quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Crepúsculo

Ansioso, esfomeado, esperei
"Não", eu disse para eles
Para você, todo convite é poesia
Toda a arte sou eu
Toda a vida é viva

Ansioso, esfomeado, esperei
"Não", eu disse para o pátio
Empertigado de gansos engravatados
Talheres tilintam com despolidez
Maxilares mascam refeições insossas

Ansioso, esfomeado, lhe chamei
"Não", dissestes para mim
Com a sua voz cálida e cheia de graça
Suave, amoque, densa
Bem perto do meu ouvido esquerdo

Distante
De todo o resto
De mim, do fim de tarde
Da lua, do poste, da praça reluzente
De todo o sol
Diz tanto

Resignado, indolente, esperei


I.B.

Departamento da Verdade (breve análise sobre a ética jornalística)


Liberdade. Um conceito um tanto complexo que permeará as questões abordadas no presente trabalho. Foram necessárias onze definições no Novo Dicionário Aurélio e sete subdivisões para exemplificar verbalmente o que o próprio Eugênio Bucci define como o direito de todo o cidadão. Nesse caso em específico, tratarei a liberdade exclusivamente no tocante à linguagem jornalística e evidentemente a primeira coisa que nos vem à mente é a noção de liberdade de imprensa, o que nos leva inequivocamente à outra noção tão morbidamente assombrosa dentro da realidade brasileira: ditadura. Assaz curioso, não é mesmo?

“Para o jornalista, exercer a liberdade é um dever porque, para o cidadão, ela é um direito. Para que este possa contar com o respeito cotidiano ao seu direito à informação, o jornalista não pode abrir mão do dever da liberdade” (Bucci, 2008, p.54). Historicamente a imprensa vem travando batalhas ferozes contra a propaganda e as censuras, que sempre estiveram atreladas às formas mais primitivas da prática jornalística e hoje agem de uma forma mais velada ou “aveludada” (como queira). Não é um fato exclusivo do Brasil, pelo contrário, nasceu muito antes de a imprensa ter chegado a nosso país. Mas, aqui, encontrou sustento para práticas arbitrárias que remetem desde antes da proclamação da república (JORGE, 2008).

Segundo Bucci, uma democracia bem exercida é aquela onde as informações de interesse público possuem livre fluxo. “(...) O governo, quando se associa à imprensa, tende a seqüestrar-lhe a alma” (Bucci, 2008, p.49). A imprensa deve fiscalizar o poder a fim de promover a transparência das ações dos órgãos gestores do Estado e por isso o jornalista deve estar alheio à participação direta dentro da máquina governamental e a par das ações que a mesma executa, nunca perdendo a sua função social de disseminar informação livre de qualquer partidarismo. O que na prática do jornalismo brasileiro, viu-se tremendamente deturpado pelo jornalista Lourival Fontes, sergipano e diretor do DIP (departamento de imprensa e propaganda) na era Vargas, responsável por uma série de atos arbitrários (LEITE, 2005). Um exemplo mais antigo de envolvimento da classe jornalística em cargos políticos de suma relevância foi a do colaborador alagoano de dois matutinos cariocas, a Gazeta de Notícias e o Correio da Manhã, Costa Rego, em 1907. Envolveu-se num movimento revolucionário que rendeu-lhe o cargo de secretário da Agricultura em Alagoas (JORGE, 2008).

O jornalista é responsável pela divulgação da verdade e suas implicações. Deve ser imparcial, objetivo e ter compromisso do princípio ao fim com o ideal da liberdade, a maior das virtudes e responsabilidades do jornalismo. Não enxergar a realidade como fatos isolados, mas processos correntes que possuem antecedentes e procedentes. John Donne, pensador inglês, certa vez nos disse que "nenhum homem é uma ilha isolada". Poderíamos estender essas sábias palavras para o universo jornalístico. Só assim, a imprensa será eficiente e fiel aos valores essenciais da democracia.

