segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

O amor é torto


Imaginem uma mesa de bar onde estão sentados dois camaradas, ambos de sorrisos orgulhosamente amarelados. Um deles usava óculos escuros. Essa era a sua máscara. O outro, possuía cinco brincos divididos inexatamente em ambas as orelhas. Essa era a sua máscara.

Imaginem agora um bar repleto de pessoas, onde todo aquele burburinho era uma espécie de auto-afirmação do desinteresse das pessoas pelo que está além de seus próprios narizes empertigados em muco. O que quero dizer é, que apesar das pessoas e do forte cheiro de urina vindo do banheiro, não havia nada mais vazio, inodoro e silencioso do que aquele lugar.

Um deles estava entretido com a preparação de um cachimbo. Ele praticamente acariciava o fumo e cuidadosamente manipulava aquela matéria orgânica inanimada, que forneceria sua estaticidade vívida para aquele indivíduo. Aquela cena quase romântica entre ele e o fumo me fizeram imaginar uma trepada entre um ser humano e um cachimbo. Um cachimbo humanizado melhor dizendo.

O outro construía, em suas reflexões, pensamentos em impressões das coisas mais banais que faziam parte da sua vida. "...Vagalumes flamejantes se projetavam diante de mim pelo céu castigado pelas luzes da cidade. Ventava forte. O mar rufava ininterruptamente e provocava uma comoção interessante no bailar das ondas. Podia sentir o espírito ancestral levantando de seu túmulo cinzento. E eu fazia parte daquilo. Essa é a nossa herança do primitivo e meu espírito respondeu às suas carícias. O espírito enfim existe, só é uma questão de pá e terra."

Ambos em seus mais íntimos casos de amor. Amor pelo vício. Amor pelo idílio. Ambos orgulhosos e certos de seu amor.

-O que pretendem fazer com o Movimento?

-Na verdade, o Movimento (torto) tem mais uma pretensão de chamar atenção as pessoas de que elas, por mais que vivam em busca de um ideal, a vida em si, sempre é feita em pedaços, pois no meio do caminho, sempre vamos mudando nossas rotas e nos entortando sempre. E que por isso mesmo, não nos cabe classificar, nem condenar as coisas como certas OU erradas, pois as diferenças, elas se misturam em meio à realidade, e nem sempre fazer o bem necessariamente nos leva a ganhar o bem. Roosevelt falou que o torto não é nem jovem, nem velho. O torto é o que todo mundo sempre foi, com a diferença de que ele não quer se iludir que a vida é tão retilínea assim como nos ensinou e nos ensina, a igreja e o Estado.

-O torto, então, é o velho com alma de criança.É um humano legítimo.

-E também uma criança com alma de velho.

-Acho que almas velhas são pedaços negativos do universo, são muito certos de si. Nada pode ser certo de si.

-Almas velhas não são necessariamente certas de si. Pelo contrário, meu caro amigo. Retomando... Ao mesmo tempo que ele é esperançoso por saber que o mundo só se torna rico graças a diversidade entre as pessoas, ele é triste por saber que essa diversidade não passa de uma subjetividade e a subjetividade jamais vai atingir o ideal que sempre pensamos em querer alcançar. Nesse sentido o torto é desesperançoso por saber que o ideal é apenas uma máscara que colocamos na gente. Aceitar a subjetividade (esperança); ideal inalcansável devido à subjetividade (desesperança).

Um dos camaradas, com uma determinação típica de um boêmio e seus trejeitos, retirou de sua sacola uma garrafa de vinho. Vinho barato. E pôs-se a tragar.

-É a condição que temos de racionalizar as coisas. Pura abstração referencial. Sempre me incomodaram essas exatidões, essas noções do ideal. Desde pequeno a matemática me intimida. O ideal é o easy way para compreender as coisas, ou para conviver com elas sem surpresas incovenientes. É também uma faca de dois gumes (o que é gume? fio? lâmina?).

-O foda é que nem sempre nossa racionalização nos facilita não é? Por isso que inevitavelmente temos que nos entortar.

-Pegar a estrada de terra.

Fez-se um breve silêncio entre eles por alguns instantes. O suficiente para uma golada no vinho e uma tragada no cachimbo.

-Percebi que há muita divergência dentro do Movimento.

