segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Horizonte de Eventos

Richard Marchand
A gênese
Era escuro o quarto. Acordei lá e não sei bem o porquê. Todos os pontos de referência que eu tinha sobre alguma coisa não existiam mais ou não faziam mais sentido. Eu não saberia dizer se havia se passado uma semana ou um mês ou mesmo um ano. Eu já nem sabia o meu nome ou quem eu era ou como eu era. O quarto escuro era eu e eu era ele. Tudo se resumia àquilo e me pareceu que sempre  fora dessa forma. E a porta se abre arrastando uma explosão luminosa que ofusca os meus olhos e arde como milhares de alfinetes penetrando as minhas pupilas e mordiscando a minha pele.
Horizonte de Eventos
Eis que a mulher está diante de mim com seus cabelos luminosos escorrendo por sobre os seus seios tímidos. Conseguia ver a luz de lá de fora escapando por seus olhos mesmo quando a porta misteriosamente se fechava atrás dela. E nós nos abraçamos e eu afoitamente descobri os seus seios e os aconcheguei em meu peito. O quarto que era tudo o que havia ali parecia ser incapaz de ingerir aquele pequeno sol que aquecia aqueles rasos desfiladeiros gélidos e ressequidos. E tudo ficou cálido, doce, ardente, eterno. E sob meus braços tudo se tornou silêncio novamente. Um silêncio materno que derramava sua solução láctea e nutritiva sobre meus lábios fundidos. Depois do silêncio veio o despertar e ela não estava mais lá.
O quarto
Novamente o escuro se apossava daquele lugar. Mas ao invés de só haver um quarto indissociado de seu inquilino, algo mais habitava aquela substância.  Não saberia dizer se a outra coisa que dividia aquele espaço seria mesmo algo ou a ausência de algo. E se a ausência de algo era de fato algo? Antes era só ausência, mas eu não percebia que o era ou a ausência não me fazia carente de alguma coisa. Tudo simplesmente era e nada mais. A ausência que ficou ou essa coisa que permaneceu por aqui era diferente. Agora eu precisava de algo que não mais estava aqui. E a princípio não me fazia diferença onde eu estava, como eu estava, com quem eu estava. Agora eu sentia fome. E é desconfortável. Dói. Agora eu sou como o quarto que precisa de mim para ser um quarto e por essa razão eu já não era mais o quarto.

Diálogo
A porta se abre e novamente minha percepção dormente é invadida por aquelas chamas rasgantes. Mais uma vez tudo se torna um sistema heliocêntrico e as terríveis forças que tragavam aquele lugar para dentro de si mesmo, comigo junto, eram repelidas atrozmente por aquela figura terrivelmente feminina. O deserto insosso e agreste florescia os seus veios fluviais que não podiam ser testemunhados ali por nada ou ninguém que não fôssemos nós dois. Uma avalanche suave e macia me encobriam os ouvidos e me fazia sentir um tremor na pele através de sua vibração constante e aveludada. Eram pétalas sonoras e eu as rebatia metalicamente de acordo com a música que me era apresentada. Dois solistas perspicazes. Nenhum dos dois queria impor o seu ritmo, mas construir uma peça sólida. Sem início, sem fim. Só frases melodiosas, caóticas, calculadas, grotescas: genuínas. Erotismo. Esses encontros se repetiam ininterruptamente. Na nudez afoita, na calmaria cambaleante, na dialética da vida e de qualquer outra noção que se oponha a isso. Até que um dia ela não estava mais lá.

Finn, (...)
Tudo corroia violentamente dentro daquele quarto. Eu lembrava do meu nome ou tinha criado um enquanto ela esteve aqui (não me lembro bem). Eu lembrava de quanto tempo tinha se passado. Contei todos os dias, horas, minutos, segundos, séculos que estava nocauteado naquele chão duro e fétido. Era o meu fedor. O hálito da fome, da dor inane, o cheiro do escuro e do claustro. Expatriado! Indigente!  Eis que a porta se abre novamente e em um lapso de segundos o quarto já não sou mais eu. De dentro de minha úlcera nefasta, a luz que chamusca meu couro me dá prazer indescritível e a porta se fecha novamente deixando quarto adentro uma coisa pequena, pouco maior que a minha não. Era humanóide. Envolta em um manto rubro de sangue. A porta nunca mais se abriu e aquela coisa permanecia ali. Tive a impressão de que havia dito algo certa vez. Me chamou de pai, criador, deus, não sei dizer ao certo. Sempre era assim no início. Depois eles não falam mais nada. Eles vão se desfazendo na vastidão dos tempos. Eles ficam aqui comigo. Viram quarto.  
I.B.


quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Crônicas de Meia-Noite

Finalmente diante do notebook pra redigir uma crônica que devo entregar amanhã quando acordar. São 11:45 e meus olhos já pesam por causa do sono curto embalado por uma noite ébria não por causa dos excessos, mas da intensidade que sorvi aqueles suaves e cítricos tragos de um vinho de reserva. El diablo de la media noche!

A noite se prolongou em devaneios, em brisas fluviais, flashbacks de um passado recente e de passados superficialmente remotos, daqueles que integram as nossas mais constantes inclinações afetivas em face de nossas relações com as coisas materiais e abstratas. E dois pares de braços e pernas se entrelaçavam, se aconchegavam habilidosamente como se não fosse apenas fruto de uma única estação que se passou desde o encontro inevitável. Um aracnídeo de oito patas reluzentes, pescando estrelas no fundo de um rio lamacento.

E assim fui dormir. E assim despertei. Não havia estrelas senão aqueles espectros de outrora e continuava belo e o dia cantava mais vivaz. E a noite era dia e a lua era sol. Havia um ninho novo em cima do armário da despensa. Rolinhas "caldo de feijão": os habitantes sempre majestosos dos telhados da vizinhança.

Duas da tarde e eu aguardava, bastante apreensivo, a tatuadora que terminava um serviço na "sala de operações" de seu estúdio. Eu tenho duas ideias para talhar em minha carne e enquanto eu esperava, assistia um documentário sobre a cena do skate nos Estados Unidos no início da década de 90 com um outro tatuador. Havia uma vontade muito grande de desafiar os limites pré-existentes, naquelas pessoas.  Seja a gravidade, a  lei ou o próprio corpo. Pude ver a grandeza que aqueles jovens detinham em seus olhos. Aquele olhar que ao ser testemunhado, te faz acreditar no impossível junto com o seu portador.

Saí do estúdio com um sentimento de vazio, pois tinha a convicção de que não faria as tatuagens, pelo menos não agora. Não esperava tamanho valor (tou falando de grana) para algo que seria tatuado em meu corpo. Alguém seria eternizado ali e não somente uma particularidade minha, mas outras mãos, outros olhos, até o meu dia derradeiro que a essa altura do campeonato, já me é difícil determinar se virá em breve ou será bem longínquo. Um palco de várias guerras, várias tragédias, dramas, felicidades, angústias, monocromias, polifonias, amores, amores, amor e êxtase.

No caminho para o trampo, nada de novo nos ônibus. Cadeirantes sendo erguidos por pessoas compadecidas para dentro dos coletivos sem elevadores em funcionamento, a cessão de lugar para uma idosa trôpega com problemas nas articulações, atender o telefone celular e se declarar o sujeito mais imbecil do terminal de integração. Nada de novo nas ruas, nos prédios, na cidade. Carros passando, velhinhos bastante dedicados ao seu ofício de fazer suco de laranja, pessoas que peidam berrantemente no ambiente de trabalho. Nada de novo nos pensamentos. Pinturas, quadros, arte, surrealismo... Eis que proclamo a minha sede para a cidade e de prontidão, aqueles caracteres saltam bem diante dos meus olhos: Ananias.

Ananias Cruz é um sujeito que mora em uma praça aqui em meu conjunto. No Sol Nascente. Onde eu cresci e vivi desde os três, quatro anos de idade (?). Seu aspecto sujo, descuidado, abatido pela dureza da vida é desarmado por sua transbordante vivacidade em seu relato de uma coruja que investiu sobre ele nas piçarras verdejantes das ruelas do Aloque. Um povoado que se embrenha aqui em Aracaju (São Cristovão?) e é cortado pelo maltratado Rio Poxim.