No Brasil, são inúmeros os casos de impraticabilidade da liberdade de imprensa. A exemplo das diretrizes de censura do Estado Novo em 1944, citadas por Jorge (2008) apud Nasser (1974):

“O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) veta:

5 – Nada sobre questões com o Instituto dos Marítimos, mesmo como matéria paga, antes do despacho do judiciário.

7 – a) Nada sobre o caso Cauby Araújo, a não ser o que já havia sido passado e julgado; b) Nenhuma fotografia da Rússia.

8 – A Companhia de Navegação Aérea ‘Condor’ deve ser chamada ‘Cruzeiro do Sul’.

9 – Nada sobre o trânsito de oficiais norte- americanos pelo Brasil.

16 – Nenhum ato oficial do Governo deve ser antecipado, seja ele qual for.”


Entre outros.


A censura praticada no período de autoritarismo na política brasileira parece ter deixado resquícios indeléveis no exercício jornalístico da sociedade brasileira. Como vimos em “Beyond Citizen Kane” de Simon Hartog (1993), onde o documentário nos mostra de que forma a rede Globo manipulou uma série de informações e atuou como um monopólio da informação por várias décadas e até hoje tem maciça influência na opinião pública do país.


Hoje, pode-se observar uma série de informações de grande interesse público que são manipuladas, exagerando-se alguns fatos e omitindo-se outros em detrimento de determinados grupos e interesses do veículo mediático. Um exemplo bastante recente foi a exposição na Grande mídia da questão em torno das alterações do código florestal brasileiro e toda a discussão entre a bancada ruralista e os ambientalistas. O discurso foi sutilmente construído para que o termo ambientalista soasse de forma pejorativa, além de vários outros fatos que foram omitidos em benefício à bancada ruralista e sua falsa ideologia em prol do desenvolvimento social, quando na verdade pretendem flexibilizar as leis de preservação ambiental em um anacronismo gritante com as atuais condições das relações globais como um todo. O tal proselitismo de que Bucci tanto denuncia é visivelmente ousado e usado. Um prejuízo incalculável à liberdade e ao compromisso com a verdade, tanto prezadas pela prática jornalística. E o pior, apresentadas inescrupulosamente como espelhos da realidade.


Igor Bacelar 20/07/2010 *Desculpem-me os erros de edição


Discursos de Borracha (após assistir a Story of Stuff)


Lembro muito bem que assisti a esse documentário enquanto cursava Engenharia Florestal, logo quando foi lançado no YouTube e disseminado em todo o mundo , período em que estive envolvido com o movimento estudantil e discutindo incessantemente assuntos políticos diretamente ligados às questões agrárias.

Annie Leonard inicia o documentário “The Story of Stuff” (A História das Coisas) questionando os efeitos do consumismo nas pessoas e a origem e o destino dos objetos de consumo dentro do sistema linear capitalista. De forma didática nos apresenta uma cadeia de processos que culmina no acúmulo de resíduos, um dos grandes problemas do mundo contemporâneo. Questão que permeia todo o discurso do material, direta ou indiretamente.

Quando uma lebre nasce, ela se alimenta de vegetais e seus dejetos servem de substrato para o solo. A raposa se alimenta da lebre e produz dejetos e concebe filhotes, que por sua vez irão comer mais lebres e produzir mais resíduos e até mesmo os restos de seus corpos em putrefação servirão como substrato para o meio, o ciclo natural das coisas. A natureza age sob essa lógica, sempre regida por esse fluxo de equilíbrio. Mesmo quando chove mais em uma determinada região, desequilibrando um ecossistema e algumas vezes provocando desastres naturais através de uma super reprodução de determinado inseto ou até mesmo um incêndio florestal de grandes proporções, o equilíbrio pode ser retomado, pois, aquilo que estava ali, simplesmente se transformou, mas continuou a fazer parte daquele sistema. Enxergo isso como um leve resfriado.