-O Movimento torto é um movimento que se auto-destrói - sorri. - Ele não dá certeza de nada. Ao mesmo tempo que procura uma, deixa claro o tempo inteiro que ele não é capaz de encontrá-la. Isso faz com que os próprios membros que aderem a ele, não cheguem a um consenso entre eles mesmos.

-Soa como os conflitos dentro do partido comunista russo. Socialista... Sei lá! Bom, a verdade é que nunca estamos certos de nada, não é!? Mas, eu acredito que existe uma essência, uma fagulha onipresente no espírito de todos nós que é imutável.

-Eu também acredito. É como eu sempre digo: estamos em uma mobilidade enraizada. Você acha que essa imutabilidade se chama deus?

-Não. Deus não está em nós, está Entrenós. É a cola, o plug, o espaço vazio entre dois grãos de areia. Aliás, queria te dizer aqui que eu tenho uma teoria.

-Qual teoria?

-Para mim todas as produções humanas, mais precisamente em termos de arte, são uma relação amorosa que o criador tem com todas as outras forças em ação ao redor do universo. O que compomos fala sobre amor e não-amor. Até mesmo essa discussão que estamos tendo. O que seria o torto senão um indivíduo que acima de tudo, ama mais do que tudo? Certa vez, Felipe disse que isso tinha outro nome... Não era amor em si o termo que ele usou. Mas, nomenclaturas diferem em quê? Só quero dizer que é algo semelhante ao caso de amor entre prótons e elétrons ou algo do tipo. Segundo a ciência, seríamos um aglomerado dessas partículas. O âmago de nossa constituição é uma relação de amor e não-amor.

-Interessante como você segura essa garrafa de vinho. Ela não vai fugir de você.

-Um dia ela pode fugir. Não subestime o que aparentemente não é dotado de consciência - sorri.

-É verdade, eu costumo dialogar com o meu travesseiro e ele sempre me foi silenciosamente simpático.

-Certo dia, perguntei a alguém: se Deus fosse um homem, como ele seria? A resposta foi imediata e quase instintiva: feio.

-Se tudo que nós criamos, fala sobre o amor; então deus não seria criação, uma vez que, se o amor é algo lindo, e deus é um feio, ele não estaria ligado por uma relação de amor?

-Quem disse que o amor é algo lindo? Você já tomou uma surra dele? O amor já cuspiu na minha cara, ele é egoísta, auto-destrutivo, o amor é torto!

-É torto, pois o amor, além de ser tudo isso que você falou, nós o buscamos por ele também ser belo, solidário e construtivo. O amor é torto por ele se construir destruindo, isso por que ele tem a virtude e o vício divorciadamente apaixonados entre si.

Levantaram-se do bar e saíram sem pagar a conta. Afinal, quem ia notar em meio a toda aquela multidão, dois indivíduos banais como estrelas cadentes em uma madrugada de domingo?

Pintura de Frida Kahlo

I.B. & Vina Torto

3 comentários:

Vina TorTO disse...

KKKKKKKKKKKKKKKKKK
Cara, adorei esse nosso debate. Dois seres idiotas cheios de opiniões, mas guardando para cada um, as suas tristezas, inseguranças e vicios. Dois patéticos se usufruindo loucamente de dois objetos subjetivados: o vinho e o fumo.
Com tantas certezas, assim como qualquer coisa, simplesmente sairam e não foram percebidos, pois apesar de suas posturas criticas, não eram nada mais que Igor e Vina, dois feixes de luz tão infinitos e tão pequenos para eles mesmos e para os outros.
Ei, quero publicar esse texto no site do Movimento Torto.
abraços tortos meigos e amargos
www.movimentotorto.com

ra.quel passos disse...

Depois de tanto e tortos, saíram com a postura mais ereta do mundo e mais conveniente para a essência de cada um. Dou valor!!!!

P.s.: Texto delicioso - eu serei a primeira a comprar o seu livro.

Pedro Ivo disse...

eu entendo que quando se ama
voce ta ai pro que der e vier
ate o fim
que nd eh sacrificio diante do prazer ou satisfaçao mutuo
qualquer coisa vale a pena
qualquer coisa mesmo
se eu te amo, eu morreria por voce, se preciso
isso é amor real

isso é ser torto?