sábado, 19 de dezembro de 2009

O viajante estacionário



Era um fim de tarde quando uma linda garota de olhos calmos, desconfiados, singelos, chamou a minha atenção para fora da janela do veículo em que nos encontrávamos. Havia uma espécie de estação de trem no meio do nada, não haviam nem mesmo trilhos, provavelmente um resquício de décadas atrás que foi mantido como patrimônio histórico. O que mais me intrigou foi a presença de um senhor trajado à moda antiga, aparentemente aguardando alguma coisa por ali.

Não me recordo bem quantos dias se passaram desde aquele dia, mas passei denovo por ali, desta vez sozinho. Ao me lembrar da tal estação, decidi espiar pela janela do ônibus. Tive uma constatação assustadora. Para minha surpresa, o velho ainda estava lá. Usando os mesmos trajes, com a mesma aparência, o semblante taciturno, o corpo firmemente postado no chão, assim como uma estátua. Senti uma pontada gélida na espinha. Ao chegar em casa, não conseguia tirar aquela cena da cabeça. O "viajante estacionário", era como eu o chamava em minhas introspecções.

Exatamente quatro dias depois, já era de madrugada e eu estava voltando de algum lugar que não me recordo bem, é até mesmo irrisório saber disso. Por pura curiosidade, decidi pegar a estrada que levaria até a tal estação. Não esperava encontrar o senhor àquela hora. Mas, aquela velha tendência de futucar a realidade, de saborear o absurdo quando só provamos do velho e rançoso cotidiano, me seduziu libidinosamente até o lugar. Pobre do absurdo, deve estar empoeirado. Entendam o absurdo, como aquilo que é insólito e transcende o que chamo de realidade pré-pronta.

Bom, a essa altura vocês já fazem uma idéia do que eu vi, ou melhor, de quem eu vi. O velho postado naquele mesmo lugar. Decidi descer do carro e pôr um fim naquilo que tanto me atormentava dia após dia. Enquanto me aproximava do velho, ele me parecia uma montanha, uma rocha gigante, antiga, mas polida pelo impacto ininterrupto da água, que com o passar dos milênios constroem um aspecto suave à superfície da matéria pedregosa.

- O que faz aqui a essa hora, meu bom senhor?

O velho dirigiu sua face, que estava mirando um trilho imaginário ou qualquer coisa do gênero, para mim. Quase que tão silencioso quanto uma pedra ele me respondeu: - O trem - o timbre de sua voz era como uma vibração sísmica, o núcleo da terra em prantos, dotado de uma melancolia típica dos eremitas do monte mais alto e solitário que poderia existir. Praticamente não se ouvia nada em sua voz, se tateava no vento. Ele mostrou um passaporte azulado com as seguintes palavras: "Lugar nenhum para algum lugar. Data e horário indeterminados do respectivo ano. Não aceitamos a devolução de sua paciência."

- Não passam mais trens por aqui há décadas. Essa estação está fechada há mais de quarenta anos!

Eu havia feito algumas pesquisas sobre o lugar. Não era mais viável para o governo utilizar-se dessa linha férrea, pois haviam outros meios mais eficientes de transporte que reduziam as despesas do Estado. Eles desmantelaram toda a linha de trem e preservaram apenas a estação, que não era tão grande assim e por isso não prejudicaria a expansão física das construções urbanas. Estávamos lá, eu e o velho, no meio do nada.

Ainda passei por ali algumas outras vezes e em um certo dia, o velho não estava mais lá. Não havia nenhum sinal do velho, provavelmente ele se cansou e voltou para sua casa, ou morreu em sua eterna espera e alguém levou o seu corpo. Talvez fosse apenas um louco que fugiu de um hospício, um velho que não tinha o que fazer, um aposentado entediado, um filósofo decadente, um budista de plantão em trajes não convencionais, um passageiro satisfeito de um trem invisível.

Desenhos do filme My Neighbor Totoro

I.B.

5 comentários:

Fúria disse...

Sinceramente vc escreve muito bem.
fluidez, ritmo, potência imagética!
se vc stá fazendo algo que não seja literatura, arte ou música: PARE!

tatiana hora disse...

tem um viajante estacionário em Ghost world.
se não viu ainda, veja!

Unknown disse...

impressionante.

ra.quel passos disse...

Fluidez. Fúria falou bem. Caxinhus, meu caro, você tem uma facilidade incrível em transparecer muito de tudo do que você sente/vive/acredita/vê, e nos faz enteder de uma forma inacreditável e misteriosa - sempre utilizando as palavras e expressões cada vez mais coerentes e dignas para a realidade lapidada por sua pupila.

Uma coisa eu posso dizer (mesmo que talvez nem seja conveniente ser dita - ou não!): a sua evolução é nítida e prezo por essa constância!

Saudações da primeira compradora fanática do seu livro.

AldreI disse...

hehehe bem no estilo hayao miyazaki. e agora vc me deu uma urge do caralho de assistir esse filme.

torrent kd vc????