Porém, a civilização surgiu e incapacitou esse processo, agindo como um poderoso vírus que se apropria de um hospedeiro até esse não oferecer mais nada e depois migra em busca de outro hospedeiro. Simplesmente interferimos dentro desse sistema, que é de suma importância para a manutenção saudável da vida. Isso não vem de agora, mas, um processo que se fecundou desde a fundação da civilização e que entrou em situação crítica depois da Revolução Industrial. O que fazemos agora é extrair recursos e bloquear o fluxo de retorno dos mesmos à cadeia dos processos naturais. Pois, os transformamos radicalmente, tornando-os danosos ao meio ambiente e a nós mesmos. Ou será que aparelhos celulares são re-assimilados pela natureza?

Digo-lhes de antemão que não me considero adepto do socialismo, comunismo, capitalismo... Tenho ranço dos ismos e estou farto deles! Muitas coisas vieram à minha mente enquanto assistia ao documentário, algumas coisas estão um pouco afastadas da superfície, mas são claras dentro da abordagem dos fatos que nos foram apresentados. Uma delas é o aspecto Marxista que é exposto não só pelo repúdio à influência das indústrias dentro da sociedade de consumo, o que me lembrou também as publicações do famoso e muito vendido autor Zygmunt Bauman em sua “visão líquida” da sociedade, mas também no momento em que Annie Leonard nos explica de forma atual as relações burguesia-proletariado, especificamente as que conhecemos como a Mais-Valia.

Tive a oportunidade de conversar com dois camaradas meus acerca do material enquanto estava em um coletivo rumo à universidade. Um deles afirmou que o documentário foi utilizado por algumas escolas americanas. O seu uso foi questionado por uma porção de pais insatisfeitos que alegavam de que o mesmo continha apenas um lado da história. Desafio os dirigentes industriários a produzir também o outro lado da história e oferecê-lo como auxiliar didático nessas escolas, assim não teríamos esse velho e recorrente problema de fascismo ideológico, não é mesmo camaradas de terno e gravata? Um verdadeiro processo democrático (sic). Caberia ao bom senso de cada um. A meu ver, isso apenas produziria diagnósticos psiquiátricos devido ao conteúdo explícito das conseqüências que tais hábitos consumistas acarretarão! "Esse é louco, esse tem bom senso, esse é louco, esse..."

Um fator muito importante é a influência que os meios de comunicação social detêm para si. São os grandes responsáveis por esse insaciável desejo de consumir-descartar-consumir, como se as nossas vidas dependessem disso. São culpados também por omitir, por exemplo, o que está por trás de uma propaganda da Aracruz Celulose, exibida pela rede globo, onde eles afirmam estar contribuindo com o reflorestamento, quando na verdade esse tal reflorestamento é uma falácia, pois se trata de cultivos exóticos que serão utilizados como matéria-prima para o papel e celulose, entre outros, ou os poluentes que liberam para cursos de água e para a atmosfera, ou a isenção de impostos que essas empresas multinacionais são agraciadas para realizarem trabalhos de "cunho social". Enquanto os mesmos forçam comunidades quilombolas, ribeirinhas, a migrarem das regiões do entorno das fábricas de processamento e extração de matéria-prima, por escassez de recursos e insuficiência de trabalho.

Sobre o desejo fomentado pela indústria do capital, podemos obter algo dessa auto-citação acerca do espírito humano (sim, sou um charlatão): (...) “Vivemos sob a ditadura do ego, do estômago, da matilha esfomeada, sem um macho alfa definido para nos guiar. Apenas o desejo e suas limitações, vícios, virtudes, mordomias, problemas na colheita, raposas no galinheiro... O prazer é insustentável como um gozo no ato sexual e a frustração é a sombra que estará ali sempre que houver um foco de luz por menor que ele seja. Podemos dividir a tenebrosa condição do ser em uma tríade: desejo, objeto e concessão. Essas seriam as faculdades da existência em sua mais pura representatividade.” Os meios midiáticos fazem o que, senão explorar essa característica tão humana e tão cabível dentro desse sistema?

