domingo, 31 de janeiro de 2010

Relatos sobre uma noite de domingo

Há alguns minutos o meu companheiro canino atravessou porta adentro com uma expressão assustada. Os animais tem uma sensibilidade muito maior quando se trata de eventos oriundos da natureza, talvez por que estão mais ligados ao cerne da coisa. Ele pôde ouvir os trovões rugindo dos mares e o cheiro de chuva se aproximar do continente. É domingo e chove.

O ar melancólico dessa noite acompanhada por um chá de boldo quente foi roubado pelos raios e trovões que simulam uma guerra nos céus. Eu consigo sentir o calor dos clarões, consigo sentir o ar melancólico fugir da noite e outra sensação se apossa de mim partindo do estômago. Não é medo, é mais como uma espécie de excitação. Só me incomoda o barulho cortante que é anunciado pelo clarão. Ele apunhala as lástimas da chuva, apunhala as minhas próprias lamentações.

Explosões sobre as nossas cabeças, e nossas casas, nossos fortes, parecem tão obsoletos diante desses bombardeios. Está queimando! Eu sinto minha carne e uma ânsia, uma expectativa de que meu couro irá chamuscar pelas lanças de fogo que são atiradas em nossa direção. Eu abro a janela... Não é o suficiente... Eu me jogo para fora no meio da chuva, não tenho medo de me molhar ou parecer um louco. Quero sentir o frio e o calor em comunhão. Quero expulsar um resquício de uma criança perdida e assustada, quero enfrentar também o meu medo animal. Vou sacar essa garrafa de vinho imediatamente!

Estou entregue à chuva, raios e trovões... Pois, depois de tanto tempo o domingo decidiu me visitar, como bons e velhos amigos.

I.B.

Uma história de ninar


Era uma vez...

A força que atingi a nuca da merda daquele palhaço foi tão grande que sua coluna cervical partiu ao meio como manteiga! Não podia deixar que ele fosse o responsável por alargar ainda mais o sorriso daquelas crianças. Tão encantadores... Eu poderia fazer isso com a minha navalha, rasgando seus lábios até o fim de suas bochechas. Iriam sorrir eternamente, mesmo durante toda a dor que estariam sendo acometidos. E o mais belo de tudo é que minhas mãos seriam responsáveis pelo enlarguecimento de seus sorrisos! Podem me chamar de assassino, sádico, mas prefiro me considerar um artista. Reproduzo a arte através da dor. Minha dor, nossa dor. Um pintor de tragédias, um escultor do sofrimento, um ator sem máscaras.

Entrei no salão e haviam vários balões e pirralhos, e pais, e conversas chatas sobre como eles investiriam tal recurso em quê e etc. Meu irmãozinho estava logo ali com seus amiguinhos e eu não poupei tempo. Com bastante cuidado eu comecei a balear todo mundo com a semi-automática que havia pego emprestado no quartel onde eu servia, sempre preocupado em não atingir o meu irmãozinho. Acho que em meio a todo aquele frenesi eu acabei me excedendo um pouco e atingi o meu irmão na cabeça, papocando os seus miolos para todos os cantos. Devo confessar-lhes que foi o momento mais infeliz da minha vida! Caí em prantos e por alguns momentos pensei em estourar os meus próprios miolos a ter que conviver com aquele crime... Eu só queria dar-lhe o presente mais magnífico que um irmão poderia lhe dar, algo memorável: uma boa história para ser contada para seus filhos.

Desenhos de Mark Ryden

I.B.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Cama de gato


Era como se não houvesse chão nenhum sob meu corpo adormecido. Sentía-me como se houvesse um piso fluido ou nem mesmo nada ali, como se flutuasse sobre algo quase intangível, sobre um céu vazio pincelado de nuvens por quase toda a sua extensão. Eu só sentia frio, um frio que era abastecido pelo vento que batia em minha face rispidamente. O vento gritava em meus ouvidos forçando-me a abrir os meus olhos para encarar a causa da sua própria lamúria.

O que veio em seguida foi uma sensação nauseante acompanhada de uma vertigem desesperadora que só não devorara minhas entranhas por fazer parte das coisas de qualidade abstrata, mas, foi uma questão de tempo até que meu eu completo reagisse àquilo. Com certeza o que não fazia parte dessa categoria de coisas (abstratas), imediatamente entrou em estado de torpor, forçando o meu corpo à desmaterializar-se por completo. O espanto que eu levei se alastrou para o corpo, ou fora o contrário? Talvez o corpo e a mente tenham reagido concomitantemente, sem intervalos perceptíveis.

Eu estava sobre a minha cama, coberto por um grosso edredão, no meio da noite, há alguns milhares de pés do chão talvez, há alguns milhares de pés do que convencionamos de realidade.

A cama se locomovia horizontalmente como uma espécie de planador bem veloz. Era como se a verdadeira função dela fosse na verdade voar e não servir de leito para os "sonhadores". Demorou um pouco até que eu me acostumasse com o fato de estar sendo transportado para não sei onde, em cima da cama que eu durmo desde criança. Com o tempo passei a oferecer-lhe a mesma confiança que eu lhe concedi todos esses anos... meu recanto, minha cama, meu conforto, onde eu repouso não somente o corpo, mas a minha alma.