Ele estava terminando de pintar um quadro prodigioso que continha uma bucólica paisagem de um casebre num fim de tarde à beira-rio. Fazia com aparente descuido, mas bastante atento para os detalhes. Meu amigo sugeriu uma sombra na frente da casa. Mirando o rio tomado pelo sol gigantesco que se punha no horizonte alaranjado. E ele esfregou aquele pincel na tela e onde não havia nada, surgiu uma sombra misteriosa. Surgiu um novo olhar que vinha de dentro do quadro e de fora para dentro. Ele pediu míseros 20 conto. Eu dei 25. Ele sorriu, apertou minha mão e sua expressão se transformou mais ainda. Irradiou o sol do meio dia. "Agora, eu vou pra Moscou. Agora, eu vou pra Moscou." E partiu em retirada, rumo aos seus ímpetos de auto-mutilação. Não havia nada atrás dele. Só adiante. Em busca da pedra filosofal. Qual é o preço da arte?

I.B.

terça-feira, 19 de maio de 2015

Ojalá

Ojalá que las hojas no te toquen el cuerpo
Cuando caigan
Para que no las puedas convertir en cristal
Ojalá que la lluvia deje de ser milagro
Que baja por tu cuerpo
Ojalá que la luna pueda salir sin ti
Ojalá que la tierra no te bese los pasos
Ojalá se te acabe la mirada constante
La palabra precisa, la sonrisa perfecta
Ojalá pase algo que te borre de pronto
Una luz cegadora un disparo de nieve
Ojalá por lo menos que me lleve la muerte
Para no verte tanto para no verte siempre
En todos los segundos en todas las visiones
Ojalá que no pueda tocarte ni en canciones
Ojalá que la aurora no dé gritos que caigan
En mi espalda
Ojalá que tu nombre se le olvide a esa voz
Ojalá las paredes no retengan tu ruido
De camino cansado
Ojalá que el deseo se vaya tras de ti
A tu viejo gobierno de difuntos y flores
Ojalá se te acabe la mirada constante
La palabra precisa la sonrisa perfecta
Ojalá pase algo que te borre de pronto
Una luz cegadora un disparo de nieve
Ojalá por lo menos que me lleve la muerte
Para no verte tanto para no verte siempre
En todos los segundos en todas las visiones
Ojalá que no pueda tocarte ni en canciones

Silvio Rodriguez


quarta-feira, 13 de maio de 2015

Confusão


O desconforto já não pesa tanto. Ele vem e volta com promessas efêmeras de que vai estancar. Vez ou outra escorre o sumo através do meu corpo. Mas, eu já sei suturar a ferida e ela sempre abre uma vez mais. Me entrego à loucura, jogo fora o bom senso, a boa conduta e simplesmente sou. Não sinto culpa alguma pela libertinagem e pela boemia. Pois, são os remédios tradicionais no qual os homens depositam suas batalhas perdidas. E a guerra se prolonga por mais insensata que é para os meus interesses patrióticos.

Eu flerto com o mundo inteiro, flerto com a embriaguez, flerto com a insanidade. Estou flertando, na verdade, comigo mesmo. Saco mais uma vez a arma que está em meu coldre. Restam poucas balas em seu tambor. Mas, preciso mais uma vez disparar contra essa confusão. Dessa vez através do telefone, como usualmente tem sido, dada à sua insistência em cultivar distâncias. É mais fácil aceitar a batalha e odiar o inimigo do que tentar racionalizar o momentum. Nos poupa do sofrimento de assassinar um após o outro. Nos poupa de algum peso na consciência. Mas, para isso, nós temos que acreditar nesta raiva e estarmos dispostos a abraçá-la mesmo quando ela dá lugar a outra coisa mais nobre.

É que os movimentos negativos, a destruição é mais prazerosa a curto prazo. É mais fácil! O positivo é um exercício hercúleo no mundo em que vivemos. Requer sacrifícios gigantescos porque sempre praticamos o caminho oposto. Poucos são capazes de construir. É melhor aceitar a desculpa que nos enfiam goela abaixo e matar logo estes filhos duma puta terroristas e torturadores! "Be a good soldier", they say. Kill, kill, kill!

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Saber Viver

Egon Schiele

Não sei... se a vida é curta
ou longa demais para nós,
mas, sei que nada
do que vivemos tem sentido,
se não tocamos o coração das pessoas.

Muitas vezes basta ser:
o colo que acolhe,
o braço que envolve,
a palavra que conforta,
o silêncio que respeita,
a alegria que contagia,
a lágrima que corre,
o olhar que acaricia,
o desejo que sacia,
o amor que promove.

E isso não é coisa de outro mundo,
é o que dá sentido à vida.
É o que faz com que ela não
seja nem curta, nem longa demais,
mas que seja intensa, verdadeira,
pura enquanto ela durar...

Cora Coralina

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Waking Life

Sonhos não se opõem ao real. Sonhos são o combustível do real. Eles são a força motriz, a vontade. As substâncias que compõem os sonhos tem uma profunda e obstinada intenção de viver (no real). Por isso eles falam comigo todos os dias, em noites mal dormidas, em manhãs contemplativas, em lapsos de um mundo novo que se apresenta diante da minha cama. Querem existir em uma música (registrada na memória da cultura humana), em um conto, um poema, um desabafo, em uma atitude, em um beijo, em um abraço.

Há também os que não são paridos de nosso intelecto. Os sonhos terrenos, encontrados em padarias, em pradarias, em um sorriso que escapa da alma. Esses sonhos misteriosos, que completam nossas alegrias e acalmam nossos infortúnios. Que nos fazem jurar toda a plenitude do universo em momentos únicos nos quais construímos algo maior do que nós mesmos.

É como aquele conto dos gatos, de Neil Gaiman, no qual certo dia todos os humanos sonharam que não eram mais escravos dos felinos (a raça dominante na ocasião). No outro dia, os gatos amanheceram como animais domésticos e a raça humana triunfava em meio à cadeia evolutiva. O sonho dentre as virtudes humanas é aquela que tem mais vontade e a que conduz todos os espíritos transformadores. O sonho é o real transvestido. Boiando em uma piscina de medos e inseguranças, mas sempre em busca das bordas, com uma vontade maior do que o seu sonhador. Esperando o momento certo para dizer alguma coisa para todo o mundo a sua volta.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Sombras

Dave Mckean

A sombra é um "ser" escuro, uma figura, uma região concebida pela ausêncial parcial de luz, decorrente da existência de um obstáculo que bloqueia a claridade. Quanto mais opaca a barreira que está à frente da passagem luminosa, mais densa é a silhueta projetada, ocupando todo o espaço atrás do obstáculo e moldando-se de acordo com a origem da luz. As sombras só se manifestam quando há luz. E quando não há luz? Onde é que as sombras vivem?


sexta-feira, 17 de abril de 2015

Ódio

Dói em mim saber da dor que te aflige o ventre
Quando sequestra novamente meu sono já tranquilo
O amor que se sentindo roubado, traído, esculachado
Se transfigura em raiva, ódio que toma o peito
Ódio que sufoca meu sono
Que me aquece o corpo
Que endurece minha alma
Que me enlutece o coração, tão essencial pra o que me sou
Te sou
Te fui...
Cinco verões me vem como cinco estações sem sol
O único sol que pulsa agora é essa raiva mista
Desmedida
Essa insônia
Esse ódio
Quando vou me perdoar por ter sido feliz?
Pois, pra mim tudo não passa agora de ilusão
Seria tão líquido e inconsequente esse seu impulso egoísta
Ou o tempo, cinco verões é só um breve momento como o cair de uma gota de chuva?
Mais outra ilusão?
A liberdade é assim um anseio tão déspota?
Que para o papagaio de asas cortadas é uma lembrança já esquecida
E não são mais sonhos que me comovem
Eles morreram
Foram sepultados
É o fantasma que volta, o da sua confusão
Não é meu
Mas, sou arrastado por essa alucinação
E não há paixões em meus devaneios
São distrações
Só ódio e amor
Um amor odioso
Um ódio amoroso
Que te surpreenderia em uma noite insana
Prematura
Natimorta
Rasgando-lhe a decência
Sangrando a carne
Prometendo um sol que queima o peito de uma galáxia inteira
Sob o frio torrencial da chuva em uma noite agitada
Procurando sequestrar a ti
De um saguão de incertezas

terça-feira, 14 de abril de 2015

Sou o olho do furacão

Freud's Quote for today

Magritte

"Ao tomar uma decisão de menor importância, eu descobri que é sempre vantajoso considerar todos os prós e contras. Em assuntos vitais, no entanto, tais como a escolha de um companheiro ou de uma profissão, a decisão deve vir do inconsciente, de algum lugar dentro de nós. Nas decisões importantes da vida pessoal, devemos ser governados, penso eu, pelas profundas necessidades íntimas da nossa natureza."

