavelmente ele se cansou e voltou para sua casa, ou morreu em sua eterna espera e alguém levou o seu corpo. Talvez fosse apenas um louco que fugiu de um hospício, um velho que não tinha o que fazer, um aposentado entediado, um filósofo decadente, um budista de plantão em trajes não convencionais, um passageiro satisfeito de um trem invisível.

Desenhos do filme My Neighbor Totoro

I.B.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

O amor é torto


Imaginem uma mesa de bar onde estão sentados dois camaradas, ambos de sorrisos orgulhosamente amarelados. Um deles usava óculos escuros. Essa era a sua máscara. O outro, possuía cinco brincos divididos inexatamente em ambas as orelhas. Essa era a sua máscara.

Imaginem agora um bar repleto de pessoas, onde todo aquele burburinho era uma espécie de auto-afirmação do desinteresse das pessoas pelo que está além de seus próprios narizes empertigados em muco. O que quero dizer é, que apesar das pessoas e do forte cheiro de urina vindo do banheiro, não havia nada mais vazio, inodoro e silencioso do que aquele lugar.

Um deles estava entretido com a preparação de um cachimbo. Ele praticamente acariciava o fumo e cuidadosamente manipulava aquela matéria orgânica inanimada, que forneceria sua estaticidade vívida para aquele indivíduo. Aquela cena quase romântica entre ele e o fumo me fizeram imaginar uma trepada entre um ser humano e um cachimbo. Um cachimbo humanizado melhor dizendo.

O outro construía, em suas reflexões, pensamentos em impressões das coisas mais banais que faziam parte da sua vida. "...Vagalumes flamejantes se projetavam diante de mim pelo céu castigado pelas luzes da cidade. Ventava forte. O mar rufava ininterruptamente e provocava uma comoção interessante no bailar das ondas. Podia sentir o espírito ancestral levantando de seu túmulo cinzento. E eu fazia parte daquilo. Essa é a nossa herança do primitivo e meu espírito respondeu às suas carícias. O espírito enfim existe, só é uma questão de pá e terra."

Ambos em seus mais íntimos casos de amor. Amor pelo vício. Amor pelo idílio. Ambos orgulhosos e certos de seu amor.

-O que pretendem fazer com o Movimento?

-Na verdade, o Movimento (torto) tem mais uma pretensão de chamar atenção as pessoas de que elas, por mais que vivam em busca de um ideal, a vida em si, sempre é feita em pedaços, pois no meio do caminho, sempre vamos mudando nossas rotas e nos entortando sempre. E que por isso mesmo, não nos cabe classificar, nem condenar as coisas como certas OU erradas, pois as diferenças, elas se misturam em meio à realidade, e nem sempre fazer o bem necessariamente nos leva a ganhar o bem. Roosevelt falou que o torto não é nem jovem, nem velho. O torto é o que todo mundo sempre foi, com a diferença de que ele não quer se iludir que a vida é tão retilínea assim como nos ensinou e nos ensina, a igreja e o Estado.

-O torto, então, é o velho com alma de criança.É um humano legítimo.

-E também uma criança com alma de velho.

-Acho que almas velhas são pedaços negativos do universo, são muito certos de si. Nada pode ser certo de si.

-Almas velhas não são necessariamente certas de si. Pelo contrário, meu caro amigo. Retomando... Ao mesmo tempo que ele é esperançoso por saber que o mundo só se torna rico graças a diversidade entre as pessoas, ele é triste por saber que essa diversidade não passa de uma subjetividade e a subjetividade jamais vai atingir o ideal que sempre pensamos em querer alcançar. Nesse sentido o torto é desesperançoso por saber que o ideal é apenas uma máscara que colocamos na gente. Aceitar a subjetividade (esperança); ideal inalcansável devido à subjetividade (desesperança).

Um dos camaradas, com uma determinação típica de um boêmio e seus trejeitos, retirou de sua sacola uma garrafa de vinho. Vinho barato. E pôs-se a tragar.

-É a condição que temos de racionalizar as coisas. Pura abstração referencial. Sempre me incomodaram essas exatidões, essas noções do ideal. Desde pequeno a matemática me intimida. O ideal é o easy way para compreender as coisas, ou para conviver com elas sem surpresas incovenientes. É também uma faca de dois gumes (o que é gume? fio? lâmina?).

-O foda é que nem sempre nossa racionalização nos facilita não é? Por isso que inevitavelmente temos que nos entortar.

-Pegar a estrada de terra.

Fez-se um breve silêncio entre eles por alguns instantes. O suficiente para uma golada no vinho e uma tragada no cachimbo.

-Percebi que há muita divergência dentro do Movimento.

-O Movimento torto é um movimento que se auto-destrói - sorri. - Ele não dá certeza de nada. Ao mesmo tempo que procura uma, deixa claro o tempo inteiro que ele não é capaz de encontrá-la. Isso faz com que os próprios membros que aderem a ele, não cheguem a um consenso entre eles mesmos.

-Soa como os conflitos dentro do partido comunista russo. Socialista... Sei lá! Bom, a verdade é que nunca estamos certos de nada, não é!? Mas, eu acredito que existe uma essência, uma fagulha onipresente no espírito de todos nós que é imutável.

-Eu também acredito. É como eu sempre digo: estamos em uma mobilidade enraizada. Você acha que essa imutabilidade se chama deus?

-Não. Deus não está em nós, está Entrenós. É a cola, o plug, o espaço vazio entre dois grãos de areia. Aliás, queria te dizer aqui que eu tenho uma teoria.

-Qual teoria?

-Para mim todas as produções humanas, mais precisamente em termos de arte, são uma relação amorosa que o criador tem com todas as outras forças em ação ao redor do universo. O que compomos fala sobre amor e não-amor. Até mesmo essa discussão que estamos tendo. O que seria o torto senão um indivíduo que acima de tudo, ama mais do que tudo? Certa vez, Felipe disse que isso tinha outro nome... Não era amor em si o termo que ele usou. Mas, nomenclaturas diferem em quê? Só quero dizer que é algo semelhante ao caso de amor entre prótons e elétrons ou algo do tipo. Segundo a ciência, seríamos um aglomerado dessas partículas. O âmago de nossa constituição é uma relação de amor e não-amor.

-Interessante como você segura essa garrafa de vinho. Ela não vai fugir de você.

-Um dia ela pode fugir. Não subestime o que aparentemente não é dotado de consciência - sorri.

-É verdade, eu costumo dialogar com o meu travesseiro e ele sempre me foi silenciosamente simpático.

-Certo dia, perguntei a alguém: se Deus fosse um homem, como ele seria? A resposta foi imediata e quase instintiva: feio.

-Se tudo que nós criamos, fala sobre o amor; então deus não seria criação, uma vez que, se o amor é algo lindo, e deus é um feio, ele não estaria ligado por uma relação de amor?

-Quem disse que o amor é algo lindo? Você já tomou uma surra dele? O amor já cuspiu na minha cara, ele é egoísta, auto-destrutivo, o amor é torto!

-É torto, pois o amor, além de ser tudo isso que você falou, nós o buscamos por ele também ser belo, solidário e construtivo. O amor é torto por ele se construir destruindo, isso por que ele tem a virtude e o vício divorciadamente apaixonados entre si.

Levantaram-se do bar e saíram sem pagar a conta. Afinal, quem ia notar em meio a toda aquela multidão, dois indivíduos banais como estrelas cadentes em uma madrugada de domingo?

Pintura de Frida Kahlo

I.B. & Vina Torto

domingo, 13 de dezembro de 2009

O Véu

Encontrei um velho, certo dia, sentado na sarjeta com uma cuia na mão. Algumas moedas solitárias e de pouco valor tiniam e brilhavam naquele pedaço de lata, velho e amassado. Seus braços, tão finos, lembravam-me os frágeis gravetos caídos e esquecidos no chão poeirento de um fim de tarde de outono. Somente notamos a sua existência quando, pisando-os, os ouvimos estalar e quebrar sob os nossos pés. Tão frágeis...

Sentei-me a sua frente, observando-o. Sua cabeça pendia. Uma barba branca e imunda escorria-lhe por sobre o peito. Um odor nojento exalava do seu corpo. Lentamente, como se sentindo uma presença de outro mundo, levantou a cabeça. Admito, involuntariamente recuei alguns centímetros - ou imagino ter recuado. Seus olhos opacos, encobertos pelo véu da catarata, que insistia em turvar-lhe a vista, buscavam desesperadamente por uma luz, freneticamente saltando de um ponto escuro para outro.

Estendeu suas mãos trêmulas. Com algum esforço, aquele fino graveto sustentava a cuia de metal, suportando o peso inimaginável de algumas moedas baratas.

"Por que não se deixa morrer, Velho? Sua vida é tão desgraçada e miserável. Não vale à pena lutar por ela. Baixa essa mão. Joga fora essa cuia velha e as moedas que ali descansam, arremessa-as na sarjeta em que você repousa a sua cabeça todas as noites. Vai, deita, fecha esses olhos que de mais a mais não enxergam nada há anos. Morre de uma vez! Melhor que deixar sua vida escapar a conta-gotas."

