terça-feira, 4 de agosto de 2009

Perfume e Gozo


Não sei se deveria chamar de ingenuidade a incapacidade que uma criança bem novinha tem de distinguir certas coisas tão nítidas para os mais "maduros" - mais vividos ou vivedores talvez sintetizasse a palavra maduro melhor. Quando estão ao telefone falando com algum ente querido, presumem que gesticular um "sim" e um "não" são suficientes para dar a entender quem está do outro lado da linha. Entendo muito bem, deve ser de uma confusão muito grande assimilar que alguém está em algum outro lugar como aquele, real, material e não na própria linha do telefone. Da mesma forma, quando possuem um binóculo e encaram nitidamente uma pessoa que está a metros de distância, deduzem que suas palavras possam ser ouvidas claramente como se aquele indivíduo estivesse ali cara a cara com eles. Até compreendo a dificuldade que deve ser analisar as coisas através dessa perspectiva um tanto curiosa. Compreendo a incompreensão desse neófitos pois, esses se deparam com um mundo moldado por homens, ao contrário de suas naturezas primárias, brutas, selvagens, que antecede o homem por si só. Os pequeninos acabaram de deixar o útero do indizível e ingressaram na maculada morada do essencial dizível. O que se toca, vê, cheira, e obrigatoriamente tem que ser nomeado ou não faz sentido algum. Essa humildade imanente dos bebês é esbofeteada pungentemente.

Um certo príncipe me falou que o essencial é invisível aos olhos e certamente ouso acrescentar que é também inaudível aos ouvidos. A mudez é de sensibilidade muito grande e de difícil acesso. É preciso estar nas entranhas do mundo para deleitar-se em suas vinhas. Arrisco dizer que ela por si só antecede o sonoro. O silêncio é a voz das profundezas, do cerne da vida, da selvageria, do irracional, é o que realmente é por si mesmo e nada pode ousar comunicar-lhe a manifestação. Infelizmente os bebês são infectados no momento em que põe sua cara infeita no mundo, tendem a berrar e expurgar o silêncio ancestral de seus pulmões. Quando fazemos preces a algum Deus, necessariamente obtemos uma resposta muda e muitas vezes esse "nada" é encarado como vazio. O que é vazio senão ausência de alguma coisa? Ausência de voz. O vazio é a ausência de voz de um Deus incerto. E o contrário do vazio? Seria Deus em si mesmo? O silêncio é em si mesmo. O paradoxo entre o todo e o nada é indizível. Sentir é a solução para nós humanos, é a nossa verdade absoluta, mas para isso temos que renunciar a visão, os ouvidos? Renunciar a nossa humanidade?

Estou a sós com uma pessoa muito íntima e trocamos murmúrios quase insonoros, não queremos acordar alguma coisa que está a espreita, alguma coisa de uma virilidade irrecusável. O que dizemos é mera reprodução do que se sente no momento que se sente. Desconhecemos a profanidade das palavras, mas temos consciência de que elas estão logo abaixo do que não conseguimos dizer e apesar disso ás vezes elas soam tão belas. Imaginem o quão belo não deve ser o que não se pôde dizer. Não sei se o que nos preenche naquele momento é o absoluto, ou o absoluto é o que nos provoca essa sensação. O absoluto é o que antecede todas as coisas? Ou que a todas elas se sucede? O sussurro é de uma sensualidade avassaladora, é a tentativa de emudecer e comungar com o primordial infeito, a nossa parcela mutável e ainda assim intocada. Pois, o primordial está em fase de composição, mas também acabou de ser composto. O que antecede é música.

O momento em que duas pessoas se entrelaçam e trocam seus olhares mudos, seus sussurros mudos, seus sabores mudos, seus toques mudos, são passeios sorrateiros na fronteira do que se é. O que não é parece estar entorpecido naquela intermitência que subverte a natureza do que se afastara da natureza . O que seria o gozo então? A ingenuidade da criança que chora quando é concebida pelo ventre materno? O gozo seria a mudez que se pronuncia de forma audível? É o muito que reproduzido é um retrato pouco do que se não manifesta no mundo material. Mas será que nossa couraça apreende tudo quanto nos pode ser remetido? Somos mais que couraça, mas ainda obsoletos em relação ao rufar dos tambores de todas as coisas e não coisas que habitam e inabitam o universo e o desuniverso. Por que o intervalo de todas essas coisas não nos é apresentado. Não são suficientemente opacos para nossos olhos de gente. Existe um silêncio entre dois grãos de areia, um vazio agregante, eu quero estar entre eles, mas querer é pouco demais. Tudo é de uma magnitude ínfima quando se parte do pressuposto de almejar algo. O indizível só acontece uma vez e é destituído de expectativa. E na minha ignorância de algo que vive sem saber que vive o que vive, quero estar entre os grãos, por que foi lá que me disse certa vez que estaria.

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Escrito em algum lugar de Junho ou Julho.

Pintura de Mark Ryden.