sábado, 25 de setembro de 2010

Amálgama


Não sei até onde é intencional essa leitura rasa de uma vala tão profunda que é a vertigem de ser enredado pelos vastos desertos da perdição e geleiras inanes da mente. Ou os não menos perigosos vales férteis e moradas das fadas e bichos-papão. Mas é o que minhas faculdades psíquicas tem a lhes oferecer, já tão desgastadas a essa altura. Estou cansado e é isso que lhes dou. Uma descrição cansada sobre a exaustão da consciência. Gostaria de lhes dizer que ela estava ali no princípio, testemunha da agonia em pessoa, dos surtos epilépticos de uma mente avariada.

Eu estava sentado junto àquelas pessoas. Conversando sobre histórias de arrepiar em pleno dia, pois é mais seguro. Experiências fantásticas transitando na realidade, ou assim eles queriam me convencer. Felizmente, estava entretido demais com o abismo da minha própria mente para dar atenção àquilo por ora. Sentia a sola dos meus pés escorregando sutilmente em direção ao breu de um mundo desconhecido, nunca visitado por mim. Eu não queria pegar aquele atalho rumo ao delírio completo, era desesperador.

A insanidade usou o meu estado psíquico vulnerável para se instalar em minhas densas e férteis selvas. Foi quando notei que não só havia um precipício com o qual eu deveria me preocupar. Os outros, sentados sob aquela árvore antiga, abrigavam também dentro de si os seus próprios abismos, suas próprias estradas, e por mais desconhecidas que fossem não deixavam de me ser horrorosamente íntimas. Teletransportes inexplicáveis, sombras vivas, uma pousada que era residência da perversão personificada...

Sentia a minha própria consciência ser puxada delicadamente como que por uma correnteza traiçoeira e sutil rumo aos recifes alheios da existência de cada um daqueles que ali estavam narrando a sua cota de absurdos irracionais e se espantando inocentemente. Inocência essa que uma vez perdida... Aquele papo que se desenrolava era sem pé nem cabeça, pareciam aqueles relatos que se sucedem em histórias de ficção ou filmes de terror e comecei a me sentir como parte de uma trama, assim como Sofia, Alice e muitos outros antes delas.

Havia um espantalho caminhando em nossa direção, carregando nas costas um quarto de paredes amarelas. Abri a porta e entrei sem nenhuma cerimônia e deixei para trás aquele lugar assombroso de brumas cinzentas e fétidas. Minha cabeça ainda pendia para algum lugar bem fundo e além de tudo o que eu tinha conhecimento. Era como se eu estivesse sendo tragado para as profundezas de um oceano banhado por algo ainda mais sinistro do que as trevas, soterrado por cavernas dentro de cavernas das zonas abissais e rodeado por monstros gigantescos dos mares mais maliciosos. O que eu ouvira até então, não passava de um sonho distante acerca de um diálogo fantástico proferido nos domínios da realidade.

Um cachorro sorridente, que estava ali no quarto vestindo aqueles trajes típicos de mordomo, me ofereceu “uma xícara de chá ou de café”, preferi o chá. De alguma forma esquisita, eu me senti seguro naquele refúgio. O que mais me incomodava na narrativa daqueles contadores de histórias era aquele velho maniqueísmo desconfortável que chacoalhava os meus próprios pensamentos.

Não perdurou muito aquele calor aconchegante de segurança. O calor começou a ser invadido por um vento gelado e forte, tentei me agarrar do fundo da minha alma naquele aposento amigável, mas tudo aquilo escorregava de mim. O cão se desfazia aos poucos como chocolate em banho-maria e quanto mais eu me pendurava nas cortinas etéreas das janelas do quartinho, mais eu era empurrado porta afora.

Acordei.

As pessoas continuavam a cavar cada vez mais buracos com os olhos, com as bocas incansáveis e os pulmões congestionados, “cof cof”, expandir aquele gigantesco cânion sob aquela árvore antiga. As raízes ameaçavam se atirar rumo a um despenhadeiro interminável. A belíssima jovem estava sabidamente encostada no tronco da árvore e não havia mais do que risadas em sua participação na gênese daquelas covas fundas. Ela também não pretendia despencar.