"Estou tão cansado... Sinto que vivi centenas de anos, embora mal e mal tenha chegado aos quarenta e cinco... Tenho sono, um sono tão profundo que pesa sobre os meus ombros, me empurrando e comprimindo contra o chão. Penso em desistir. Mas, sempre que abro os olhos, vejo uma manhã tão linda! Iluminada e florida, cantorias por todos os lados. A dor some, o frio, a solidão... Permaneço eu apenas, e uma paz reconfortante como minha companhia."


"Talvez essa claridade toda seja o branco do véu que cobre os seus olhos. Tu és cego, Velho! Nenhuma luz emana dos seus olhos; nenhuma luz pode aí entrar..."

"Talvez... Sei que vejo, simplesmente."

Fui imediatamente tomado por um acesso de fúria. Chutei a cuia da mão do Velho e somei mais uma ruga naquele pedaço de metal frio e velho - tão velho quanto o Velho.

"Espero que você enxergue o suficiente para conseguir colher todas essas moedas desse chão imundo onde vive!"

Fui embora...

P.M.

domingo, 6 de dezembro de 2009

O Artífice do Cotidiano


Fruto da arte de um verdadeiro artesão, que com esmero talha cada linha e detalhe daquela paisagem que consegue enxergar apenas quando de olhos bem fechados. Obra erigida a partir do suor, da dor, do sangue, da paciência, do sacrifício... Não uma invenção, mas um construto: o cotidiano.

P.M.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Cambistas Ideológicos


Falar sobre jornalismo cultural hoje é como receber um cruzado de esquerda no queixo: nos deixa irremediavelmente atordoados. Primeiro por que há algumas décadas atrás essa categoria jornalística tinha um outro perfil, uma outra demanda por parte do leitor, que consequentemente está ligada às antigas relações econômicas em processo de maturação (modificaram-se intensamente no final da segunda guerra) e também às novas relações temporais e espaciais. Segundo por que esse termo, a meu ver, bastante irônico, se tornou uma espécie de zombaria, se formos considerar a maioria dos veículos que se propõe a publicar esse tipo de material.


Certo dia me deparei com o caderno “cultural” do jornal A Tarde, que é o maior jornal impresso do Norte-Nordeste, e fiquei pasmo com a qualidade do material. Refiro-me tanto a qualidade de seleção do objeto, quanto à qualidade de exposição de determinado objeto. Até lembro-me o tema principal desse caderno: casamento.


Começava com uma crônica nada interessante sobre a falta de compromisso do jornalista com a realidade brasileira. O texto tratava da apatia generalizada que circunda a sociedade, mas era de uma forma tão destituída de uma reflexão mais profunda acerca de um tema tão presente e complexo, que por vezes eu me considerava um chimpanzé em processo de alfabetização (com todo o respeito aos meus primos símios). Talvez fosse a intenção do “cronista” em destacar esse aspecto débil, dirigindo-o aos seus leitores. Sim, de duas uma, ou puro sarcasmo por parte do jornalista, ou uma brincadeira de mau gosto do atual cenário mercantilista a que estão submetidos os editoriais. Descarto a possibilidade de burrice congênita, já que o mesmo é considerado um grande jornalista. Bom, foi o que eu ouvi falar.


O restante do caderno tratava de temas puramente aristocráticos (adoro esse termo arcaico) e eventos direcionados ao mesmo público, as “douradas” páginas socialites. Abordava temas como viagens, moda e esse tipo de coisa ao qual chamamos de entretenimento. O grande problema é que eu não fiquei entretido em momento algum da minha interessada leitura. Bom, há quem fique, pois o jornal tem uma vendagem considerável. A problemática aqui é simples, eu não faço parte do público alvo (Bang! Bang!) dessa seção do material.


A seção de filmes, livros e agenda cultural, até cumpria com a sua função de semear elementos de aspecto cultural. Mas, se atém demais aos famosos Best-sellers e toda essa cultura mainstream, pop, ou qualquer outra alcunha a qual preferir. Espere um pouco, esse tipo de cultura não estaria mais atrelada à propaganda, publicidade e entretenimento do que a qualidade da obra (produto?) em si? Não me entendam a mal, não descarto qualquer produção do mainstream, só questiono a sua disseminação e a credibilidade de seu conteúdo sempre associado a uma imagem que pode mistificar o objeto real em questão.


Os críticos, resenhistas, ou como queiram chamá-los, se reduzem a meros outdoors, sem voz, pura imagem, convites alheios aos seus convidados, aos eventos a que estariam a anunciar. São as bilheterias de um grande evento, o cambista ideológico para a compra dos ingressos de um determinado espetáculo, só querem vender um produto de prateleira.


Outrora, o jornalismo cultural se preocupava em publicar um material de qualidade, como pudemos verificar na revista Senhor e diversos jornais como o Estado de Minas, na época (meados de 60), muito menos afetados pela demanda de grupos econômicos no tocante à publicidade e propaganda.


Hoje, não podemos negar que o cenário da informação adquiriu uma nova face. A tecnologia incrementou-se vastamente aos meios de comunicação, causou uma tremenda revolução nas relações tempo e espaço. Inevitavelmente as redações, os redatores, se especializaram em uma abordagem mais sucinta dos fatos, para atender ao imediatismo de um mundo que acontece simultaneamente em qualquer parte dele mesmo. Visualizem aqui uma sobreposição de fatos e fatos, uns sobre os outros. Um amálgama de informação. Uma outra perspectiva de espaço e tempo nos foi oferecida em uma bandeja no restaurante mais longínquo da Tailândia ou da galáxia mais próxima.


Verificamos agora, que o jornalismo cultural tem diante de si um leque muito maior de informação nos âmbitos da literatura, do cinema, da rede, do teatro, e pouco tempo para digerir toda essa informação. Muita diversidade cultural e ouso dizer, assim como o ensaísta Otavio Frias Filho, da Bravo!, uma deficiência no quesito riqueza (não me recordo o título do ensaio em questão). Mas, não me refiro à ausência de riqueza artística proveniente dos artistas como ele sugere, me refiro à abordagem com que a mídia trata dessas manifestações culturais e nos dá uma falsa impressão de que sabemos o que está acontecendo, quando na verdade o que vemos é só um percentual de quinquilharias selecionadas com algum interesse por trás. O mainstream influencia muito na produção artística vigente, é verdade, mas, a margem está ali em algum lugar. Eu não posso afirmar nada Otávio, mas pra mim a sua colocação foi tão “o rock já morreu”. Me desculpo se porventura eu entendi errado o que quis dizer em relação à pobreza artística (não costumo ser coeso e/ou coerente depois de tomar algumas), mas as coisas não são bem assim, como podemos ver. O problema todo é esse culto à imagem, ao que nos é de fácil acesso. “O essencial é invisível aos olhos”, basta procurar. Essa mania descarada do velho relegar o novo é puro conservadorismo e saudosismo há um tempo que não mais existe e mistificou-se no inconsciente do indivíduo. Devemos sim, nos espelhar nos pontos positivos dos nossos antepassados, isso é inegável. Mas, a partir do que temos em mãos, contextualizar nossas próprias experiências de forma inteligente e destemida.

Na Europa e até mesmo alguns países latino americanos o quadro cultural está superior ao brasileiro, em relação à qualidade do que se consome em termos culturais. Valorizam mais as obras nacionais ao invés da mania brasileira de valorizar a produção estrangeira. Tudo bem, estrangeiros são indivíduos sedutores, eu também acho. Mas, seria devido a marcas no inconsciente coletivo de um passado histórico marcado por submissão a que fomos/somos sujeitos há séculos, nos alimentando com essa tara erótica? Tenho um torto amigo psicanalista que explicaria melhor essas relações sado-masoquistas. Poupem-me de uma análise histórica e psicológica dessas relações sórdidas do cidadão brasileiro. O que questiono aqui é a problemática da indústria cultural no momento presente. A questão é: a culpa seria dos meios que nos injetam com essa cultura pré-selecionada, ou eles estariam realmente a mercê dos nossos interesses? Ou seriam ambos? Distinguir arte de mercadoria está cada vez mais difícil meus caros.


Gostaria de acabar com esse texto que a meu ver, infere um pouco do que falei nessas poucas e ás vezes um tanto desconexas laudas:


“Finalmente saiu daquele ateliê abafado e claustrofóbico. Exposição de arte. Arte proveniente de sua cabeça, de suas mãos, dedos, dedicação e o caralho a quatro. Havia uma moldura em branco na parede. Ninguém entendeu nada. Estavam concentrados e a expressão deles era de pura sabedoria, os entendidos. Uma criança não hesitou em dizer. As mãos de sua mãe não foram mais rápidas que sua boca e inocência(?). Inocência ou sinceridade? "O senhor se esqueceu de pintar esse quadro aqui." O artista baixou suas calças e cagou em suas próprias mãos. Jogou a merda toda naquela moldura em branco. Fedia."

Texto escrito por Igor Bacelar










domingo, 29 de novembro de 2009

Ateliê


Qual não foi a minha surpresa quando, ao atravessar a porta, me deparei com aquelas faces multicoloridamente pálidas.

"Quem são?" - não resisti à curiosidade.

"Minha mãe..."