sábado, 11 de abril de 2015

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Saudade


Narciso e Narciso

Caravaggio

Se Narciso se encontra com Narciso
e um deles finge
que ao outro admira
(para sentir-se admirado),
o outro
pela mesma razão finge também
e ambos acreditam na mentira.
Para Narciso
o olhar do outro, a voz
do outro, o corpo
é sempre o espelho
em que ele a própria imagem mira.
E se o outro é
como ele
outro Narciso,
é espelho contra espelho:
o olhar que mira
reflete o que o admira
num jogo multiplicado em que a mentira
de Narciso a Narciso
inventa o paraíso.
E se amam mentindo
no fingimento que é necessidade
e assim
mais verdadeiro que a verdade.
Mas exige, o amor fingido,
ser sincero
o amor que como ele
é fingimento.
E fingem mais
os dois
com o mesmo esmero
com mais e mais cuidado
- e a mentira se torna desespero.
Assim amam-se agora
se odiando.
O espelho
embaciado,
já Narciso em Narciso não se mira:
se torturam
se ferem
não se largam
que o inferno de Narciso
 é ver que o admiravam de mentira.

Ferreira Gullar

Eu

John William Waterhouse

Hoje eu acordei só. Acordei eu. Sem um intruso em minhas entranhas. Apenas em devaneios tardios, de depois de abrir-me os olhos. Mais por estranhamento do que por uma aflição interior. Um vão misterioso pela frente, sem verdades (ou ilusões) construídas com raízes profundas. Apenas eu, solto e absorto com a minha falta de permanência.Um dente de leão à mercê de uma brisa e uma única promessa, daquelas efêmeras, sem compromissos: vou pousar na terra e depois um sopro qualquer há de me arrancar dali para outros pousos. Simplesmente porque hoje, eu acordei só.

terça-feira, 7 de abril de 2015

Despertar é sempre perigoso


Tem manhãs que não são manhãs
Dias que não são dias
Noites que não são noites
Tem carícias que não são carícias
Abraços que não são abraços
Beijos que não são beijos
Há camas que não são camas
 Viagens que não são viagens
 Sonhos que não são sonhos
Poemas que não são poemas
Esquinas que não são esquinas
Sorrisos que não são sorrisos
Tem noites que não são camas
Há esquinas que não são viagens
Tem dias que não são abraços
Há poemas que não são carícias
Tem manhãs que não são sorrisos
Há sonhos que não são beijos

quarta-feira, 1 de abril de 2015

1+1


A turma estava toda reunida na aula de matemática. Detrás do birô, o professor escrevia um problema no quadro com giz.

- Quanto é um mais um?

Um menino levantou sua mão sem titubear.

- Dois!

Todos os seus colegas se puseram a gargalhar, até mesmo o professor acompanhou aquele coro zombeteiro. Apontavam seus dedos para seu corpo desprotegido no meio da sala, atiravam papeizinhos em sua cabeça.

- Vou repetir mais uma vez - tentava conter o riso - quanto é um mais um?

- Dois - insistiu o menino.

A sala estava em polvorosa. Todos gritavam em reprovação e o menino se punha cada vez mais encolhido no meio daquele tribunal de infantes. O professor não se manifestava contrário ao que estava acontecendo, pelo contrário, juntava-se às crianças e proferia palavras que menosprezavam a inteligência do menino.

- Quanto é um mais um, classe?

- Três! Três! Três!

- É dois!

- Três! Três! Três! Um mais um é três!

As gargalhadas cresciam como um enxame sobre a cabeça do menino. O desespero era grande demais, estava sufocado diante daquela que seria a verdade mais absurda que já havia ouvido. Para ele era tão óbvio como a certeza de que o sol sempre nasceria toda manhã.

-Três! Três! Três! É três!

- Dois! Dois! Dois!

Mas, o coro das outras crianças era maior. Suprimia a sua voz, sua convicção, sua resistência e não durou muito até que o menino levantou-se com todas as suas forças.

- É três! É três!

A sirene tocou, mas dessa vez ninguém se levantou correndo como de costume. O menino atravessou a porta da sala e nunca mais foi visto por ali.

quarta-feira, 25 de março de 2015

Bicho Papão

Era uma vez...

Cheguei exausto em casa e não tinha nem estímulo para comer o cuzcuz de quatro horas atrás, abandonado no cuzcuzeiro. Um peso morto e insosso sobre o fogão. Me derramei sobre aquela cama larga e vazia e afundei de cara naquele espaço escorregadio até atravessar a sua matéria. Até debaixo da cama, de qualquer cama.

Toda e qualquer cama que existe, debaixo dela, eu sou o seu inquilino. A noite sopra seu hálito quente sobre as paredes dos lares, mas eu permaneço gélido, sobre o piso frio e empoeirado. De vez em quando elas, as crianças, são capazes de escutar o meu sibilo e prontamente se põem a correr para o quarto de seus pais. Algumas delas se cobrem por completo com seus frágeis lençóis e as mais bravas arriscam encarar as profundezas do meu covil. Nada vêem, senão o pó. Mas eu estou lá. Sempre estarei, sempre estive.

O sol aparece. Minha labuta chega ao seu fim. Enfim, eu morro; e, como a fênix, renasço sobre a minha cama. Não é qualquer cama, é uma cama específica. Encostada na parede, grande, vazia, empapada de suor e insônia. Todos se levantam, escuto os passos ressoando pela casa, mas a porta está encravada no chão e eu permaneço deitado sem o ímpeto para me levantar. Quando finalmente eu me ergo de meu leito, eu preciso sair. Até o momento de negligenciar mais um prato de qualquer coisa sobre o fogão.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Exílio


Sinto o meu estômago se comprimir toda vez que me vem ao pensamento e o que me incomoda não tem nada a ver com as coisas passadas, com a bagagem deixada pra trás em maletas velhas e rotas cheias de cheiros e recordações quase táteis. Nem mesmo o futuro auspicioso ou agourento. O único momento absoluto é esse agora, é o corpo vacilante diante de um poço úmido e abafado com cheiro de barro. O momento que precede a viagem. O irromper da revolução na aurora do dia. Um penetrante autoritário berro silencioso como é a justiça selvagem, sem piedade, sem cerimônia. A mandíbula de mil feras encravadas nos pulmões sobre um palco forrado de folhas decompostas. A viagem que não escolhemos trilhar, a verdade que não decidimos acreditar, o dia que nunca esperamos chegar.

Fui expulso do meu lar por oito patas aracnídeas enroscadas em meus cabelos encaracolados e nesta jornada irei acompanhado de memórias espectrais, de fantasmas nas paredes da locomotiva desta Samsara interminável. Há uma caverna lá fora. É o meu destino. Não para me privar da luz, não para me esconder da vida, desta dor, deste sofrimento, das alegrias e prazeres. Um dos passageiros me disse que havia algo lá, algo para mim. Distante de casa, porém, familiar como a pele que me cobria todos os males, todas as inverdades, todas as carências, desamores, vícios. A teta que nutria a minha alma, o casulo maternal que fazia salivar a ansiedade magnânima da crisálida. O deus insano e terreno que me provia de fé e deleite.

Estava lá! A mandala fluorescente em uma noite sem luar. Junto a uma fogueira eu me pus a cantar com os espíritos a uma distância segura da entrada da gruta. Podia sentir sua respiração úmida, refrescante, com cheiro de barro. O cinza de suas rochas é passageiro. Assim como eu o sou nesta locomotiva infalível. E as cores hão de brotar novamente. Seja no exílio ou de volta ao lar. Porque o que importa no final é somente a viagem. As que escolhemos e aquelas que nos são forçadas. Mas, uma coisa é tão imperativa quanto a própria excomunhão do exilado: a esperança de que um dia escute a melodia do chamado de volta à sua pátria.

terça-feira, 10 de março de 2015

O Camaleão de Simão Dias


Primeiro ele veio com a “Mangaba Madura” em 2001, mais de uma década depois de ter iniciado sua carreira como artista. O título do registro foi uma brincadeira com as qualidades deste fruto bastante regional, que quando maduro tem qualidades medicinais e quando verde é tóxico.