A lua estava cheia e no momento que uma enorme nuvem a cobriu e a escuridão se apossou de toda a vastidão do céu, como se não bastasse o baque inicial que me custara a conseguir ficar tranquilo com a idéia de estar planando em cima de uma cama voadora, nós começamos a cair, trazendo à tona toda aquela sensação aterrorizante. Não posso dizer que lembro exatamente de como foi que aconteceu, mas eu já estava no chão, era escuro demais para distinguir onde eu estava. Estava sobre uma espécie de pilha de ursos de pelúcia (foi o que imaginei no momento), repleta do zunido de centenas de moscas, e cheirava à sangue. Comecei a ouvir alguns gemidos meio nasalados que pareciam com algo homônimo à miados e vozes de pessoas. Pude ouvir algumas tosses muito fortes regurgitando algo de odor horrível. A nuvem fora soprada da frente da lua como uma cortina revelando a sua atração principal, ela se mostrou ainda mais luminosa do que antes e revelou o que seria aquele lugar.

Estava sobre uma montanha semelhante aos depósitos de lixo das cidades. Ao invés de lixo, haviam enormes bolas de pêlo e corpos de gatos sem cabeça. Estremeci quando fitei as criaturas que estavam emitindo aqueles sons. Eram gatos com cabeça de chineses! Aqueles olhinhos puxados, aqueles pescoços costurados nos troncos dos gatos, e eles cantavam para a lua, me ignoravam naquela pilha morta de cadáveres decapitados. Enquanto uns prosseguiam com aquele cântico macabro, outros se punham a vomitar o que eu imaginei serem bolas de pêlo, na verdade o que eles expulsavam de seus estômagos era uma espécie de animal peludo e viscoso que se contorcia espasmodicamente produzindo sons agudos que assemelhavam-se a risadas.

Corri imediatamente aonde estava a minha cama e tentei em vão fazê-la levitar. Passei horas e horas tentando convencê-la a tirar-me dali, mas em vão. Provavelmente a insanidade estava a se apossar de mim, é indiscutivelmente impossível dialogar com uma cama. Me deitei na pilha de gatos decapitados e mirei as estrelas no céu, já não me incomodava mais com as milhares de moscas que compunham aquele túmulo gigante. Elas estavam por toda a parte, insistentemente tentando entrar pelos meus ouvidos, nariz, boca, era muito difícil respirar. As estrelas pareciam tão vistosas naquela noite...

Passeei por entre aqueles montes de corpos como um destemido viajante, sentindo-me um verdadeiro desbravador. Mas, não havia nada além daquelas aberrações por todo o horizonte. O hino para a lua parecia crescer conforme a noite se aproximava da madrugada, mergulhando cada vez mais no breu, como se fosse o último beijo, o mais intenso, que precede aos raios de sol que fulminarão com toda aquela cantiga noturna. Afinal, dizem as más e boas línguas que a noite é mais escura antes do amanhecer. Olhei para uma poça de sangue sob minhas pequenas patas e vi a face de um menino chinês sendo refletida. Imediatamente comecei a retrucar alguma melodia.

I.B.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

O cemitério dos vagalumes


Poderia começar essa história descrevendo a campina esverdeada onde ele estava sentado, onde ele sempre sentava para ouvir os grilos, os pássaros, o chacoalhar da relva soprada pelo vento e todos os sons que compõem uma área afastada dos conglomerados urbanos. Deixarei essa tarefa para você.

Era de costume sentar por ali e apenas ouvir os diversos sons que eram emitidos das gargantas, traquéias e tórax, do vento, dos insetos, dos pássaros, do bater de seu coração. Costumava descrever isso como "o silêncio tagarela" ou "a voz do silêncio". E naquela campina, era o único lugar onde ele podia ouvir o que eu considero uma das mais importantes fatias do que chamamos de vida: o próprio pensamento. Um exercício inestimável, um oásis guardado dentro de si, um córrego infindável daquilo que nos supre com a "seiva da salubridade".

Mas, hoje ele se sentiu só.

Já era noite. Ele acabou adormecendo por ali mesmo, algo que nunca havia acontecido, pois, ele costumava voltar no final da tarde para sua casa. Quando abriu os olhos demorou um pouco para suas pupilas assimilarem a ausência de luz, e durante esse período via alguns pontos luminescentes indo de lá para cá, acendendo e apagando. Eram vagalumes. Milhares deles! Ocupavam quase toda a campina. Como se o céu estrelado houvesse descido à terra para mostrar que elas, as estrelas, não passavam de vagalumes sempre a piscar. Mais adiante, havia uma espécie de marcha nitidamente se destacando de todos os outros. Uma fila de vagalumes que estranhamente imbuía a eles um caráter humanizado, racional, algo premeditado por um bando de animaizinhos minúsculos. Ele decidiu acompanhar a procissão.

Havia uma única árvore em toda aquela vasta planície, e era grande, imensa. Curiosamente nunca a havia visto por ali. E os vagalumes se postaram em sua copa, em seu tronco corpulento, em seus ramos e galhos, criando um aspecto de enfeites natalinos. A presença dos insetos luminosos destacava nas proximidades da base do tronco uma mensagem escrita à navalha: "Estarei além da planície". Seu estômago correspondeu àquela mensagem da mesma forma que dois amantes sentem-se ao se ver depois de muito tempo. Uma ânsia de apreender aquilo tudo para si em uma fusão de sensações e trocas sinceras das coisas mais bonitas que existem dentro de si. Um verdadeiro processo antropofágico. E ele deglutiu cada letra talhada na casca da árvore. E como um fenômeno puramente orgânico, ele correspondeu à mensagem.

Nunca mais fora visto por aquelas bandas. Como se em uma tarde qualquer, fora ao supermercado e nunca mais voltou.

Desenhos do filme Grave of the fireflies

I.B.