"Todas elas?!"

"Sim, são várias minha mãe."

"Por que sua(s) mãe(s) está(ão) morta(s)?"

"Elas não estão mortas. Estão derretendo..."

P.M.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Barbituric Diaries (an insight in the brain)


There's a war happening right over our heads. I'm not being metaphorical, or making some sort of puzzle in this affirmation. I saw it once. Little creatures, sparkles of light, shocking furiously against themselves. It's a big army of homegeneous and curious forms of living things. I don't know what it means to us, but I know that they are in another level of existence. How can they interfere in our reality is still an Enigma to me. But I know one thing... We are just like photos after all! Now I have to make and intervention on this odd affirmation. I believe that our reality, our capacity of perception is incredibly primitive. We are in a lack of perception. We can't dive in the deepest depth of the cosmical ocean blue. The main character of a photography is not awared of the whole scenario that surrounds him. It can just look forward and forward, never beside him, behind him, over him... A photo is a two-dimensional object... The protagonist (main character) is a limited form of life that works over this simple condition of perception. We are functioning like this main character. Blinded by our senses... The essence (to us) is just an accidental stumble on the verge of the primitive way of absorb the reality. A brief insight. Yet, there's a war running between us fluently and unstoppably. Almost forgot... Look for the river flow, crying out inside your head. I don't know why, but I know no matter how, that it can teach us how to swim through the tissue of the essence of something that I'm not sure what it is. Fuck! I'm feeling weird in my stomach!

Some dude

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Surprise, You're dead


Eu morri há algumas horas atrás. Literalmente. Me lembro do último ressoar dos pneus no asfalto da madrugada. E ventava. E o frio... Se você é capaz de ler isso... estamos igualmente mortos. Você e eu. Eu e você. "You can't get away", excuse me Patton, from me.

I.B. and Mark Ryden as well

domingo, 1 de novembro de 2009

individualismo múltiplo (o descontínuo mundo de nog)

andava nog pelas ruas. e muitos nogs via. uma porção deles no ponto de ônibus. outros em mesas de bar, ébrios. e por mais que aquilo pudesse ser bizarro, eles todos estavam confortáveis com aquela situação. centenas de milhares de um mesmo. com os mesmos sentimentos e pensamentos. uma terra de nogs. houvesse quem pensassem que pensando igual se vai pra frente, e talvez fosse verdade. mas com nog era diferente. quando estava com sede, bebia toda a cidade. quando estava com fome, todos os nogs comiam. e quando chegava o sono a única coisa que se ouvia na cidade era o ressonante ronco de nog.

achava aquilo perfeito. a mais plena paz. mas, como a paz que é plena é também efêmera, ela se foi... foi-se em meio aos gritos de nogs que lotavam as praias. foi-se junto com o ecoante ronco dos estômagos famintos de nog. foi-se na música que nog cantarolava e fazia toda a cidade tremer, pois eram centenas de milhares de vozes simultâneas.

e faltou comida. faltou água. faltou lugar de lazer. cada nog achava-se único em meio aos outros, achava-se rei. e com isso cada nog passou a odiar todo e qualquer nog exceto a si mesmo. dava pra sentir na atmosfera, no ar, a eletricidade gerada numa troca de olhar. e o tempo fez-se tenso. muito tenso. nenhum até então havia agido contra outro, não fisicamente, sabia o que os outros pensavam, sabia o que todos pensavam.

mas um dia além de água e comida, além de espaço ou alegria, faltou também paciência. e no exato segundo em que isso ocorreu, cada nog avançou contra o próximo nog. simultaneamente. e no meio daquele pandemônio nog sentiu o golpe, a lâmina curta e fria. "maldito nog! me esfaqueou! MALDITO". mas quando olhou para o próprio ventre era sua própria mão que segurava, com muita força, o cabo da faca. lentamente aqueles milhares de nogs, e suas bocas que cuspiam sangue, iam ao chão. "o que eu fiz?"

Leonardo Nogueira

http://descomunog.blogspot.com/

sábado, 31 de outubro de 2009

Diálogo em Dm


-"There's a reason for the 21st century. Not too sure, but I know that it's meant to be."

-Sei lá... Acho que você está superestimando o universo. Essa coisa de sempre haver uma razão para todas as coisas. Razão é uma invenção do homem, e o homem nunca criou nada que já não houvesse existido.

-Como assim? Você quer dizer que o universo é tão ignorante a ponto de não premeditar as nossas ações e suas consequências? E o que quer dizer com essa tal não-criação?

-É isso mesmo que eu disse. Tudo que acreditamos ter sido criado pela mente humana, na verdade só foi tirado, como posso dizer, de uma cartola. É isso! A cartola cósmica.

-Não consigo compreender nada do que está dizendo. Aonde quer chegar?

-Dentro de cada um de nós existe um porão, sotão, uma passagem para onde estão todas as coisas. É de lá que as tiramos, enfim, resgatamos. Algumas chegam a ficar bastante empoeiradas, relegadas ao tempo. Pobres coitadas. Todas as coisas são parte da mesma matéria, transfiguradas pela não-matéria que recolhemos do outro lado.

-É como música que se cata no vazio no momento do processo criativo. Interessante essa sua colocação.

-Olhe lá do outro lado da vitrine. Por que todos estão olhando para nós, incrédulos?

-Deve haver uma razão.

-Sempre há.

"Somos feitos da matéria de nossos sonhos". Shakespeare

I.B.


quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Pós-Moderno


Finalmente saiu daquele ateliê abafado e claustrofóbico. Exposição de arte. Arte proveniente de sua cabeça, de suas mãos, dedos, dedicação e o caralho a quatro. Havia uma moldura em branco na parede. Ninguém entendeu nada. Estavam concentrados e a expressão deles era de pura sabedoria, os entendidos. Uma criança não hesitou em dizer. As mãos de sua mãe não foram mais rápidas que sua boca e inocência. Inocência ou sinceridade? "O senhor se esqueceu de pintar esse quadro aqui." O artista baixou suas calças e cagou em suas próprias mãos. Jogou a merda toda naquela moldura em branco. Fedia.

I.B.

A novela


Se bem me lembro, era o desfecho daquela novela. O desenlace de todos os dramas, onde seria decidido quem iria ficar com o mocinho, enfim, o ápice de todos os relacionamentos amorosos sintetizados em uma infeliz representação do que permeia as verdadeiras mutualidades entre os indivíduos. Todo aquele imaginário do que poderia ser e na verdade não é, seduzia libidinosamente aquele viúvo, pai de uma menina de dois anos.

Engraçado como desde pequeno ele vem construindo sua identidade moldado em simples quimeras. Sempre há o bem e o mal e nada entre eles, descarta a aura cinzenta que cerqueia os homens. A televisão também sempre o avisava sobre o momento em que ele devia sorrir, com as pequenas "deixas", as pausas que são sucedidas de gargalhadas programadas (isso se evidencia nos seriados americanos). Até isso foi pré-concebido para exigir o menor dos esforços daquele cérebro indolente.

Houve o intervalo para a propaganda, já não bastasse a sutilidade da lógica de consumo enlaçando cada discurso inserido nas relações entre os personagens e cenários da novela, as mercadorias enlatadas e sorrisos extraordinariamente brancos se espremiam pelo pouco que restava da massa cefálica do homem. O mais marcante era a ansiedade que ele expelia como gases pelo sofá. Sua ansiedade era merda no esgoto, e fedia tanto quanto.A propaganda surgiu bem no momento em que a mocinha iria revelar o seu grande segredo. O homem sentiu medo, angústia, excitação, prazer!

Do lado de fora só se viam as luzes da tevê. O restante estava apagado, mas não por consciência ambiental ou escassez financeira, era simplesmente para criar um clima de cinema. Afinal, era o episódio final daquilo que se tornara febre nacional. Mas, não quero falar sobre as consequências desse entretenimento sublimador em particular. Vou me ater a esse lar em especial, pois de alguma forma o que ocorreu ali me cativou de uma forma hilariante. Somos sádicos, eu sei disso. Por que nos sentimos fortes com o sofrimento dos outros. É a lógica do vale-tudo. Por acaso você nunca sorriu quando um amigo seu escorregou em uma poça e caiu de costas vigorosamente e ficou ali estatelado no chão? Conheço um cara que não, mas o exemplo infeliz é só para dificultar a relação entre o prazer e a dor alheia. Gosto de brincar com exemplos inúteis. A coisa vai bem além disso, essa tendência à auto-afirmação.

A novela reiniciou. Plástico. Olhos atentos, imóveis, concentrados. Só havia ele e a novela. Só havia novela e manequim. Só havia ele e a televisão. Só havia televisão e controle remoto. De repente, um choro de criança, de fome, de carência, de solidão, de amor. De repente, golpes repetidos de um controle remoto em uma cabeça frágil. Silêncio. A novela reiniciou.

I.B.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009


''As famílias felizes parecem-se todas; as famílias infelizes são infelizes cada uma à sua maneira.''

Liev Tolstoy

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

sábado, 3 de outubro de 2009

Bon Vivant


"Algumas horas depois de ter subido até o topo da montanha, não pude me segurar por muito tempo... Os braços me falharam e eu despenquei do topo do céu ao cerne da terra, rumo ao abismo". (...)