Em 2006, depois de um hiato de cinco anos, ele deu vida à “Aquarela pra Pandeiro” (para quem não sabe, aquarela é uma técnica de pintura na qual se dilui várias tintas na água). Após um longo intervalo de sete anos, agora em 2014, ele publicou o seu mais novo trabalho: “José”. Sua capa traz um registro fotográfico antigo dele mesmo e alguns familiares, composto marcadamente pelas cores primárias azul, vermelho e amarelo.

A mudança de cores, se não for a mais importante ferramenta do camaleão, é sem dúvida a que mais o caracteriza. José Lucivaldo Carvalho Silveira, Nininho Silveira, Nino Karva e finalmente, Nino Karvan. Vários nomes, várias caras, expressadas explicitamente em seus trabalhos artísticos. Todos eles representando a diversidade de cores como o seu protagonista. Seja por meio da versatilidade de estilos nos quais Nino desfila tranquilamente, seja através da naturalidade com que cantarola os seus versos multiplurais.

As cores e Nino são parceiros desde sua estreia em um festival nos anos 80 quando tinha apenas 17 anos. Nessa ocasião, ganhou o primeiro lugar com a composição “a cor linda que incomoda”, que tratava da opressão aos negros. Isso durante o centenário de abolição da escravatura.

Há que se falar das maravilhas e das mazelas

Na canção “Ribeira” do “Aquarela pra Pandeiro”, registro inteiramente influenciado pelo xote, xaxado e baião, por exemplo, o cabra consegue de forma extremamente fácil dizer que “o anarquismo nunca rimou com bagunça e ele apenas desarruma o estado que é ruim; e a burguesia dá o golpe e se apruma metendo chute na bunda do leitor de Bakunin”. Isso sem soar proselitista ou forçado. Inclusive, nesta canção digladiam duas questões quase que antagônicas em sua visão de mundo: o amor e a luta de classes.

“Eu não acredito mais em luta de classes, acredito que o mundo só pode ser mudado com amor e não com conflito”, afirmou o cantador. “A revolução historicamente já provou que só traz mais ódio, ditadura, pós-revolução. Pra manter a hegemonia do poder de um partido que se diz a vanguarda revolucionária, e que a revolução passa a tender a uma cúpula, e o povo passa a ser sempre rebanho nessa revolução. Não! Eu quero um povo consciente das suas obrigações, dos seus direitos e deveres e que cada um se sinta por si só um agente dessa transformação, dessa revolução que tem que ser universal (sic)”, explica.

O simãodiense foi membro fundador do Partido dos Trabalhadores (PT) em Simão Dias. Militou por toda a sua juventude, já foi presidente do partido, candidato a vereador... Obra e vida parecem sempre ter caminhado lado a lado de Nino, já que grande parte de suas composições aborda certas contradições da vida contemporânea. Ele mescla o seu eu bastante arraigado às suas origens interioranas e essa relação com a liquidez dos fenômenos sociais.

Este espírito de militância, que pode ter acabado no que se refere ao campo de atuação política, perdura ainda hoje de outra forma. Há de se convir que para ser um artista autoral! especialmente no Estado de Sergipe, com os pés chafurdados em uma caudalosa moqueca de indiferença congênita, é preciso militar. Militar só. Uma punheta rançosa, sem estímulo. É você e sua ressaca moral dançando sob um sol escaldante (descalço) em um chão forrado de brita. Se der sorte, você pode até conseguir gozar. Sorrindo em êxtase com a palma das mãos sujas e sebosas.

Para Nino, que percorreu quase três décadas deste cenário nefasto, praticamente nada mudou no que se refere às oportunidades para a música autoral. O mercado permanece incipiente e em desvantagem estrutural com relação a outras realidades ao redor do país. O que não quer dizer que a produção daqui deixe a desejar. A propósito, a bandeira antropofágica da primeira “colcha de retalhos” (é assim que ele se refere a dois de seus álbuns), o “Mangaba Madura”, é a de que “havia certa maturidade na produção sergipana a ponto de nós termos orgulho de consumí-la”.

E nesta era de convergência digital, com a corrente reconfiguração da indústria cultural diante da “democratização” dos meios de comunicação, é nítido observar a fertilidade das mentes criativas locais através de trabalhos cada vez mais lapidados e concisos. A ausência de uma economia pujante na cadeia produtiva tem servido como um catalisador nesse processo, meio que a contragosto.

Segundo Nino, já que a instituição do Estado ainda existe, ela tem uma dívida muito grande com o incentivo à produção cultural, mas também a iniciativa privada tem sido negligente na contribuição para o enriquecimento emocional, espiritual e mental das pessoas.

Como o samba está pro som do pandeiro

Como eu já havia mencionado anteriormente nestas laudas, “José” é o mais recente material publicado por Nino Karvan. De todos, é o mais bem produzido, sofisticado, com arranjos e temática mais sólidos e o mais bem amarrado apesar de o registro englobar influências sonoras que transitam desde a infância do compositor até os atuais 45 anos. Porém, essa miscelânea estética faz parte de sua índole criativa e está muito longe de ser um sinal de indefinição. “José” levou sete anos para ser concebido. Um período deveras penoso para um compositor inventivo como ele é. Atualmente, para terem uma noção, o músico compõe de um a dois sambas por semana. Um ano tem 52 semanas. Façam suas projeções!

Todo esse enérgico impulso laboral parece buscar alento por todos os cantos em diversas áreas da expressão artística, já que Nino é também comunicador, musicoterapeuta, luthier, artista plástico, etc. A música assumindo sempre um papel central.

E foi em 2013, quase que acidentalmente, num papo com o percussionista, baterista e produtor musical Dudu Prudente, que Nino se convidou para participar do que veio a ser um de seus mais audaciosos projetos: Anavantou!

Anavantou! é a miscigenação do grupo instrumental sergipano “Membrana” que conta com as participações do pesquisador e maestro Pedrinho Mendonça, o virtuoso gaitista Júlio Rego (parceiro de longa data de Nino) e Dudu Prudente em junção com um grupo de música instrumental belga chamado Turdus Philomelos. Todo esse time é elencado por músicos extremamente competentes e engajados em uma proposta consistente.

 Os trabalhos de Nino, da Membrana e da Turdus Philomelos tem características em comum. São profundamente pautados em experimentações com as raízes tradicionais de suas realidades em fusão com outros gêneros musicais. Forró, maracatu e pífano amalgamando-se com o folclore europeu. Aliás, o forró que tem origem nas danças de salão europeias com um pouco de influência do toré indígena não faz mais do que reencontrar-se com um amigo de longa data. A reunião de lados opostos do atlântico conflui para conceber uma mistura em sintonia com as novas relações do indivíduo global com o espaço. O sintoma dos novos tempos. 

Depois de uma turnê ocorrida entre junho e agosto deste ano passando por alguns países europeus, o grupo recém-formado se consolida cada vez mais escrevendo músicas juntos e em processo de gravação desta parceria internacional. A ideia desta nova banda que vem surpreendendo pelos palcos mundo afora permeada por apresentações instigantes e bastante performáticas teve surgimento em uma conversa entre dois amigos: o percussionista Dudu Prudente e o cineasta belga Damien Chemin. Pensar em um intercâmbio musical se fazia necessário naquele momento.

O episódio ocorreu quando Dudu estava na Bélgica para finalizar a trilha de sua autoria para o longa, rodado em Aracaju, “A Pelada”. O filme, lançado em 2013 e recentemente distribuído pela Paris Filmes, é a primeira produção da indústria cinematográfica brasileira (apesar de ser uma produção franco-belga-brasileira) gravada 100% em Aracaju com a maior parte da equipe e do elenco composta por profissionais sergipanos.

A palavra anavantou, que significa avante em francês, é uma expressão popularmente utilizada nas quadrilhas juninas para marcar o movimento dos dançarinos. Esta ideia semântica que norteia a base rítmica e harmônica desse novo projeto se confunde com a essência latente de Nino. Parafraseando um mártir contemporâneo sob um cajueiro em um dia bastante ensolarado, o camaleão de Simão Dias não disfarça a sua pretensão genuína. “Como Chico Science dizia: Pernambuco embaixo dos pés e a mente na imensidão”. E as coisas vão acontecendo quando tem que acontecer.


Igor Bacelar

Foto por Lucilene Carvalho

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Hoje

Alguma coisa começou a mudar e eu ainda não sei exatamente o quê. O céu está tomado por edificações monstruosas, castelos fantásticos, catedrais, montanhas e elas despencam vagarosamente em direção do solo, ofuscando a lua nesta noite trêmula e fria. As pessoas se amontoaram na frente de suas casas para observar com pavor a exibição absurda daquele momento singular da história da humanidade. O dia em que a realidade escancarou suas portas, janelas, para o absurdo.

