sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Breves Impressões: Karvan, Membrana e Turdus Philomelos... Anavantou (no Museu da Gente Sergipana)!

Sob as tranças de um jereré gigante se desenrolava um espetáculo inusitado. Poderia até chama-lo de excêntrico, mas, as definições linguísticas da palavra a associam demasiadamente ao estranho, ao esquisito. Pois, o que se passou debaixo daquela rede enorme de pescar siris não tinha nada disso. Era familiar e íntimo. Milimetricamente encaixado como dois amantes no fulgor de sua paixão.

Meu pai vez ou outra pescava siris no mangue utilizando-se de um jereré, pedaço de rede preso a um aro, de formato cônico, mencionado no parágrafo anterior. A versão gigante que habita o pátio do elevador do Museu da Gente Sergipana não capturava crustáceos. Sorvia em seu interior alguns artigos característicos da cultura nordestina dispostos por um artesão.

(A teia tecida por um aracnídeo global, por um pescador sentado pacientemente na esquina do universo)

A metáfora perfeita para aquela orquestra composta por nove homens que percorriam majestosamente o piso liso do salão rodeado de palmas extrovertidas e nádegas preguiçosas pressionadas contra o plástico e o chão. Além de algumas dezenas de pernas notáveis desfilando um ar de autêntica brasilidade naquela junção de algum canto da Bélgica com algum canto do Brasil. Oras, cantarolantes, oras em murmúrios tímidos e atentos.

Muito longe de terem sido tragados para as preliminares auspiciosas de um panelão escaldante, o jereré capturou o que há de mais gracioso em suas patas plurimetamórficas. O acordeão proveniente da europa reencontrou-se com seu filho prodigioso sobre o agreste verbalizado como bandeira por Pedrinho Mendonça, discípulo de grandes percussionistas brasileiros como, por exemplo, Naná Vasconcelos.

A acústica não era lá essas coisas. Havia espaços indesejáveis que provocavam a evasão das ondas sonoras e de alguns pontos do local não era possível ouvir bem alguns detalhes da apresentação. Problemas que foram contornados com maestria pelos técnicos de som que conseguiram sintetizar todo aquele caos espacial de forma bastante competente. O calor do espetáculo fez o resto do trabalho. Envolvendo todos invariavelmente.

Nino Karvan, uma pérola da nata artística sergipana, que acaba de parir o seu “José” (que ainda não tive a oportunidade de escutar), conduziu com primazia e um domínio marcante os temas que embalou com sua voz segura e o velho triângulo retumbante guiado por seus dedos. Aquele cara tem sangue latino! Em algum momento me lembrou uma versão de “A Saucerful of Secrets” de David Gilmour com muito sertão goela abaixo.

Os belgas, eram cinco e se chamam Turdus Philomelos (uma espécie de pássaro que deve habitar aquelas bandas de lá), se misturavam bastante confortáveis naquele amálgama sonoro. Assim foi com os pardais portugueses que se enraizaram na fauna local há alguns séculos atrás.

A dupla Julien e Martin, acordeonista e saxofonista pareciam dois furacões e chamavam bastante atenção com seu senso de humor característico de meninos travessos com uma atitude extremamente ‘punk’. Sem querer rotular a euforia e a alegria dos dois talentosos músicos, mas apenas para ilustrá-las.

Naquela geléia geral precisamente executada, o virtuosismo dava as caras, mas sem perder o elemento emocional da coisa toda. Sem exageros. Dez garrafas de vinho genialmente tragadas com dezenas de copos d’água.

Em um único e incansável movimento, sempre adiante, para frente, quase que exclusivamente corporal, o que marca bastante os ritmos latinos e africanos, eles percorreram a polka, o reggae, o forró, o samba, o blues, o jazz, o rap, a música eletrônica, o progressivo, o psicodélico, o popular, o “erudito” (não em oposição ao popular, mas o gênero musical propriamente, desconsiderando o anacronismo do termo), tudo de uma sutileza bastante fácil e natural.


Uma aula de história musical na qual identificavam-se as conexões culturais expressas em canções. A contemplação de uma partícula de um elo perdido reatando os seus laços, suas origens! e por que não seus cismas? Foi um dos melhores shows de rock que vi há tempos (risos)!

I.B. Versão revisitada de texto originalmente publicado na Revista Rever