O jovem rapaz olhava concentradamente para os convivas. Todos estavam em um estado de euforia, desligados momentaneamente dos tubos que constituem a máquina social. Ele mantinha o seu olhar fixo no baile que se arrastava por toda aquela terra úmida da chuva que acabara de passar. As narinas estavam entretidas com aquele cheiro de terra molhada, misturado com o suor, com o vinho. Parecia estar a troçar de seus convidados, mas não era zombaria, era como se ele houvesse planejado algo que iria surpreender as pessoas de alguma forma. Sua introspecção não afetava em nada os dançarinos contagiados pela música dos pés na terra, dos corpos em contato muito íntimo, das goladas do mais saboroso manjar etílico, das tragadas nos melancólicos cigarros. Não havia música enfim, haviam vibrações abstratas, coletivas, havia relação humana bruta.

"My soul needs a cigarrette".

Pude perceber um melancólico pano de fundo por trás de tudo isso. Por que estaria o próprio anfitrião afastado da celebração? E o que estaria ele a celebrar? Ninguém teve a menor curiosidade de conhecer essas razões, apenas uma linda garota desajeitada de olhar singelo. A ela, preocupava o fato daquela tão querida criatura estar tão distante espiritualmente das outras pessoas. Pois, fisicamente estava ali sim, fitando cada expressão de cada rosto, de cada corpo, como se estivesse a fotografar, a registrar algo muito importante. Olhos examinadores, semelhantes aos de um estudioso em campo.

O sol estava prestes a se pôr, coloriu aquele lugar de um laranja peculiar, que refletia suavemente nas águas do rio, que passava nas proximidades. A garota foi até o jovem que sem perceber, legava ao vento o seu cigarro, que era tragado obstinadamente. Simplesmente sentou-se ao seu lado e ele lhe retribuiu com um sorriso tímido, acanhado. Levantou-se inesperadamente e segurando as suas delicadas mãos juntaram-se às outras pessoas. O jovem pôs-se a dançar. Algo meio peculiar, bizarro até, uma dança enérgica, de pulos e giros agressivos (como um tufão), que logo chamou a atenção de todos os outros. Imediatamente uma forte chuva atirou-se violentamente contra a terra. Como se aquilo fosse uma dança tribal, uma dança que rogava pela chuva. Ventos fortes empurravam avidamente as folhas dos coqueiros, cajueiros, das mangueiras, das alamandas, dos sombreiros. Os coqueiros se envergavam de tamanha a força que era empregada pela ventania, vinda da direção do mar. O impetuoso punho que a natureza emitia apenas reforçava toda aquela celebração. A relação ancestral homem-meio fora resgatada ferozmente, e havia uma sensualidade inelutável que se alastrava naquele momento singular.

Encarou por minutos a fio aquela garrafa que estava pela metade e despejou todo o seu conteúdo em sua boca, chegou a derramar por sua face e seu peito nu. Sabor de vinho seco molhando sua garganta, odor de vinho seco acariciando seus pulmões, e saiu. Momentos depois, apenas a garota sentiu a sua ausência e após um lapso auspicioso que a incomodava incitantemente, se retirou imediatamente do "olho do furacão" à procura do célebre celebrante. Saiu tão imperceptivelmente quanto o jovem rapaz.

Não durou muito até que o encontrou sentado ao lado de um buraco que se assemelhava a uma cova, cabisbaixo. Ele ergueu os olhos e pareceu surpreendido com o que viu.

-Não esperava que fosse você quem viria até aqui. Promessas...

-O que pretende fazer? - Ela se perguntava como que esperando uma resposta pré-concebida em suas próprias elucubrações - Por quê?

-Falta de perspectiva, curiosidade talvez. Compreendo que o céu é só uma promessa. Lembre-se que não existem coisas nobres, tais como a promessa no plano dos mortais. Se existe algo além desse plano, ignoro as possibilidades. Mas, gastamos tanto tempo existindo... Por que não inexistir? Não tem a curiosidade de simplesmente deixar de ser? Desde menino meu problema sempre foi essa tendência de averiguar as coisas, todas elas. Sempre mais perguntas do que respostas. Se fosse o contrário seria assaz insuficiente, não é mesmo? Decidi deixar de ser, com uma pergunta acompanhada de uma resposta. Por que não podemos dormir para sempre?

-Não vá - ela implorava soluçando, as lágrimas escorrendo de seus olhos encantadores, seu corpo a tremeluzir como uma estrela fraquejando aos poucos.

-Espero que me perdoe pelo que está destinada a fazer nesse momento. Realmente não esperava que fosse você a estar aqui em meu leito, mas você já demonstrava durante a festa, que seria a pessoa a carregar esse fardo. Eu tentei afastá-la das minhas meditações, eu tentei... Mas, existe uma parte sensível de nós mesmos que nos conecta de uma forma que não podemos compreender. Somos algo análogo aos recifes e corais, vários organismos que compõem um só. Mas, estamos irremediavelmente distantes, minha cara estrela.

-Isso que você vai fazer é errado. Há muito mais a ser vivido, a ser compreendido. Pare com isso! Não acredito que isso esteja acontecendo. Tem algo errado aqui- e olhando para o céu pôs-se a gritar - Faça parar!

-Sempre me perguntei sobre o que falaria quando chegasse esse momento. Temia que não pudesse ter a oportunidade de falar algo e depois de pensar muito eu me decidi o que deveria ser dito nesse desenlace trágico.

Havia uma xícara de chá vazia ao seu lado, a garota a fitou e pressagiou o pior. Havia um conteúdo anteriormente ali, naquele objeto, se não estava mais lá... Estava decidido. Ele havia ingerido daquela substância supostamente letal. Como que percebendo a expressão apavorada de sua última companhia, ele levantou-se entregando-lhe uma pá.

-Era cicuta. Já é hora.

A jovem queria sair imediatamente dali, chamar socorro, mas não conseguia mover as pernas.

-Quais são as suas últimas palavras?

O jovem rapaz depositou-se solenemente no buraco que havia cavado algumas horas antes e descansou seus olhos no céu. Até que enfim, se fecharam. A garota chorava baixo, mas tão vorazmente que fez com que as próprias árvores que ali se encontravam, choramingassem a própria seiva. Não havia notado esse absurdo, as árvores em prantos. Há tantas coisas ao nosso redor que deixamos de notar. Talvez aí nessas brechas da surdez do absurdo, esteja a música a tocar. O absurdo não é só o que não se espera, mas o que não se nota. Quase que inconscientemente, apanhou a pá que havia derrubado e despejou aquele monte de terra sobre o corpo. Me pergunto se o corpo seria a casa ou seria a prisão da alma. Onde estão os filósofos numa hora como essas? Casa, prisão. Prisão, casa.

-Quais são as suas últimas palavras?

Depois de ter feito o que lhe havia sido designado, seus músculos frágeis e exaustos a forçaram a deitar-se sobre aquela terra úmida, bem ao lado do túmulo de areia. Tudo o que ela queria naquele momento era dormir, simplesmente dormir. Mas não de cansaço. Não era sono, exaustão. Ela esperava que quando acordasse, o rapaz estivesse ali de volta. Queria acreditar que tudo não passava de um sonho. Para isso, ela achava necessário dormir. Seu corpo não tardou a aceitar essa proposta da sua mente irrequieta. O convite do vazio é sempre mais tentador. Dizem que quando recebemos uma pancada muito forte na cabeça, não devemos dormir. Será que acontece o mesmo para pancadas na alma?

Quando ela acordou, a cova ainda estava lá. Era cedo, a umidade do orvalho impregnava toda a manhã. Não pôde controlar o choro. E mais ninguém estava ali para dividir aquela dor. De alguma forma, ela se sentiu imensamente culpada de ter feito parte daquele velório excêntrico. Estimava tanto aquele rapaz... "Não esperava que fosse você quem viria até aqui", a questão que se desprendia de suas entranhas, quem era essa tal pessoa? O que signifcou toda essa celebração? Para quem? Essa pessoa estaria lá? Quem seria essa pessoa? A cova ainda estava lá e sono nenhum a fez dissipar-se. A cova ainda estava lá.


Pinturas de Mark Ryden

I.B.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Love Story


“Você já viu um coração de verdade? Ele parece um punho fechado coberto de sangue!”

Havia esse homem que passava todos os dias de semana pela mesma rua à noite, quase no mesmo horário. Era do tipo brutamontes, daqueles que o rosto revela uma debilidade intrigante. Um verdadeiro homem das cavernas em pleno século XXI. Seus olhos eram do tipo que nos incita medo, olhos de um homem violento. Provavelmente era aquele brigão do ginásio que se fudeu na maioridade. Um inculto! Quase todos os dias que passava por ali e alguém o encarava de alguma forma, era um pretexto para que ele surrasse as pessoas. Não poupava ninguém. Um dia os olhos daquela vizinhança aprenderam a se dirigir para diversas localidades que não fossem aquele corpo troncudo e aqueles olhos que expunham uma intrigante sede de causar terror. Um típico macho primata, nada mais e nada menos do que isso. "O macho demoníaco"( apenas uma menção do estudo de Richard Wrangham e Dale Peterson).