Pela primeira vez em mais de uma década, pude ver meus vizinhos reunidos ali na porta, interagindo, fazendo parte de uma comunidade. Reunidos pelo medo. Não um medo comum. Um medo do desconhecido, medo das fronteiras da percepção, medo da inexatidão, medo de perder suas certezas, medo de serem incapazes de alcançar os seus lugares misteriosos, medo da loucura.

Eu havia entrado em uma dessas construções há alguns anos com um amigo. Ela havia surgido onde antes era uma casa abandonada na rua detrás. Não conseguimos compreender o que estava acontecendo, mas sentíamos que era grandioso. Era maior que qualquer coisa que algum indivíduo havia experienciado.  A coisa sumiu do mesmo jeito que surgiu e por muito procuramos sempre afogar estas lembranças nebulosas. Tudo não havia passado de um delírio compartilhado.

Uma mentira provocada por circunstâncias improváveis e uma carência por uma fantasia quimérica que só teríamos acesso em uma partida de RPG ou um sono profundo. Os sonhos foram feitos para morrer junto com seus sonhadores e atormentar aquele que desperta com a memória de um universo despedaçado. Através desta rodovia é que conduzimos por qual senda vamos nos embrenhar e em qual ponto vamos nos chocar em qualquer ponto ocasional.

Talvez naquele dia, nós dois não fizemos mais do que abrir um portal para que essa coisa viesse para cá. Pelo simples fato de termos coexistido naquele pedaço de um mundo impossível, ele próprio impôs a sua existência, esta é a sua condição. Milhões de olhos se amalgamavam na visão apocalíptica da fusão de dois mundos aparentemente antagônicos. A imaginação desabava sobre as noções fabricadas pelo bem comum.

Todos aguardavam a aterrissagem daquelas construções, daqueles horizontes, relevos. Será que havia alguém vivendo ali? A ansiedade mastigava o estômago daqueles corpos silenciosos e desamparados. Se há alguém lá, eles estão dispostos a dividir o mundo cá embaixo conosco? Talvez simplesmente deixaremos de existir assim como foi no dia em que eu e meu amigo, na casa abandonada, tivemos o que por muito nos esforçamos a interpretar como uma alucinação coletiva. A plenitude de um mundo necessariamente reivindicaria a anulação do outro?

Havia tão pouco tempo e provavelmente o gastaríamos simplesmente sentindo medo. Existiu um período em que havia muito tempo e o medo, nós construímos para nos isolar do mundo lá fora. Nada havia mudado exatamente. O que começou como uma manifestação sobrenatural e encantadora do absoluto alastrou-se para o interior do coração dos homens como uma chaga. Não havia espaço para não-espaços.


Eu já havia sonhado muito, todos os dias. Já fui trocentos heróis e trocentos covardes. Já enfrentei centenas de monstros e dezenas de amores e cada vez mais pessoas se amontoavam na frente de minha casa para me consultar sobre alguma coisa proveniente de um lugar que achavam que era íntimo de minhas elocubrações frequentes. Queriam ir, pelo menos, com a ilusão de compreender o que viria dali e no meio daquela balbúrdia mimética eu vi a esperança alva como se a lua ofuscada tivesse descendido o céu nublado e tomado pelos rabiscos mais nefastos das mentes mais criativas. Me aproximei de sua consternação resignada e em tuas plumas cândidas eu a fiz sorrir. No último dia. No último agora. No último hoje de um amanhã que nunca morreria.

I.B.

Pintura de Jacek Yerka.

segunda-feira, 30 de junho de 2014

O Mar

O Dilúvio de Gustave Doré
Três homens naufragados no meio do mar. À deriva. Braços e pernas chacoalhando sobre o abismo esmeralda. A canção aterradora da valsa marítima. A melodia do oceano, os versos que não nos levam a lugar nenhum. Só despertam dúvida, medo, pequenice.

Os três sujeitos se arrastando sobre o breu, sobre os olhos atentos e nefastos de trocentos inimigos invisíveis. Derramados na superfície de um colosso maior que o mundo. Todos afoitos em direção a lugar nenhum. Seguindo aquele que tomou a iniciativa como faz o gado ao avistar o vaqueiro. Um cardume deselegante de caborjas engatinhando na lama.

Três criaturas fugindo de algo que não podiam ver e nem comprovar de que estaria ali. Mais temerosos desta ameaça intangível do que dos paredões marítimos que invadiam os seus pulmões conforme os tragava para cima e para baixo, para cima e para baixo, esboçando ladeiras assustadoras, penhascos bufados de um enorme nariz oceânico.

Lá estavam eles imersos em um ronco eterno, no âmago do pavor e da loucura fitando os olhos do desespero e da incerteza esverdeada. Uma enorme figura se projetou na superfície transparente como em um pequeno aquário no qual besta nenhuma pode se esconder. Era nítido o suficiente para reconhecer aquelas temerosas barbatanas dorsais e aqueles olhos negros e sem expressão. O focinho dele cortava o atrito da água como papel.

Apenas um deles o viu e não conseguiu avisar aos outros. Perdeu a capacidade de se comunicar e simplesmente continuava a nadar sem saber mais o que fazia se é que soube em algum momento. Era o último deles, o que mais próximo estava daquele monstro selvagem. E não passou muito tempo para o terror assumir uma nova face. Como um raio. Mas, não foi estrondoso e barulhento como se esperava. Era um relâmpago órfão, sem trovoada. Um clarão no céu diurno apercebido, sem cor, uma carícia no vácuo, a mão solitária que afaga a si mesma. Uma descarga poderosa e imperceptível. Três sujeitos eram agora apenas dois. Sem sangue, sem grito, sem guerra, só o mesmo silêncio aguado de uma valsa ininterrupta.

Permaneciam atirando-se contra as ondas como se nada tivesse acontecido. Mas, o  horror estava imbuído agora de uma solidez perversa enquanto o mar lançava os seus soldados sádicos. Um pedaço de isopor boiava em algum lugar no horizonte, desaparecendo periodicamente enquanto o mar se deslocava para cima e para baixo, para cima e para baixo.

Agora estavam sobre aquele caco solitário e frágil que se desfazia aos poucos sob os seus corpos pesados demais. As pernas repousadas dentro do oceano eram como pêndulos melancólicos no fim do mundo. Seus olhares voltados para o fosso inescrutável. Piscou os olhos por causa da água salgada e em um hercúleo e corajoso ato, enxugou sua vista embaçada. Voltou a agarrar-se ao pedaço de isopor enquanto o outro permanecia estático. Eles mal respiravam para que nada os escutasse ali, embora seus corpos implorassem para que seus pulmões ofegassem.

Piscou os olhos e ao abri-los estava submerso enroscado em longos e pegajosos braços que mutilavam sua pele encravados em sua carne flácida e intumescida. O arrastava velozmente para baixo como se agora o oceano tivesse perdido a paciência e o estivesse levando para o abismo, para mostrar-lhe todos os olhos que estavam depositados sobre ele desde que acordou no meio disso tudo. Uma chuva de vários bichos cintilantes se atirava de um lado para o outro com seus tentáculos devassos e serpentinosos enquanto o seu captor o tragava cada vez mais fundo.

O mar agora adentrava as suas entranhas, o sugava completamente para o seu leito lodento e ao piscar os olhos uma última vez no breu, pensou pela primeira vez na morte em lugar da vida. Ouvia berros nunca imaginados, urros oriundos do próprio inferno. Ao abrir os olhos, a sua incapacidade de ver no completo escuro só era interrompida pelo brilho violento daqueles bichos e diante dele permanecia uma gigantesca cabeça com olhos negros o encarando. Enormes tentáculos gasturentos agitando-se tranquilamente naquele lugar abandonado. Seu captor disparou em retirada apavorado. Era do tamanho de um prédio. Aquela coisa demoníaca.

Longe dali, na superfície, o pedaço de isopor permanecia incólume. Não havia medo, não havia dúvida, não havia olhos e subitamente não havia isopor, não havia mar, não havia nada.



sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Breves Impressões: Karvan, Membrana e Turdus Philomelos... Anavantou (no Museu da Gente Sergipana)!