I.B.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Otherside


Um estômago vazio servia de abrigo para um gigante, embriagado com a sua própria privação, que se debruçava sobre uma poça branca e gosmenta. O vômito escapava-lhe da sua garganta e narinas como urina explodindo da uretra de um velho bêbado. Faltava-lhe ar, faltava-lhe até mesmo aquela matéria podre e pestilenta que teimava em lançar-se de dentro do mais profundo vazio. Estava sufocado, aquilo tinha que acabar o mais breve possível ou acabaria deglutindo o seu próprio organismo transformando-o em um verdadeiro escarro estomacal.

Antropofagia suicida do sistema em colapso. O decadente Titã tremia de dor e desespero, testemunhava a si mesmo como um espectador impotente e sofria aquelas fustigações como uma vítima indefesa. Era um Deus solitário e uma presa ao mesmo tempo, alvejado pelas perversões de uma terceira personagem invisível. Aquele grande estômago expandiu-se para comportar tanto vômito e se reduziu a isso: uma pasta melequenta e branca como o líquido leitoso que se desprende ocasionalmente das paredes do casulo vaginal.

O gigante e aquelas mucosas peristálticas estavam ensopados, engasgados com o próprio vômito, submersos no caldo primordial. Mas só havia sinal de desnutrição e sucção de qualquer mínima menção de vitalidade. Um verdadeiro ato de menstruação masculina milhares de vezes mais infértil do que a vitamina infecunda uterina empapada de sangue.

Escadas, escadas e mais escadas. Haviam jovens, uma dúzia deles naquele cubículo. Uma centena deles peregrinava fora dali, em um complexo de arquitetura confusa cheio de escadas, de um lado para outro, sem lógica aparente, pelo menos para mim. Acreditavam em uma gestão nova para a sociedade, algo que nada tinha haver com essa que foi espremida contra nossas bundas flácidas. Uma voz se atirou como um tubarão em meus pulmões amedrontados, dilacerando-os com seus trocentos dentes demoníacos. Exigia um sacrifício de nós, não sei exatamente para qual propósito. Não fazia idéia de quem proferia essas palavras graves e tirânicas, talvez ninguém soubesse. Aquiesceram. Estavam prontificados a cooperar. Um deles pegou a tesoura de um dos dois enfermeiros de faces borradas que iriam auxiliar-nos nessa operação e cortou a própria jugular, despejando todo o seu sangue na mesa de cirurgia. Outro arrancou um olho de fora da órbita sem nenhuma hesitação, outro cortava suas orelhas, lábios, as ventas... A orgia de automutilação parecia ser interminável. Saí do cubículo sentindo um pouco de vergonha por não ter ajudado aquelas pessoas. O medo de arrancar alguma parte do meu corpo para construir um Frankenstein de funcionalidade duvidosa era maior do que esses valores confusos que se apoderavam das pessoas e também das escadas e espirais e quadriláteros daquele cenário de filme noir. Vaguei em busca de um rosto familiar e confortador para preservar a minha sanidade e apaziguar o constante pavor que transpirava de todo o meu ser. Nada achei senão corpos estranhos e espectros de algo que outrora pudera ser chamado de humano. Homúnculos e não pessoas plenas. Eu era uma alma solitária perambulando nas fronteiras da loucura.

Enfim um rosto. Um menino, pequeno burguês, cabelos lisos e pretos, caucasiano. Senti raiva dele e de seus amiguinhos engomadinhos e suas guitarras elétricas desafinadas. Tinha que matá-lo! Fui convidado àquele mundo com esse propósito. Não era o meu corpo que eles queriam, era o meu ódio. O ódio era maior do que o medo, do que a vergonha. Lá fora minhas entranhas me encarceravam nessa jaula que é o labirinto da mente. O pesadelo constante do meu cotidiano transcendental da condição de artista sonâmbulo. Não era apenas o menino que eu deveria matar, mas também o seu pai. O falo pernicioso que se alojou em um útero estragado e estava contaminando tudo com aquele corrimento amarelado e escleroso. Matei-os furiosamente como um vingador psicótico dos filmes de ação americanos. Via-me como se exterminando a personificação do Tio Sam em pessoa. Eu não apenas matava o sonho americano ali, mas afastava de todos a sua manifestação deformada. Mostraria que esse sonho não passava de um pesadelo. Para a minha angústia, nada aconteceu. A morte não fora reveladora, não me trouxe a consciência suprema do "espírito do tempo" ou da minha interiorização absoluta. A morte foi em vão. Apenas mais um homicídio indiferente às comunidades globais.