Porém, havia essa mulher que não deixava de encará-lo. Dia após dia, surra após surra. Ela aguardava ansiosa a hora que aquele homenzarrão estaria ali naquele mesmo lugar, prestes a enfiar-lhe as mãos em seu corpo frágil e repleto de hematomas. Ninguém compreendia o por que de ela se sujeitar a isso. Não faziam nada para impedí-la. Imediatamente começaram a considerá-la louca. Nada menos natural do que isso. Um dia ela mal conseguiu se levantar para aguardá-lo naquela mesma rua. Mas foi mesmo assim. As pernas bambas, os olhos inchados, escoriações por todo o corpo. Nunca deixava de esboçar aquele lindo e contagiante sorriso. Por incrível que pareça, não havia nada de triste naquela boca aberta expondo aqueles lindos dentes. Era uma mulher linda e graciosa. Não devia ter deixado de mencionar isso. Nesse dia, ele não estava lá.

Ela aguardou, aflita, desesperada, vazia como uma xícara de café tragada por um viciado em cafeína. Nervosamente esvaziada. Esperou, e esperou, e esperou... Até que um dia seu corpo não podia mais se mover, só lhe restara os olhos da mente, de uma debilidade intrigante. Não perdurou muito tempo naquele drama inane. Na última espiada de seus olhos para o mundo que estaria a abandonar, viu aquele macho corpulento se dirigir a ela e sentiu um pisão em sua cabeça, não sem esticar aquela linda boca afetuosamente. Ele calçava um coturno preto.

I.B.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Diário de Nog (páginas perdidas II)


Houve um tempo em que olhar para o céu noturno me trazia a visão de estrelas e preenchimento. Um espetáculo de luzes cintilantes de uma beleza indescritível. Hoje é apenas o espaço. Repleto de vazios e vazios. Infinitas léguas de uma estrela para outra. Apenas um silêncio enjoativo e breu. Breu.

A boca de lobo - Quarto fragmento

Rolávamos violentamente de um lado para o outro. Parecia um combate, a batalha que enfim definiria o resultado daquela guerra. O bafo azedo exalava por todos os cantos daquele quarto escuro, os rugidos inebriados se desenrolavam longe daquela timidez usual. Pouco importava o que pensariam daquilo que se procedia, pouco importava o que não dizia respeito àquele quarto azedo e úmido. A umidade que era proveniente do intenso esforço físico, dos poros. As mãos mais se assemelhavam a garras, as pernas se contraíam progressivamente conforme os dois se projetavam um contra o outro. Era tudo de uma ternura varonil, típica dos famintos e insaciáveis. E tudo acabou em sangue e fezes.

I.B.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

A boca de lobo - Terceiro fragmento

-Fico indignado quando um cara vem nos roubar... Porra! A gente rala pra caralho pra comprar as nossas coisas e vem um filho da puta e nos toma o pouco que conquistamos com o nosso suor! E pra piorar, ás vezes nos enche de porrada ou até nos mete bala até estourar nossos miolos proletários!
-Hum...
-Respeito aqueles que roubam bancos. Ali sim! Estão tomando aquilo que não afetará o homem cotidiano. Eu, você, sua velha... Esses não deveriam ser chamados de ladrões!
-Seria o que então? Revolucionário?

Éramos amigos. Amigos que despercebidamente passeiam em suas próprias mentes sem ao menos perceber, conectos que são. Dividir um pedaço de minha existência com ele, era como agregar para mim um pedaço maior daquilo que chamo de existência. Não dividíamos em suma, multiplicávamos. Mas o resultado era sempre indivisível. Éramos um. Não havia pudor em uma relação tão intensa quanto essa, apenas nudez. Nudez entre duas crianças. Um dia desses enquanto estávamos deitados sobre uma caixa d'água abandonada olhando para as estrelas e tomando uns tragos, ele meteu um cigarro direto no meu olho direito. Aquele calor era infernal, a dor indescritível, nem tive condições de fitar seu rosto silencioso que me encarava com uma indiferença perturbadora. Era como se uma rocha estivesse a me encarar. Não. Não tive a capacidade de fazer qualquer consideração acerca do que me rodeava. Era tudo eu, era tudo dor. Nessas ocasiões, primeiro vem o sofrimento físico, depois o sofrimento da alma. E agora, há tanto veneno em minha alma que as pessoas me confundem com um animal peçonhento. Tenho tanto veneno em minha alma que me tornei uma cobra.

I.B.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

A boca de lobo - Segundo fragmento

Não suportei ver a carinha daquele infeliz. Peguei a minha garrafa de vodka barata e taquei em sua cabeça. O sangue jorrou cabeça abaixo quase que imediatamente. Com metade da garrafa ainda em mãos, surrei novamente sua cabeça até que todo o vidro se despedaçasse em seu crânio. Não poupei nenhum pedaçinho da garrafa. Cheguei até a me cortar. Quando vi que o sangue que escorria em meu braço era meu, fui tomado de um frenesi que até eu me assustei. Peguei o primeiro paralelepípedo que encontrei naquela rua abandonada, quase que invisível, e arremessei contra seu tórax desprotegido. Foi penoso ouvir seus gemidos de intensa dor, até hoje não sei se o desgraçado bateu as botas. Mais penoso ainda foi ver a bebida escorrer em direção ao bueiro. Se não estivesse empapada de sangue...

I.B.

A boca de lobo - Primeiro fragmento

Atirei aquele cigarro que acariciava meus lábios e rasgava a minha garganta, sorvia meus pulmões. Ressequidas baforadas vieram em seguida, acompanhadas de uma tosse lancinante que mutilava minhas cordas vocais. O sangue escorria pela minha boca fétida, os dentes enegrecidos de sangue coagulado, a boca seca. As gengivas passaram a latejar, a pulsar como um ser com vida. Caí de joelhos sobre o asfalto esburacado. Havia chovido a pouco. Olhei-me na poça e não reconheci o que vi. Um líquido pastoso, de cheiro horrível e enegrecido pôs-se a gorgolejar agora das minhas entranhas, das vísceras. Os olhos amarelados de uma languidez ofensiva, esbugalhados, quase a saltar para fora das órbitas. Ainda assim, podía-se distinguir a pureza de suas matizes, intacta... Só fui estuprado por uma centena de maços!

I.B.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Caixa Preta


- O balanço se punha a oscilar hipnoticamente enquanto eu mal tinha tempo de compreender o que se passava. Sentia no peito aquele preenchimento que nos embriaga, sabe? Havia duas pessoas do meu lado. Um deles de sorriso cativante, daqueles que nos aquece a alma, o outro de uma gargalhada que beirava ao patético, mas uma pateticidade que nos remete à nobreza, entende? E foi um dos momentos mais felizes da minha vida. "E você estava lá. Você estava lá".

- Entendo. Fico imaginando como deve ter sido esse dia. Não há nada mais de que se lembre?

- Nao é necessário. Nada mais me é. Só precisava desse momento para me recordar das coisas importantes que o tempo levou. Decidi escolher justamente essa lembrança, pois ela me prometia um mundo vasto e destituído de dor. As outras estão no quarto empoeirado logo ali. Mas, nem por isso deixam de ser preciosas. Elas até me dizem mais.

- Não me atrevo nem a espiar pelas frestas. Me é doloroso fitar esse tipo de coisa.

- Você já amou?

- Não existe tal elemento em minha composição. Não há espaço para isso.

- Mas, você pode sentir dor?

- Minha dor chama-se inveja.

Eis que me acordo ensopado em suor. Meu corpo estremecia aterrorizado pelo que acabara de presenciar na minha inconsciência. Mas, que indivíduo mesquinho era aquele a dialogar com... não era comigo! Eu não via a mim naquele sonho. Não! Absolutamente não! Não pude ver a face daqueles que conduziam-me naquele diálogo. O que fazia eu lá? Nada daquilo me era familiar. Mas, aquelas palavras, "e você estava lá. Você estava lá", eram nitidamente dirigidas a mim. O que isso quer dizer? Quem é você? Me responda! Não me deixe a sós com essa dúvida assaz angustiante. Eu quero me lembrar! Não me fujam assim sem aviso prévio. E quem era aquele senhor a falar? Existia algo de grandioso naquele indíviduo. Algo maior do que a minha reles existência, mas de alguma forma, de uma carência mórbida, inexprimível. Quando vamos nos reencontrar?

I.B.