Sob as tranças de um jereré gigante se desenrolava um espetáculo inusitado. Poderia até chama-lo de excêntrico, mas, as definições linguísticas da palavra a associam demasiadamente ao estranho, ao esquisito. Pois, o que se passou debaixo daquela rede enorme de pescar siris não tinha nada disso. Era familiar e íntimo. Milimetricamente encaixado como dois amantes no fulgor de sua paixão.

Meu pai vez ou outra pescava siris no mangue utilizando-se de um jereré, pedaço de rede preso a um aro, de formato cônico, mencionado no parágrafo anterior. A versão gigante que habita o pátio do elevador do Museu da Gente Sergipana não capturava crustáceos. Sorvia em seu interior alguns artigos característicos da cultura nordestina dispostos por um artesão.

(A teia tecida por um aracnídeo global, por um pescador sentado pacientemente na esquina do universo)

A metáfora perfeita para aquela orquestra composta por nove homens que percorriam majestosamente o piso liso do salão rodeado de palmas extrovertidas e nádegas preguiçosas pressionadas contra o plástico e o chão. Além de algumas dezenas de pernas notáveis desfilando um ar de autêntica brasilidade naquela junção de algum canto da Bélgica com algum canto do Brasil. Oras, cantarolantes, oras em murmúrios tímidos e atentos.

Muito longe de terem sido tragados para as preliminares auspiciosas de um panelão escaldante, o jereré capturou o que há de mais gracioso em suas patas plurimetamórficas. O acordeão proveniente da europa reencontrou-se com seu filho prodigioso sobre o agreste verbalizado como bandeira por Pedrinho Mendonça, discípulo de grandes percussionistas brasileiros como, por exemplo, Naná Vasconcelos.

A acústica não era lá essas coisas. Havia espaços indesejáveis que provocavam a evasão das ondas sonoras e de alguns pontos do local não era possível ouvir bem alguns detalhes da apresentação. Problemas que foram contornados com maestria pelos técnicos de som que conseguiram sintetizar todo aquele caos espacial de forma bastante competente. O calor do espetáculo fez o resto do trabalho. Envolvendo todos invariavelmente.

Nino Karvan, uma pérola da nata artística sergipana, que acaba de parir o seu “José” (que ainda não tive a oportunidade de escutar), conduziu com primazia e um domínio marcante os temas que embalou com sua voz segura e o velho triângulo retumbante guiado por seus dedos. Aquele cara tem sangue latino! Em algum momento me lembrou uma versão de “A Saucerful of Secrets” de David Gilmour com muito sertão goela abaixo.

Os belgas, eram cinco e se chamam Turdus Philomelos (uma espécie de pássaro que deve habitar aquelas bandas de lá), se misturavam bastante confortáveis naquele amálgama sonoro. Assim foi com os pardais portugueses que se enraizaram na fauna local há alguns séculos atrás.

A dupla Julien e Martin, acordeonista e saxofonista pareciam dois furacões e chamavam bastante atenção com seu senso de humor característico de meninos travessos com uma atitude extremamente ‘punk’. Sem querer rotular a euforia e a alegria dos dois talentosos músicos, mas apenas para ilustrá-las.

Naquela geléia geral precisamente executada, o virtuosismo dava as caras, mas sem perder o elemento emocional da coisa toda. Sem exageros. Dez garrafas de vinho genialmente tragadas com dezenas de copos d’água.

Em um único e incansável movimento, sempre adiante, para frente, quase que exclusivamente corporal, o que marca bastante os ritmos latinos e africanos, eles percorreram a polka, o reggae, o forró, o samba, o blues, o jazz, o rap, a música eletrônica, o progressivo, o psicodélico, o popular, o “erudito” (não em oposição ao popular, mas o gênero musical propriamente, desconsiderando o anacronismo do termo), tudo de uma sutileza bastante fácil e natural.


Uma aula de história musical na qual identificavam-se as conexões culturais expressas em canções. A contemplação de uma partícula de um elo perdido reatando os seus laços, suas origens! e por que não seus cismas? Foi um dos melhores shows de rock que vi há tempos (risos)!

I.B. Versão revisitada de texto originalmente publicado na Revista Rever

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Concerto em uma casa de show no meio do nada relatada por uma figura onipresente que estava distraída demais para dar vida aos acontecimentos absurdos que se desenrolaram

Tudo estava preparado para o show daquela noite. Os músicos caminhavam pelo espaço contemplando o vazio e tomando cerveja aguada. O baterista e o tecladista se afastaram e foram fazer qualquer coisa no banheiro. Voltaram elétricos e inspirados. Literalmente inspirados. O vocalista sentou-se no palco e garranchou o setlist daquela noite enquanto o baixista aquecia seus dedos com exercícios costumeiros pré-concerto.

Há apenas meia hora de começar não havia sinal de platéia alguma. O que começou a preocupar a banda. Aliás, o lugar todo parecia um vasto salão abandonado onde só havia eles, uma lâmpada em forma de gaiola, um furgão velho, suas distrações e mais nada. O cantor se dirigiu à portaria assobiando qualquer melodia improvisada e não havia ninguém do lado de fora. Aliás, só havia aquele estabelecimento fincado no meio de uma planície desértica.

Sentaram-se no meio fio que separava a casa de show da noite desolada como cinco pássaros em um poleiro. Cinco passarinhos que já não cantam mais. Miraram o horizonte em silêncio e cada um acendeu um cigarro oferecido pelo baixista. Os últimos cinco cigarros.

Subiram no palco. Tudo já estava plugado, conectado, preparado para a apresentação daquela noite. A luz se apagou e um minuto de silêncio foi cortado por um mi menor que soou por uns cinco segundos. É hora do show!

Conforme a primeira música era executada por aqueles cinco sujeitos, movimentos curiosos aconteciam no meio do escuro. Como se o próprio escuro estivesse se mexendo, embalado pelo ritmo da música. A reverberação dos sons começou a mudar, os ecos se tornaram ocos, os acordes mais sólidos para se ajustar à comoção que acontecia lá embaixo na platéia. Um público composto por sombras humanóides que dançava obedientemente à cadência da música.

Quando havia aquele "silêncio" por parte da banda de uma composição para outra se ouvia as vozes de baixo daquelas criaturas esquisitas que se desenrolavam com um sotaque meio oriental com algumas sílabas guturais. Findada a apresentação, a lâmpada se acendeu novamente.

Os músicos se entreolharam e começaram aquela velha rotina de desmontar toda a estrutura de show e levar tudo para a velha caranga. Estava frio lá fora e os músculos cansados. Depois de empilharem tudo no furgão, sacaram aquela velha garrafa de whisky esquecida no tapete do carro e revezaram as tragadas enquanto o cantor do grupo assobiava alguma melodia familiar e recente. Um solo convincente talvez. O guitarrista sacou o violão e a noite perdurou cheia de vida, no meio daquela planície sozinha.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

"FICA"