O bebê sorria, sarcástico, impaciente. Amava-me intensamente, mas eu era apenas uma criança para ele. Estava à beira da morte e sabia de todas as coisas do mundo, menos de si próprio. Queria que eu plantasse o meu esperma em sua barriga antes de deixar os breves meses milenares de sua estadia naquele mundo. Estava definhando e ria alegremente, mas não estava feliz. Não queria me deixar ali sem o seu amor puro e devoto. Benjamin Button? Não estava feliz por que uma doença molestava cada célula de seu corpo frágil, por que não tinha algo elevado para se compartilhar com alguém. Apenas dor. A alegria emergia de mim e não dela. Eu queria devorar-lhe as entranhas com o meu pênis, não sentia vergonha disso e nem medo. Sabia que seria tachado como um monstro insensível, mas a amava. Amava a sua alma, o seu espírito, a sua mente. O corpo não me era atraente. Definhava. Comeria tudo e só restaria uma criança morta na sarjeta. Estaria feliz em seus últimos momentos, em seu confronto com o câncer feroz que marretava o seu crânio ainda mole, rasgava seus lindos dedinhos e olhinhos esbugalhados de curiosidade virginal.

Miro o teto noturno do meu quarto. Posso vagabundear por milhas e séculos nas eternas estradas aracnídeas da insanidade, mas em questão de segundos retorno a este lugar. A garganta está inflamada, como se um vômito denso e escaldante tivesse sido gorgolejado por ali. Não sentia cheiro ou gosto algum. Nenhum sinal de regurgitações involuntárias no meio da madrugada. Estava sóbrio. Foram apenas os zéfiros que pularam do ventilador de teto em direção às minhas cordas vocais. Eu estava com fome, mas não ousei me levantar do divã por preguiça e indiferença. O telefone tocou. Era alguém que eu sempre procuro insistentemente em busca de ajuda no Outro Lado. Mas foi aqui onde ela atendeu ao pedido de socorro. Pois lá, não existe mais ninguém a não ser um Frankenstein retalhado em carne viva.

Esses cenários surrealistas, absurdos, indigestos não se rebentam espontaneamente. São frutos de um exercício de pensamento involuntário na vigília e no desligamento. Frutos da depravação pessoal e impessoal, reflexos do mundo eu e do mundo outro. Sonhar é criar. Criar sem saber que se cria até o momento em que se pincela um duende desossado e envergado no ventre de uma baleia. É bem verdade que a substância da arte é o espírito, a criatividade. O sonho também é arte, pois se utiliza dela para empreender os seus negócios. Já a substância do artista é a fome, a ânsia de devorar o mundo e a si mesmo. Diferentemente de encaminhar-se a um restaurante chinês e presentear o seu apetite luxurioso, mas enfiar a cara e as fuças em uma lata de lixo e mastigar o plástico amarelado daquelas ancas enferrujadas. Ser animalesco e fazer-se penetrar pelas genitálias a fim de seduzir o cérebro e a alma do cosmos intimamente.

O sonho não se apropria de matizes, rostos ou cheiros. Todos eles são dispensáveis. Apropriam-se da alma como nenhuma outra obra de arte seria capaz. Aterroriza-nos, nos apaixona, nos faz questionar desde coisas complexas às coisas mundanas, nos banaliza, nos seduz até o nosso último rastro de decência. Sem cores, sem personagens definidos, sem gosto. Confunde a nossa alma, faz-nos desenterrar defuntos e memórias para compor um universo cada vez mais próximo da realidade por mais infundada que seja. Sou protagonista de verdadeiros romances epopéicos e gravuras grotescas do mundo abissal que habita cada um de vocês e nem preciso estender um músculo sequer para tal. Imaginem se expuséssemos nossas conquistas literárias do coma profundo em galerias. Faliriam todos os artistas que se enfileiram em púlpitos para divulgar ao público mais uma idéia genial, engajada ou não, sobre as mazelas e maravilhas do mundo. São apenas farsantes que dominaram as técnicas necessárias para tornar a realidade, a fantasia em rabiscos legíveis para o intelecto humano. Não posso negar que são uns canalhas talentosos e muitas vezes pretensiosos. Amo os artistas por serem atores, boêmios, felizes, deprimidos, protagonistas da sensibilidade humana, pois pegam emprestado uma careta, uma perna, uns níqueis, umas caronas de lugar nenhum para algum lugar e vice-versa.