Nove dias

Duas crianças se encontraram certo dia, os olhares tímidos não escondiam a avidez de seus corações, corações inflamados de ideais e sonhos sob perspectivas alheias, que partiam de pontos diferentes e convergiam no mesmo ponto. Uma delas estava ansiosa para mostrar as belezas de seu lar, a outra para aprender o máximo que podia e regressar para seu longínquo país. O vento cochichava para as árvores enquanto eles percorriam as estradas úmidas e cantarolantes da terra onde o Sol dorme sobre. Ás vezes o silêncio se apresentava como um livro de milhares de páginas e as crianças continuavam a andar, contemplando cada pedaço de vida que ocorria naquele momento em todo o mundo. Mas para eles, em seu microcosmo, em seu jardim de mangueiras e cajueiros, todo o mundo se apresentava ali naquele instante, uma barreira impenetrável os protegia daqueles olhares examinadores e julgamentos mesquinhos que estavam habituados a conviver eras antes. As crianças foram felizes em um milésimo de segundo de existência, e os olhares tímidos e impenetráveis revelavam a dor da despedida. Mas eles sempre conheceram essa condição, tive que aprender a aceitá-la (embora nunca compreender). As crianças tinham uma outra vida para viver, em outro lugar, outros ares, cercadas pelos reflexos desfigurados do homem: as sombras. Estariam acolhidas em uma outra realidade, aonde seus corações inflamados, não passam de pulmões sufocados. Mas, cada um havia presenteado o outro com seu calor e com um pedaço do espaço. Toda vez que o pequenino anfitrião olhar para sua lua, ela estará olhando também. O mesmo céu em terras diferentes. E é isso que os mantêm ligados desde o início, através de seus olhos tímidos e gargalhadas vigorosas, nós sempre tivemos o mesmo céu...

“Verde”


10/08/07


Val

Tear me down

Tear me down 'cause I do flee my fellowmen
Tear me down for I have written in my skin
'Cause I'd better followed every words but yours
I'd like to know the right way for no love

Hold me tight with your censorship
When I fade away I use to bleed
My words are children of this
My poetry is tired now

Maybe when we pass away
We're gonna win all those days
When the love was a game
And all the feelings were deadly pain

Love was a game

I had to be so valiant enough to face up to the people blindness
I wrote myself a bible
But I didn’t spill my guts yet for you
I had this tuned in something minor

So hold me tight with your censorship
So I’ll try to keep a straight face
My words were children of this
This poetry is tired now

(...)

Felipe Maia

domingo, 6 de setembro de 2009

I could have lied

Deve haver algo
Na maneira como eu me sinto
Que ela não quer que eu sinta
Seu olhar cortante me despe
Eu não me importo
E daí se eu sangrar?

Eu nunca poderia mudar
O que eu sinto
Minha face nunca mostrará
O que não é real

Uma montanha nunca parece
Ter a necessidade de falar
Um olhar que compartilha tanta procura
O sentimento mais doce
Que obtive de você
As coisas que te disse eram verdade

Eu nunca poderia mudar
O que eu sinto
Minha face nunca mostrará
O que não é real

Eu poderia ter mentido, sou um grande tolo
Meus olhos nunca nunca nunca poderiam
Manter-se gélidos
Mostrei e contei à ela como
Ela me fisgou e estou ferido agora

Mas agora ela se foi, sim ela se foi
Uma profunda canção
Que não tardaria
Veja que ela se esconde por que está apavorada
Mas, eu não me importo
Eu não serei poupado

Eu poderia ter mentido, sou um grande tolo
Meus olhos nunca nunca nunca poderiam
Manter-se gélidos
Mostrei e contei à ela como
Ela me fisgou e estou ferido agora

Eu poderia ter mentido, sou um grande tolo
Meus olhos nunca nunca nunca poderiam
Manter-se gélidos
Mostrei e contei à ela como
Ela me fisgou e estou ferido agora

(Tradução de I could have lied do Red Hot Chili Peppers)

sábado, 5 de setembro de 2009

Olho de tolo (páginas perdidas)

Aqueles olhos imitaram os olhos que já se deitaram sobre os meus, e as pernas brincavam com as pernas alheias da mesma maneira com que prometeram-me seus gracejos. Eu funcionava meramente como um telespectador e só me restava o controle remoto. Para que continuar a mirar aquele espetáculo que só cutucava meu calo palpitante? Joguei fora a televisão! Pois ela perdera a genuinidade de que fora concebida. Os fatos passaram a se desenrolar visando uma exposição direcionada. Aqueles olhos são uma imitação de uma verdade há muito perdida. Mas, por que tinham que cantar necessariamente da mesma maneira? Será que eu fui incapaz de nadar em sua íris de matizes cintilantes? Acordo todos os dias com um bom dia invisível na beirada da minha alma. Asco! Asco! Asco!

Throw away your television
Time to make this clean decision
Master waits for its collision now
Its a repeat of a story told
Its a repeat and its getting old

São as vozes que ecoam na minha cabeça. Muitas vozes ecoam na minha cabeça. No divã só nos resta um momento de estaticidade dinâmica. Daqueles provenientes de algo que não se fabrica nas suas engrenagens nervosas. Isso não é saudável. Estender-lhes a face a cada milésimo de segundo, sendo bombardeado por granadas. Empunhei meu coquetel molotov como um bom guerrilheiro que sou e afundei-lhe a cara! Ops! Aonde foi aquela poesia toda? Parem de me dizer o que fazer! Por mais sincero que isso pareça! Vocês são meros demônios e demônios se desfazem como poeria em um vendaval. Espalham sua composição suja por aí. Um dia vocês se calam seus malditos mal amados!

Renegades with fancy gauges
Slay the plague for its contagious
Pull the plug and take the stages
Throw away your television now

Oh, lindo alfarrábio de alcunha feminina. Só posso amar-te agora. Mas quando folhear-lhe as laudas até a última delas... Não terás nada a me dar? Um dia te deixarei em uma portaria para alguém mais te amar. Vou vestir-lhe o corpo castanho e esconder-lhe as inscrições douradas. Não quero que inveja sintam de tua couraça. Oh, lindo alfarrábio, onde estariam teus cachos?

Estava dentro de uma cápsula hermeticamente lacrada. Imaginava uma situação nostálgica. Todas as nuances de um dia que se foi apareciam diante de mim. Não ouso repetir as palavras que me lembrei, mas ainda pulsam. Adoro cheiro de carne viva. Me banhe em sangue, sangue meu. Só tolero sangue. Meu. Ouvi um doce assobio, mas não era de um pássaro. Era tão distante... Não podia responder-lhe. O gás começou a ser expelido por canos que haviam em todos os cantos. Não tive tempo nem de...

Alguém

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

A dualidade do mar (o abraço)


Certa vez olhei para o mar
Quão belo ele é
Quão nefasta é a tua beleza
Certa vez disse em súplicas
Me abrace
Me abrace
Me abrace

I.B. (devaneios etílicos)

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Diário de um jornalista (!?) sóbrio


Dia 29/05/09.


Cheguei em cima da hora como de costume, e dos quatro que já deveriam estar ali, só avistei um deles. Meus camaradas também não eram do tipo pontual. Ficamos sentados em frente à emissora, aguardando a chegada dos outros enquanto vislumbrávamos aquela avenida ensandecida. Carros, motos, bicicletas, carroças, pedestres, em uma densa batalha que inevitavelmente terminaria em um evento potencialmente jornalístico. Tudo isso por uma migalha de segundo em suas correrias cotidianas. Ah, o tempo! Não estaríamos lá para ver. Nossos camaradas começaram a chegar.


Uma integrante do grupo (eram três homens e duas mulheres) havia marcado uma espécie de entrevista com um tal de Cleomar Brandi ou qualquer coisa do gênero (viria a descobrir depois, que é uma figura muito importante no cenário jornalístico aracajuano). Para o nosso infortúnio, ele não havia chegado e nem chegaria. Bom, de qualquer forma, conseguimos acesso ao interior da emissora. Não me lembro bem o que levou o segurança a nos deixar passar, talvez o fato de mencionar o nome do tal Brandi ou até mesmo a despreocupação em deixar cinco meros estudantes terem acesso livre ao recinto. Deveríamos procurar uma mulher que respondia pelo nome de Gabriela.


Encontramos um sujeito que fora um companheiro de umas e outras quando eu era mais novo. Na época em que ter uma banda de rock e uma garrafa de vinho era o suficiente para ser feliz. Coincidentemente, era primo de uma das garotas do grupo. Além de me tragar para tempos quase imemoráveis, não pelo tempo que se passou desde então, mas, pela quantidade de álcool que sublimou essas lembranças, o sujeito nos indicou o prédio da redação onde estaria a tal Gabriela.


Adentrei o prédio acompanhado pelos outros estudantes, e como não havia ninguém, aparentemente, para nos receber, arrisquei chamar alguém de dentro de uma sala de onde podíamos ver o que se passava interiormente, através de um painel transparente. Fomos recebidos por um cara que à primeira vista estava surpreso com nossa aparição repentina. Logo em seguida, a tal Gabriela veio nos receber. Era uma moça jovem e simpática que usava óculos de bordas escuras, bem joviais, e de sotaque paulistano. Daquele tipo de pessoa que estaria em uma reunião de amigos, regada a um bom vinho e música alternativa.


Naturalmente, explicamos a razão de estarmos ali, queríamos saber como funcionava uma redação de jornal de mídia televisiva, e ela era a chefe de redação. À primeira vista, me decepcionei com a ausência daquele caos estereotipado e muito provavelmente realista, típico de redações de jornais. Mas, como ela bem disse, “hoje é sexta feira”. Eu não sabia que notícias tiravam férias. Muito provavelmente os repórteres, pauteiros e todos os organismos que desempenhavam suas funções para a execução daquele jornal, estavam muito ocupados no momento. O que careceu de intensidade, vida, naquele ambiente que ainda assim, exalava um leve odor de informação. Fresca.