Mais um dos meus amigos faleceu, acredito que na manhã deste dia 30 de Maio de 2013. Não tenho tanta certeza deste fato porque ele morreu só e não havia testemunhas. Mas, seu corpo desfalecido conservava a tranquilidade de alguém que estava simplesmente dormindo, se não fosse pelos seus olhos abertos e opacos que denunciavam o seu destino. Seus olhos expressavam uma melancolia tamanha que me fizeram compreender o que se passava em seu leito de morte. Ainda havia um pouco de calor que era emitido de seu estômago enfermo, uma das razões de seu fatídico revés. Eu ainda assobiava para ele e dava-lhe afagos em sua cara sem vida. Meu pai cavou uma vala funda para repousar os seus restos e o jogamos como se fosse um saco de batatas podres... aquelas perninhas magras e aquele focinho que outrora vivia úmido e cheirando coisas, inclusive a minha pele quando voltava de viagens longas ou simplesmente aquelas que depositam muitos aromas distintos em nossas roupas. Um dos meus mais valorosos amigos, que sempre me visitava durante o meu sono representado de múltiplas formas e transmitindo múltiplas mensagens, pois fora daí para ele era impossível se comunicar comigo além de pedir comida, água, afagos, companhia. Sempre balançando o seu rabo peludo e frenético de boca sempre aberta expondo a sua língua proeminente e de certa forma introvertida, pois ele diferente dos outros de sua espécie não tinha o hábito de lamber. Também não me recebia com saltos e patadas sujas sobre o peito, isso só acontecia ocasionalmente. Ele se contentava apenas em deitar ao lado de alguém ou ficar no quintal espiando pela porta quando esta estava aberta. Caso contrário, se erguia sobre as cinco janelas que o separavam de dentro de casa e nos observava ou pedia alguma coisa nem que fosse para abrir a porta: “ei, estou aqui”. Nos últimos dias ele regurgitava todo o alimento que ingeria e silenciosamente sentia dores em seus quartos idosos de uma década de existência. Sinto-me como um vampiro enquanto escrevo, aprisionado na condição de ter que passar por várias eras e me contentar com todos os que morrerão a minha volta enquanto eu permaneço ileso. Nós somos imortais enquanto os cães despencam sobre o solo rígido de nossas moradas de concreto. Ele chegou lá em casa quando eu tinha 15 anos, ele era um bebê agitado e inofensivo e uma década se passou e nada mudou. O meu amigo mais prestativo, o que se atirava para frente dos lugares antes que eu chegasse para ver se estava tudo bem, o que guardava o meu sono com um senso de dever e responsabilidade invejáveis. Há dois dias atrás eu tive pesadelos sobre a dor que ele sentia e acordei transtornado. Eu sabia que ele ia morrer em questão de dias e o deixei na casa da praia sem saber que esse dia seria o último que eu o veria em vida. No caminho, dentro do carro, nós tivemos o último contato corporal e íntimo. Eu o segurava no banco de trás como sempre o fazia quando o transportava de carro para algum lugar e lembro que ele deitou sobre meu colo e senti amor naquele momento, senti conforto e calma e ali ele permaneceu até voltar ao seu alvoroço e ansiedade comuns de querer olhar para tudo e chegar logo a algum lugar. Desci do carro enquanto meu pai abria o portão e o deixei sair para onde quisesse. Estava livre. Havia alguns cachorros curiosos, mas ele sempre me pareceu indiferente aos outros de sua espécie. Sua relação com os outros era de puro e genuíno desinteresse, mas eu desconfiava que ele fosse simplesmente muito tímido. Esquentei a sua comida com água quente, pus água em sua tigela e no outro dia voltaria e faria a mesma coisa e ele sabia disso, pois sempre quando eu me despedia ele permanecia no mesmo lugar e me recebia no mesmo lugar. No início da varanda perto da torneira. Meus pais foram levar-lhe a comida nesta manhã e me informaram sobre o fato de ele ter vindo a óbito. Nessas horas, só pensei em que tipo de dor ele deve ter sofrido. E talvez, maior do que o seu estômago vazio e cáustico e seus ossos doloridos que faziam com que levantar-se de um agradável sono de fim de tarde se tornasse um esforço hercúleo, morrer só tenha sido o maior castigo que ele poderia ter tido. Longe de todos aqueles que o amavam e de todos aqueles que ele protegia com seus dentes ferozes. Se não me engano, foi Tolstoi quem disse que a felicidade só é plena se compartilhada e os cães são a prova disso. Sempre balançando os seus rabos não importa o que tenha acontecido. O mesmo vale para a dor, a tristeza... Ela só mingua se compartilhada, ela se torna suportável. A solidão é anti-natural e isso é facilmente verificável quando observamos fenômenos naturais e sociológicos. A solidão é a estrada para a morte. Sempre ouvi dizer que os cães quando estavam diante da própria morte se afastavam e morriam solitários. Mas, ele, Chatran, se recusou a morrer como um cão. Seu corpo sem vida jazia no mesmo lugar em que eu me despedia dele sempre que o deixava na casa da praia, no mesmo lugar em que ele me aguardava quando eu regressava para dar-lhe o que comer. Havia vestígios de que ele havia estado em outros lugares na casa, mas ao que me parece, o início da varanda era um local importante para ele. Simbolizava esperança, dever talvez. Esperou pacientemente o momento em que ele poderia balançar o seu rabo mais algumas vezes.
Chatran* 22 de Fevereiro de 2002 - 30 de Maio de 2013

quarta-feira, 15 de maio de 2013

RA-TIM-BUM

Era criança. Naquele momento de nossa existência em que a nossa consciência parece despertar do vazio absoluto se não fossem pelas fotografias e histórias repetidas cotidianamente que nos fazem recordar ou reconhecer que somos aquele mesmo indivíduo que... mordia as visitas que apareciam ocasionalmente!

Eu havia literalmente despertado e estava tudo tão escuro, não havia ninguém para me amparar durante a, talvez, minha primeira grande revelação. Estava atordoado com aquilo tudo. Eu quase nem sabia quem eu era se é que eu soube alguma vez. Como fui parar ali? Quantos anos eu deveria ter agora? Acho que ontem eu deveria ter uns três anos e aparentemente agora eu deveria ter pelo menos o dobro.

Como eu dizia, estava escuro e conforme eu ia recobrando a minha consciência após ter me levantado daquela cama estranha eu pude escutar as vozes em harmonia. Vozes e palmas ensurdecedoras. Um frenesi rítmico repetindo a mesma frase por pelo menos duas vezes: "é pique". Coloquei a minha cabeça sorrateiramente para fora da porta e pude ver várias pessoas ao redor de uma mesa e havia uma chama bem no meio. Parecia ser uma vela.

As vozes em uníssono pareciam se encaminhar para o seu destino final enquanto repetiram três vezes outra frase: "é hora". Senti calafrios em minha espinha e uma vertigem de me atirar para o meio daquelas pessoas hipnotizadas pela cantoria, que fazia questão de ressoar para fora com mais força as vozes femininas. Vi as sombras refletirem cambaleantes nas paredes e conforme o ritual se aproximava do fim elas pareciam cada vez maiores.

"RA-TIM-BUM!". Imediatamente minha vista foi ofuscada por uma luz tremenda que foi emitida da vela. Gargalhadas caricaturais que pareciam ter vindo de qualquer filme do Zé do Caixão reverberavam pelas paredes e mesmo sem enxergar eu me joguei de volta para a cama na qual acordei. Me cobri com o lençol grosso que estava ali ao alcance das minhas mãos enquanto escutava vários barulhos. Vidros se estilhaçando no chão, vozes horríveis gritando em alto volume sem medo de acordar coisas ocultas, portas se chocando fortemente como se terrivelmente empurradas por alguma força descomunal, gemidos lancinantes que estupravam os meus ouvidos.

O fedor amoníaco que se desprendia das paredes conforme a noite se prolongava começava a me causar náuseas... Finalmente, escutei algo adentrando o quarto em que eu estava. Tinha certeza que estava me observando. Era uma eternidade aquele momento em que lá estava eu, me fingindo de morto, prendendo a minha respiração e aquela criatura ofegante e fétida insistia em permanecer ali me olhando. Quase como se soubesse o que eu estava pensando e com a intenção de me torturar friamente até que decidisse me levar à reunião com toda aquela barafunda macabra.

Podem ter se passado anos, nunca pude calcular. O temor de que aquela massa orgânica e demoníaca finalmente crave as suas garras em mim é interminável. Estou aqui deitado sobre essa mesma cama velha e fria que mal cabem as minhas pernas e a insanidade prossegue neste lugar abandonado por DEUS. Ele ou ela ou isso, ainda está ali me observando. Prostrou-se no chão e tenho certeza de que não tira os olhos de mim.

Um grito estridente veio de algum lugar lá fora. Tomo um susto e acabo soltando mais ar do que devia. Para onde eu vou correr? Permaneço no mesmo lugar. Estático. Com a mesma atitude de quando eu era um menino. Aprisionado em um quarto escuro com um torturador especialmente sádico no infinito dos tempos.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Dor!


Dor!
No peito, no ombro, no intangível
A dor com causa no invisível
Que faz a unha roer, que faz a vida ruir

Pervertida, sombria, e aguda
A dor no peito, que corta, que assusta
Me faz morar na agonia

Essa insônia, um sofrer óbvio
Melancolia, transtorno, ódio
É muita angústia, pouco pavio
Há pouco ar...

Eu senti medo e fiquei sóbrio
Eu senti ódio e fiquei bêbado
Frenético, louco e sem controle

Um pouco só
Um pouco zelo
Por pouco tive à mim mesmo
Por pouco
Pesadelo.

A dor no peito a que me entrego
A dor de medo do que quero
A dor que é pura fantasia
Que migra a carne quando penso
Que é desatino desatento
A dor que some quando eu rio

É pálida, sombria, é vazio
E põe a alma por um fio
Ao que me exponho em duvidar

Se viver é preciso
Se me é necessário


Allysson T.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Máscaras

Ele peidava bastante. Às vezes era engraçado, outras o fedor superava a graça e muitas outras vezes era simplesmente peido. Um rascunho de bosta, o devir da cagada, o bafo insuportável da verdade que habita as entranhas, da feiura da vida, do enxofre dos infernos, da sopa primordial.