O estômago gigantesco expurgou de dentro de si aquele Titã solitário. Saiu violentamente de dentro da narina do dorso de uma criatura atroz, colossal, o rei dos mares. Foi expelido daquela baleia monstruosa que vagava na vastidão erma dos oceanos, nas profundezas de um mundo perdido, esquecido. O gigante acordou meio ébrio, com uma ressaca terrível, “onde estou?”, em uma praia cheia de conchas coloridas e igualmente sozinhas. Nenhuma resposta ameaçou se manifestar. Nem os búzios vazios se preocuparam em reproduzir o lamento espectral das marés, o canto nostálgico do molusco fantasmagórico que leva para todos os lugares em suas paredes intumescidas. Só havia carcaças abandonadas no tapete de rochas trituradas pela água, pelo vento, pelo sal. “Minha alma ecoa um oceano distante que encontra residência em uma concha espiral”, diria um caranguejo eremita.

I.B.

*Cena do vídeo-clipe do single "Otherside" do Red Hot Chili Peppers

Ressaca


Velejo em direção do Sol por um atalho lunar e de lá vejo Vênus desenhada em um gigantesco e fluido espelho oceânico, notívago, enquanto o satélite germina em direção ao ponto mais alto da cortina esburacada em uma curva suave naquela estrada para todo e nenhum lugar. Um lapso onírico de meu sorriso brotando do seu útero. A água barrenta não me impede de ver uma corrente que desliza olhos abaixo e acaricia a fonte de nutrição da criança perdida em algum sono solitário. Eu penetro em sua derme e infecto o seu fluxo orgânico cuidadosamente, como uma taça de vinho e seu delicado torpor que dilata os vasos. Sugo a bile que você despejou em um café da manhã invisível. Sugo a seiva que uma árvore anciã guardou para você colher. Deus me dá bom dia em um domingo relapso. As pernas se abrem e engolem o dançarino das sombras. Uma montanha silenciosa repousa sobre a minha cintura, trêmula, aroma sanguíneo. Vício. Virtude. Dor. Rastejo pela praia e me arranho com os grãos de areia. O menor dos poros sacia a sua ânsia de vociferar as suas mágoas. Patos selvagens, lagoas, pranchas ansiosas para brincar de serem tronos de reis ferozes que cortam as ondas como lâminas de uma faca de cozinha em uma laranja teimosa. Lama. Escadas. O olfato sente o úmido toque da floresta que orvalha em meus pulmões. Cheiro de manhã. Bafo tímido e denso. Ponte. Mar. Chuva. E queima, e eu ardo, e eu gozo, e eu sacudo os remos, imerso em um céu ondulante. Meu estômago consome a si próprio em sua fome, encarcerado em uma cavidade esvaziada de um espectro etílico. O arco-íris declama a chuva, seu ventre canta a canção de meus lábios em mais um sono conjugado. E eu fujo como um náufrago aprisionado em uma ilhota desabitada sem um barco para acolhê-lo. Uma barafunda se aloja na marcha dos fantasmas cadavéricos. Iglu. Lagartos correm pelo cimento e concordam com toda e qualquer sugestão. Aranhas se esperneiam em coqueiros abandonados. Mordida. Seu lábio está cravado em minha lápide, meus olhos inscritos em seu broto. Rasgo-lhe a carne para permanecer ao teu lado. Vejo um mundo em pedaços, mas você permanece cândida. Varra os estilhaços desse casebre mofado e forre essas telhas esburacadas com o seu cheiro. Para todo o sempre. Tique-Taque. Um homúnculo, alguns versículos, uma constelação na areia. Seus olhos lunáticos refletem o Sol. As monções, os zéfiros sopram a minha vela idosa e o telefone toca debaixo do travesseiro. A embarcação segue o seu curso. Um peixe afugentado saltou acidentalmente para dentro do barco. Barracuda a espreita. Poema interminável. Romances ecoam em um coração dolorido de uma mente brilhante na esquina mais suja do planeta. Rabiscos de um psicógrafo acerca de uma noção incompreensível, inapreensível, que se disfarça dentro de um buraco em sua mente desgastada. O ricto, e a rede, e o violão, vacilam em uma realidade engendrada nessa que vos balbucio. Verborragia do ego em relação ao seu consangüíneo caricatural. Guarde para ti esse baú de confissões em um quarto empoeirado. Ele urrará o amor nas noites escuras de dias nublados e vão incendiar todo o aposento. Adeus, berro.

I.B. 03/06/2010