Nosso encontro foi fundamental para nos situar na realidade daquela espécie de jornal, que era ainda mais interessante, por ser de uma emissora subsidiada pelo governo, tendo um direcionamento de enfoque mais cultural e informativo do que a maioria das mídias. Já que não depende de insumos publicitários (no quesito venda de produtos). Claro que com suas limitações de verba e seus inúmeros problemas estruturais, que a meu ver, contornam com bastante competência.


Lembro-me muito bem do aviso não tão caloroso acerca do mercado de trabalho para jornalistas em Sergipe. Foi a Gabriela quem nos alertou de que temos um dos piores pisos salariais do país, sem contar que não há muito espaço nesse mesmo cenário amarrotado em (perdoe-me pela expressão) excremento! Mas, já era de se esperar. É que a verdade dói mais quando é dita.


Visitamos até mesmo o setor de documentários, onde havia uma quarentona de ar jovial e cativante que nos deu uma explanação acerca de como funcionava esse departamento. Apesar de tudo, não estávamos satisfeitos com essa nossa primeira visita. A moça salientou que seria muito mais interessante entrarmos em contato com o tal do Cleomar Brandi.


Dia 01/06/09.


Depois de um suco de goiaba e um pastel de queijo, acompanhado pelo rapaz pontual que bebia apenas um suco de mangaba, vi um carro entrar na emissora, guiado por um senhor grisalho e meio calvo. Estava convicto de que ele seria o nosso próximo entrevistado. Apenas uma das garotas havia aparecido nesse dia. Decidimos entrar o quanto antes.


Estávamos lá aguardando em um sofá da recepção, quando aquele mesmo senhor que vira alguns minutos antes, saía da ilha de redação sentado em uma cadeira de rodas, segurando obstinadamente um celular e portando um maço de cigarros em um de seus bolsos. Ele se dirigiu a nós com um olhar bastante acolhedor, e seu semblante de alguém em seus sessenta e poucos anos, dava lugar ao de um rapaz, que mesmo tendo vivido inúmeras experiências, não deixara o tempo lhe tomar seu entusiasmo. Aquele jovem senhor transpirava um conhecimento que só podia ser obtido através da leitura de uma porção de livros, o que condiz com a forma com que ele nos expôs seu conhecimento acerca do mundo jornalístico. Era tão natural e transparente o seu discurso, que me peguei imaginando que estávamos sentados à mesa de um bar.


Ele é um dos fundadores da emissora no estado, viera da Bahia com esse objetivo e se encantou tanto com essa terra que decidira ficar por aqui, como ele mesmo fez menção. Também é o diretor de jornalismo dessa emissora e produtor de um jornal escrito. Exerce a profissão de jornalista há tanto tempo quanto uma vida e meia minha. Algo tanto engraçado, quanto intimidador de se constatar. Ah, o tempo! Vez ou outra alguém interrompia a nossa descontraída conversa para informá-lo de alguma emergência, ou fato que ocorria, e ele sempre tinha a palavra final. Já pude sentir a partir daí, aquela pressa e ansiedade de um ambiente em que se tratam notícias. Fervendo.


Ele falou algo sobre ser ardiloso na obtenção de entrevistas e de possuir fontes e mais fontes. O sujeito respirava jornalismo, escutem o que digo. Até mesmo uma mesa de bar pode ser um verdadeiro acervo de informação, segundo ele (e fora a impressão primordial de nosso diálogo ali, naquele sofá). E era o que fazíamos ali, sentados em uma espécie de mesa de bar, bebíamos daquela fonte grisalha e calva.


Segundo Brandi, os estagiários que ali ingressavam, são avaliados através de uma simples redação, muitas vezes mal escritas, como ele colocou. Afinal, o instrumento de um jornalista seria o que senão palavras? Disse que os estagiários executam todas as funções possíveis dentro do jornal, e trabalham como verdadeiros jornalistas. Para saber se um soldado está realmente preparado, envie-o para um campo de batalha. “Quem trabalha aqui, está preparado para trabalhar em qualquer lugar”. Isso se verifica tanto em termos de recursos reduzidos, quanto em multidisciplinaridade de cargos. “Pobres estagiários”! Ou seria, ricos estagiários.


A entrevista deu no que tinha de dar. Nosso anfitrião voltara apressadamente para sua labuta diária. Deixara de ser um camarada na mesa do bar, para voltar a ser um atarefado chefe de redações em um piscar de olhos. Não será através dessas poucas “laudas” que exporia todas as impressões que tive acerca desse dia bastante proveitoso, mas uma coisa é certa. Não é só nas ruas que uma migalha de segundo vale muito, os próprios jornais são movidos a esse tique-taque nervoso, purulento, desvairado... Notícias, tempo. “Um dia deveria ter mais de vinte e quatro horas”.


I.B.


terça-feira, 4 de agosto de 2009

Perfume e Gozo


Não sei se deveria chamar de ingenuidade a incapacidade que uma criança bem novinha tem de distinguir certas coisas tão nítidas para os mais "maduros" - mais vividos ou vivedores talvez sintetizasse a palavra maduro melhor. Quando estão ao telefone falando com algum ente querido, presumem que gesticular um "sim" e um "não" são suficientes para dar a entender quem está do outro lado da linha. Entendo muito bem, deve ser de uma confusão muito grande assimilar que alguém está em algum outro lugar como aquele, real, material e não na própria linha do telefone. Da mesma forma, quando possuem um binóculo e encaram nitidamente uma pessoa que está a metros de distância, deduzem que suas palavras possam ser ouvidas claramente como se aquele indivíduo estivesse ali cara a cara com eles. Até compreendo a dificuldade que deve ser analisar as coisas através dessa perspectiva um tanto curiosa. Compreendo a incompreensão desse neófitos pois, esses se deparam com um mundo moldado por homens, ao contrário de suas naturezas primárias, brutas, selvagens, que antecede o homem por si só. Os pequeninos acabaram de deixar o útero do indizível e ingressaram na maculada morada do essencial dizível. O que se toca, vê, cheira, e obrigatoriamente tem que ser nomeado ou não faz sentido algum. Essa humildade imanente dos bebês é esbofeteada pungentemente.

Um certo príncipe me falou que o essencial é invisível aos olhos e certamente ouso acrescentar que é também inaudível aos ouvidos. A mudez é de sensibilidade muito grande e de difícil acesso. É preciso estar nas entranhas do mundo para deleitar-se em suas vinhas. Arrisco dizer que ela por si só antecede o sonoro. O silêncio é a voz das profundezas, do cerne da vida, da selvageria, do irracional, é o que realmente é por si mesmo e nada pode ousar comunicar-lhe a manifestação. Infelizmente os bebês são infectados no momento em que põe sua cara infeita no mundo, tendem a berrar e expurgar o silêncio ancestral de seus pulmões. Quando fazemos preces a algum Deus, necessariamente obtemos uma resposta muda e muitas vezes esse "nada" é encarado como vazio. O que é vazio senão ausência de alguma coisa? Ausência de voz. O vazio é a ausência de voz de um Deus incerto. E o contrário do vazio? Seria Deus em si mesmo? O silêncio é em si mesmo. O paradoxo entre o todo e o nada é indizível. Sentir é a solução para nós humanos, é a nossa verdade absoluta, mas para isso temos que renunciar a visão, os ouvidos? Renunciar a nossa humanidade?

Estou a sós com uma pessoa muito íntima e trocamos murmúrios quase insonoros, não queremos acordar alguma coisa que está a espreita, alguma coisa de uma virilidade irrecusável. O que dizemos é mera reprodução do que se sente no momento que se sente. Desconhecemos a profanidade das palavras, mas temos consciência de que elas estão logo abaixo do que não conseguimos dizer e apesar disso ás vezes elas soam tão belas. Imaginem o quão belo não deve ser o que não se pôde dizer. Não sei se o que nos preenche naquele momento é o absoluto, ou o absoluto é o que nos provoca essa sensação. O absoluto é o que antecede todas as coisas? Ou que a todas elas se sucede? O sussurro é de uma sensualidade avassaladora, é a tentativa de emudecer e comungar com o primordial infeito, a nossa parcela mutável e ainda assim intocada. Pois, o primordial está em fase de composição, mas também acabou de ser composto. O que antecede é música.

O momento em que duas pessoas se entrelaçam e trocam seus olhares mudos, seus sussurros mudos, seus sabores mudos, seus toques mudos, são passeios sorrateiros na fronteira do que se é. O que não é parece estar entorpecido naquela intermitência que subverte a natureza do que se afastara da natureza . O que seria o gozo então? A ingenuidade da criança que chora quando é concebida pelo ventre materno? O gozo seria a mudez que se pronuncia de forma audível? É o muito que reproduzido é um retrato pouco do que se não manifesta no mundo material. Mas será que nossa couraça apreende tudo quanto nos pode ser remetido? Somos mais que couraça, mas ainda obsoletos em relação ao rufar dos tambores de todas as coisas e não coisas que habitam e inabitam o universo e o desuniverso. Por que o intervalo de todas essas coisas não nos é apresentado. Não são suficientemente opacos para nossos olhos de gente. Existe um silêncio entre dois grãos de areia, um vazio agregante, eu quero estar entre eles, mas querer é pouco demais. Tudo é de uma magnitude ínfima quando se parte do pressuposto de almejar algo. O indizível só acontece uma vez e é destituído de expectativa. E na minha ignorância de algo que vive sem saber que vive o que vive, quero estar entre os grãos, por que foi lá que me disse certa vez que estaria.