Um dia ela negou a tolerância, a coexistência com o peido alheio. Irritou-lhe as narinas molestadas, o fastio corroeu a sua moral e até mesmo a sua biologia. A podridão pertence aos abutres, aos siris, às baratas, vermes e ratos. À essa corja maldita! e de forma alguma deveria ser disposta aos valores humanos, ao menos nos mais imediatos.

Cheirar o peido do outro é como aspirar o que há de mais podre dentro dele. É quase como um vírus, um parasita, um germe nocivo à saúde... É tão íntimo e palpável, que nos afeta no âmbito abstrato, no campo florido das ideias, de tanto impregnar-nos fisicamente. A coisa transborda e foge para o sonho se estiver dormindo, para o pesadelo se estiver acordado. Não existem barreiras dimensionais.

Suja as vestes, os biscoitos, as trepadas, suja tudo com sua imundície arbitrária.O som do peido é o rufar de tambores que precede a batalha, é a sirene do misterioso e derradeiro ataque das tropas inimigas.  Ninguém sabe de que forma será atingido por mais que ele seja prenunciado.

- Você parece uma bomba de gás - ela disse.

Aquilo pareceu afetá-lo como uma punhalada nas costas, uma confissão de um segredo horripilante, a revelação de uma mentira habilmente escondida por debaixo de seu próprio nariz ou uma acusação contundente e inesperada. Ela não deu muita atenção. Estava muito aborrecida com os peidos para se incomodar com uma reação exagerada por parte dele. Afinal, eram só peidos e nada mais.

Só estava cansada de ter que inalá-los ao menos umas 30 vezes por dia. O amor que sentia por ele, compensava o fedor que muitas vezes se desprendia de seu intestino voluntariamente em seus momentos íntimos e algumas raras vezes, acidentalmente, em locais públicos. Apesar de se questionar sobre a suportabilidade, geralmente sem se levar muito a sério. Mas, ele começou a agir estranhamente desde que ela se manifestou em relação a suas bufas.

Já não a olhava da mesma forma, parecia evitar alguma coisa. Evitava emitir gases de seu ânus na presença dela e muitas vezes ela apenas sentia o horrível cheiro como rastros abandonados no banheiro. Certa vez, até mesmo se pegou sentindo saudades dos velhos e quase ritualísticos peidorreiros cotidianos.

- Por que está assim? Já faz um mês! O que foi que houve? Por que não me olha mais nos olhos?

Ele a encarou com uma expressão melancólica em seu rosto e segurou as suas mãos. Tomou um pouco de ar e parecia que finalmente decidiu falar alguma coisa, mas preferiu não dizer nada trancando-se desesperadamente no banheiro.

- Ei! O que foi que houve? Me diga alguma coisa!

Ele abriu a porta liberando aquele velho e insuportável cheiro de ovo podre e sob aquele cáustico e pantanoso ambiente, ajoelhou-se e retirando a sua camiseta regata, rasgou a própria carne com os seus dedos, revelando uma estrutura metálica ao invés de ossos, de sangue, de alguma coisa orgânica.

- Eu sou uma bomba de gás - disse aos prantos enquanto peidava.

30 minutes or less

- Me surpreendi com outro blockbuster! Engraçado como este termo pode soar bastante pejorativo para algumas pessoas. Pra variar foi uma comédia. Vai querer uma cerveja?
- Pode trazer!
- Já estou um pouco embriagado. Acabei de assistir ao "diário de um jornalista bêbado", inclusive. Foram algumas cervejas. Prefiro devanear com vinho ou qualquer outra coisa. Mas, cerveja serve.
- Espero que tenha algo sagaz para me dizer desta vez. Sinceramente, não me convenceu com a outra hipótese. São apenas fantasias extraídas de um roteiro insosso. A super-interpretação de... uma obra de Duchamp, por exemplo.
- Você é um sujeito muito pragmático, sabia? E não sabe do que está falando! Aliás, precisa enxergar mais quando os seus olhos estão irremediavelmente trancados. Sonhar é essencial e falo também em termos de essência do ser, a latência da vivacidade. 
- Tenho você aqui para me presentear com suas visões divinas. Se eu me afastar da minha função poderia causar, sei lá, um cataclisma cósmico ou algo do gênero. Você é o sonhador... eu sou apenas o seu vigia. Aquele que cuida para que nada fuja do controle e acabe destruindo o primeiro muro do primeiro bar que você aterrissar com a sua sede etílica.
- Ah! a cerveja! 
- Não tá tão gelada, mas dá pro gasto!
- "30 minutos ou menos"... é sobre um entregador de pizza, que acaba sendo sequestrado por dois sujeitos que pretendem assaltar um banco, durante uma entrega. Implantam uma bomba no entregador e o obrigam a realizar o crime por eles, caso contrário ativarão a bomba que o explodirá. Seria um roteiro de um filme de ação se não fosse pela característica nitidamente cômica das situações e os atores selecionados também contam muito. O filme poderia não ser nada demais se não fossem as belíssimas cenas dramáticas. A comédia e o drama andam sempre de mãos dadas ou ao menos desvencilhadas por alguma discordância, mas sempre caminhando na mesma praia. Ou ao menos deveria ser assim... Este filme faz isso com primazia. 
- A cerveja está realmente quente...
- Na iminente possibilidade da morte, que poderia se suceder com apenas um clique, o entregador se declara para o seu amor, que é irmã do seu melhor amigo... Enfim, essas informações não me convêm agora. Você precisa assistir. Sentir o drama no momento em que o dilema de apertar ou não o botão que poderia fazer a personagem principal explodir pelos ares... O embate dos dois sequestradores, o conflito de suas motivações, do caráter dos "bandidos". Isso não se vê em qualquer produção deste tipo. O jeito como eles imbuíram a história bastante cômica com humanidade... Enfim... O entregador finalmente se dirige ao banco para realizar o assalto com o seu amigo da forma mais pateta possível. Ao conseguirem a sacola com dinheiro, colocada por uma funcionária do banco, o entregador se sente na obrigação de dar uma parte a um dos reféns que está no banco e foi atingido acidentalmente por um tiro. Quando o refém se dispõe a pegar alguns maços de dinheiro, uma jatada de tinta (dispositivo usado por bancos) é disparado no rosto do refém comprometendo o valor das cédulas que agora estariam identificadas como frutos de um assalto. O entregador e seu amigo a ameaçam e a obrigam a colocar mais dinheiro em uma sacola providenciada por eles, mas dessa vez sob a mira de uma arma e sob a vigilância deles. Ela afirma que esse é um procedimento da empresa e por isso agiu daquela forma. Ela recoloca o dinheiro e dessa vez sob a mira de uma arma (que na verdade é falsa, mas ninguém sabe).
- Hum...
- Bom, várias situações angustiantes se revelam para o entregador e o seu amigo e eles passam por péssimas situações. Se envolvem com um assassino de aluguel, a amada do entregador é sequestrada e ameaçada pelos "bandidos"... Muitas situações atípicas na vida de pessoas "normais" se sucedem a partir do assalto ao banco e o fato de o individuo estar com uma bomba amarrada ao seu corpo faz com que a reflexão sobre a iminência da morte seja tema constante no filme. Mas, pode não parecer genial pra você... aqui... agora... é muito sutil e até muito distante da nossa experiência-memória em estar assistindo ao filme, ao contrário do meu relato, mas... 
- Não sei por que, mas acho que vai me surpreender muito menos do que da outra vez.
- No final do filme, quando as personagens resolvem tudo de uma vez por todas e consideram a oportunidade de ficarem com parte do que fora roubado, o jato de tinta é disparado de dentro da sacola. A funcionária do banco, mesmo sob a mira de uma arma defendeu a sua empresa, a sua função, em um curto período. Alguns segundos, ela refletiu sobre a morte, a iminência dela, em alguns segundos para defender algo que, aparentemente, não é crucial para a sua existência, que não iria afetá-la, aparentemente, de forma alguma em contraponto com o onipresente dilema de vida e morte que a personagem principal enfrenta do início ao fim em um espaço temporal infinitamente maior do que a mulher por sua própria vida que é ameaçada diretamente e por aqueles aos quais ele preza mais do que a si próprio... É um filme sobre amizade e plasticidade. Mas, não é óbvio. É tão blockbuster que passa desapercebido.
- Olha o preconceito!