quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Hoje

Alguma coisa começou a mudar e eu ainda não sei exatamente o quê. O céu está tomado por edificações monstruosas, castelos fantásticos, catedrais, montanhas e elas despencam vagarosamente em direção do solo, ofuscando a lua nesta noite trêmula e fria. As pessoas se amontoaram na frente de suas casas para observar com pavor a exibição absurda daquele momento singular da história da humanidade. O dia em que a realidade escancarou suas portas, janelas, para o absurdo.

Pela primeira vez em mais de uma década, pude ver meus vizinhos reunidos ali na porta, interagindo, fazendo parte de uma comunidade. Reunidos pelo medo. Não um medo comum. Um medo do desconhecido, medo das fronteiras da percepção, medo da inexatidão, medo de perder suas certezas, medo de serem incapazes de alcançar os seus lugares misteriosos, medo da loucura.

Eu havia entrado em uma dessas construções há alguns anos com um amigo. Ela havia surgido onde antes era uma casa abandonada na rua detrás. Não conseguimos compreender o que estava acontecendo, mas sentíamos que era grandioso. Era maior que qualquer coisa que algum indivíduo havia experienciado.  A coisa sumiu do mesmo jeito que surgiu e por muito procuramos sempre afogar estas lembranças nebulosas. Tudo não havia passado de um delírio compartilhado.

Uma mentira provocada por circunstâncias improváveis e uma carência por uma fantasia quimérica que só teríamos acesso em uma partida de RPG ou um sono profundo. Os sonhos foram feitos para morrer junto com seus sonhadores e atormentar aquele que desperta com a memória de um universo despedaçado. Através desta rodovia é que conduzimos por qual senda vamos nos embrenhar e em qual ponto vamos nos chocar em qualquer ponto ocasional.

Talvez naquele dia, nós dois não fizemos mais do que abrir um portal para que essa coisa viesse para cá. Pelo simples fato de termos coexistido naquele pedaço de um mundo impossível, ele próprio impôs a sua existência, esta é a sua condição. Milhões de olhos se amalgamavam na visão apocalíptica da fusão de dois mundos aparentemente antagônicos. A imaginação desabava sobre as noções fabricadas pelo bem comum.

Todos aguardavam a aterrissagem daquelas construções, daqueles horizontes, relevos. Será que havia alguém vivendo ali? A ansiedade mastigava o estômago daqueles corpos silenciosos e desamparados. Se há alguém lá, eles estão dispostos a dividir o mundo cá embaixo conosco? Talvez simplesmente deixaremos de existir assim como foi no dia em que eu e meu amigo, na casa abandonada, tivemos o que por muito nos esforçamos a interpretar como uma alucinação coletiva. A plenitude de um mundo necessariamente reivindicaria a anulação do outro?

Havia tão pouco tempo e provavelmente o gastaríamos simplesmente sentindo medo. Existiu um período em que havia muito tempo e o medo, nós construímos para nos isolar do mundo lá fora. Nada havia mudado exatamente. O que começou como uma manifestação sobrenatural e encantadora do absoluto alastrou-se para o interior do coração dos homens como uma chaga. Não havia espaço para não-espaços.


Eu já havia sonhado muito, todos os dias. Já fui trocentos heróis e trocentos covardes. Já enfrentei centenas de monstros e dezenas de amores e cada vez mais pessoas se amontoavam na frente de minha casa para me consultar sobre alguma coisa proveniente de um lugar que achavam que era íntimo de minhas elocubrações frequentes. Queriam ir, pelo menos, com a ilusão de compreender o que viria dali e no meio daquela balbúrdia mimética eu vi a esperança alva como se a lua ofuscada tivesse descendido o céu nublado e tomado pelos rabiscos mais nefastos das mentes mais criativas. Me aproximei de sua consternação resignada e em tuas plumas cândidas eu a fiz sorrir. No último dia. No último agora. No último hoje de um amanhã que nunca morreria.

I.B.

Pintura de Jacek Yerka.