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Escrito em algum lugar de Junho ou Julho.

Pintura de Mark Ryden.

O mundo perdido de Nog Parte-II

"You can only know yourself when nobody knows you."

Nunca entendi bem essa afirmação, embora foi a primeira coisa a qual pensei antes de lhes contar o que ocorreu. Claro que existem uma série de razões para reprovarmos certos aspectos negativos das relações sociais, eu mesmo tenho muito desse veneno correndo em minhas veias, mas, muito do que sei (ou tudo) foi conquistado através de uma série de trocas sociais. Sei que sou ,pois existe um outro que é. Sei que sou mal, pois existe um indivíduo que não o é. Meras convenções que preenchem o copo vazio que fui. Não! Não fomos vazios. Como pude me esquecer das predisposições? O que seriam elas? Será que existe uma consciência independente? Ou somos um cassino orgânico onde todas as possibilidades do que me é, sejam meras "jogadas probabilísticas"? Adoro como soa essa teoria.

Vou contar-lhes uma pequena história antes de tentar retratar o infortúnio do pobre Nog. Uma simples história, pois as simples histórias nos falam mais. Estão fora de moda, mas, são indiscutivelmente irredutíveis (por serem simples). Não existem arrodeios. Ela é o que é. São um retrato da vida... Não! A vida pode ser apreciada a partir de tantas óticas contraditórias... São os olhos que a complicam. É simples, porém tantos olhos a olham que sua primitividade é despercebida. A vida só é simples quando ninguém percebe-se inserido nela. Histórias simples são como cagar na privada ou cortar o cabelo que está lá por sete anos sobre o seu crânio, simplicidade irredutível. Aposto que arranquei algumas risadas através dessa afirmação minimamente escatológica. É como cagar, pois nascem de um impulso natural do gênero humano: o de contar histórias. Alguém já ouviu falar de Deus? Oh, me crucifiquem. Podem me chamar de cético, mas entrego-lhes de antemão que não o sou.

Já ia me esquecendo da história. Perdoa-me meu caro Nog, eu chegarei lá. Juro que serei lacônico. Aliás, que isso sirva como uma prévia do que contarei em breve. Pois bem, havia esse rapaz que andava pela mata. Estava embrenhado naquela selva inóspita acompanhado por seu pai. Se afastou um momento para aproveitar um pouco das sensações do mundo selvagem a sós, quando achou uma cobra visivelmente destacada sobre a restinga. Esqueci de dizer que o rapaz era sozinho, não era de muitos amigos. Gastava horas e horas conversando com objetos inanimados e animais em sua infância. Aliás, seu camarada preferido nos tempos de esquizofrenia saudável, era um botão de uma camiseta que caíra certa vez. Quão encantador, não é mesmo? Belo espécime!

Conversou horas a fio com a cobra. Estava tão entretido com aquele diálogo...Sentiu simpatia por ela. Eu particularmente discordo quanto a cobra ser o retrato do demônio nos escritos bíblicos. São criaturas magníficas. Sua dança hipnotizante, a sensualidade... Quem disse que isso é sinônimo de malevolência? Seria o bote? O veneno? Homens também o fazem e com primorosidade. A chave da questão deve estar no fato de elas se rastejarem. Preciso ler a bíblia ou reavaliar a questão por um ponto de vista histórico. Talvez houvesse um indície inumerável de vítimas por picadas de cobras no período que compuseram o livro.

Sem mais delongas...

O rapaz estava tão entretido com a conversa, que mal percebeu a imobilidade do réptil. Seu pai o surpreendeu (involuntariamente) naquela clareira e nem percebeu o que se desenrolava. Estava descuidadamente despreocupado, desatento ao que não fosse a vastidão daquela planície. Sequer se deu ao luxo de ouvir o que se passou. O rapaz calou-se imediatamente. Seu pai foi até a cobra e a pegou em suas mãos, "olha, essa acabou de trocar de pele. Um pedaço inofensivo de velhas escamas agora."

I.B. (na ociosidade da noite)

Diário de Nog (páginas perdidas)

Acredito que estão conspirando contra mim. É como se o mundo todo estivesse envolvido em um complô. Mas eu não me recordo de ter feito nada contra ninguém. Não me recordo de ter ameaçado nenhuma instituição... Não posso ser vítima por saber de menos! Apenas vivi. Muito menos do que sempre imaginei que poderia. Só não consigo aceitar que as pessoas a quem eu amo estão relacionadas a uma brincadeira de mal gosto como essa. Nenhum indivíduo merece tal reclusão. Nenhum! Sei que isso não é um sonho, mas é tão surreal o que está acontecendo comigo. Pareço um personagem de um livro, forçado a estar em uma situação extraordinária para que a vida seja avaliada a partir de uma perspectiva singular ou até mesmo óbvia. Seria eu, mero instrumento de iluminação para aqueles que de mim sustentam suas fantasias e convicções? Seria eu um louco a pensar dessa forma? Dada a situação que me encontro... Existem duas saídas possíveis: enlouquecer ou aceitar.

Escrito em alguma tarde brasiliense, entre 20 e 31 de Julho.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

O mundo perdido de Nog Parte-I

-Hoje à noite haverá uma festa lá nas docas. Será inesquecível, Nog.
-Podem confirmar minha presença lá.

Meteu a mão em seus bolsos e pôs-se a caminhar chutando as latinhas que haviam espalhadas naquela calçada suburbana. Não havia muito a se dizer sobre aquele dia. Era um dia comum, de pessoas comuns, com uma história comum. Nog já estava habituado a isso. Na verdade, quem não está? Existem dois tipos de pessoas: as que estão e as que não estão. Creio eu, que a segunda categoria é a daqueles poucos, aqueles que pulsam, que sofrem, que vivem. Mas, o restante faz o que então? O restante já cansou disso ou nem teve a sensibilidade para captar a "mundanice" diária. Nog se cansou há muito tempo.

Meteu a chave na fechadura e abriu a porta do seu apartamento. Dividia o seu "lar" com seus pais e irmãos. Quando estavam todos reunidos, aquilo era um verdadeiro caos, um pandemônio. As relações familiares eram sempre acompanhadas de intrigas e discussões, mas apesar de todas as infelicidades, Nog tinha orgulho de dizer que ali era a sua casa, o seu abrigo das tempestades, das intempestividades. O lar é o refúgio do homem, seja ele onde for.

Só precisava comer a refeição que sua mãe havia preparado algumas horas antes e pegar o metrô para seu trabalho improdutivo. Nog fazia alguns bicos para uma empresa pequena de propaganda. Fazia os serviços mais insignificantes que você pode imaginar. Não teve uma educação tão boa, mas não por falta de oportunidade, mas por preguiça. Certa vez, me deparei com um questionamento acerca do espírito humano que era o seguinte, "é medo ou preguiça que inibem o crescimento do gênero humano?'' Não consigo ver de outra forma: Nog é um preguiçoso.

Não quero prolongar demasiadamente nesses pormenores, pois quero apresentar-lhes esse caso insólito. Tudo começou...

I.B. (após um surto epiléptico)

Mãe


Os estilhaços estavam espalhados por todos os lados inclusive nos corpos das pessoas. O fogo se alastrava para todos os lados e se insinuavam para mim. Sentia um cheiro horrível de carne queimada enquanto recobrava meus movimentos. Cheiro de morte. Não sabia ao certo o que havia acontecido, mas podia ver que o vagão onde eu me encontrava fora arremessado a centenas de metros dos trilhos. Não havia muito tempo para que o cheiro de carne queimada fosse a ser o meu próprio, então me levantei.


O choro ecoava por todo o vagão, mas era daquele tipo que não vem de nossas gargantas. Choro das entranhas, choro de dor pungente. Era um bebê. Encontrava-se firmemente seguro contra o peito de sua falecida mãe. A mulher fora atingida por uma placa de metal bem na cabeça e provavelmente sucumbiu tão rápido quanto tudo aconteceu. Foi tudo tão rápido quanto um piscar de olhos e ainda assim abraçou firmemente o seu filho. Éramos os únicos sobreviventes desse acidente.


Foi complicado desvencilhar a criança dos braços enrijecidos da mãe, mas consegui. No momento em que o retirei de seus braços tive a impressão de que ela abriu os seus olhos e os direcionou à mim obstinadamente. Estavam arregalados e pareciam me analisar minuciosamente. Senti um frio desconcertante na espinha, mas me apressei em tirar a mim e o pobre orfão com vida daquela fornalha rubro-cinzenta. Mesmo de costas enquanto me afastava em direção à saída, pude sentir seus olhos me seguindo, sua presença.

Nog abriu os olhos e a luz do dia o cegou. "Mas o que era tudo aquilo?"
I.B.

(essa é a capa de uma edição do famoso livro de Górki)