O plástico que constitui os nossos “sagrados” controles-remotos, a meu ver, encontrou um meio de se instalar em nossos nervos tão profundamente, que ás vezes quando caminho pela rua confundo as pessoas com manequins ou bonequinhos revestidos com esse derivado do petróleo. Certa vez, até me imaginei como um pneu rolando rua abaixo desgovernadamente em direção a um muro qualquer. A publicidade tem esse efeito deletério dentro de cada indivíduo que compõe a máquina social e é uma das grandes responsáveis pela conservação desse modelo de consumo no qual estamos todos inseridos. Faz-nos crer em absurdos, tais como culpar-nos exclusivamente por contribuirmos com a escassez dos recursos naturais, nos dizendo para reduzirmos o uso de energia, de água, quando em contrapartida, nos induz ao contrário, através de seus produtos fantásticos e indispensáveis para uma vida saudável. Somos hipocondríacos de nascença. São as corporações e o Estado que se utilizam descabidamente de todos esses recursos naturais. Consomem a maior parte da energia e potencializam isso com sua política lucrativa, incentivam os indivíduos a proliferar, sustentar e amar esse paradigma da contemporaneidade, alimentando o nosso imaginário, compondo a nossa realidade, sem pincel ou tinta, mas com o nosso próprio sangue e nossas próprias mãos.

A comunicação social também é responsável por espalhar o tal “Kitsch totalitário” do qual Kundera nos contou em sua obra, “A Insustentável Leveza do Ser”. A ideia de defender as causas ambientais é esteticamente bela e também é vendida como mercadoria pela mídia. Nossa própria individualidade está em xeque nessa jogatina inescrupulosa.

O gênero humano se vê deslocado da natureza e suprimiu isso de sua constituição. Quando tiramos um leão da selva, conseguimos tirar-lhe da natureza, mas não conseguimos expurgar essa natureza dele. O homem ou a indústria (sirva-se como quiser), em seu patamar de Deus se esqueceu de que um dia viveu em harmonia com o mundo natural. Estamos agora mergulhados em um fluido oceano corporocrático que berra “Desenvolvimento Sustentável”, omitindo o cântico subliminar praticamente inaudível “Sustentabilidade do Desenvolvimento”. O documentário, bastante didático, destrincha a obscuridade do modelo de consumo e nos dá um diagnóstico igualmente sombrio, “vamos criar algo novo”.

Link do vídeo: http://www.youtube.com/watch?v=3c88_Z0FF4k

Igor Bacelar Araújo 13/05/2010

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Memórias volantes



Já passava de meia-noite. Era escuro. Era solitário. Breu. O farol do meu carro era o único sinal de vida naquela estrada velha e abandonada. Havia uma bifurcação e foi preciso parar para decidir qual trajeto escolher. Senti imediatamente um frio na espinha por estar ali parado no meio do nada. Uma sensação de que estava sendo vigiado, típica de quando nos sentimos expostos em um lugar desconhecido, nos braços invisíveis e sorrateiros das trevas agourentas. Não me lembro muito bem qual dos caminhos eu escolhi, mas lembro-me de ter pisado nervosamente no acelerador para longe daquela imobilidade. Foi quando me recordei de uma sensação familiar.
Certa vez, acompanhado de uma pessoa de sensibilidade semelhante à minha, que sempre estivera presente nos episódios mais sinistros, indecifráveis, belos e divinos dos quais vivenciei, fui tirar uma fotografia de um isolado bambuzal que se refugiava atrás de umas grades desgastadas em um campus universitário. A altura, grossura e a cor amarelada daqueles caules impressionaram a minha vista. Era magnífico! Sempre admirei os sons que as toras de bambu fazem quando, sopradas pelo vento, se atritam entre elas. Me fazem lembrar de um navio a velejar. As folhas sussurram timbres macios e suaves para nossos ouvidos e os caules estalam como se estivessem a se espreguiçar e falar sonolentamente como se fofocassem algo sem muito entusiasmo. É sempre bom deitar ao lado de um bambuzal quando se está a fim de cochilar ou ler um bom livro. Vocês sabiam que uma única semente de bambu é capaz de formar uma floresta de bambus em apenas trinta anos!? Além disso, uma floresta desse tipo tem em comum uma única raiz em seu solo. É como se várias gerações da mesma família estivessem reunidas em um só lugar. Uma árvore genealógica podia ser facilmente verificada com exatidão naquele lugar.

Era noite quando fomos fotografar aquela ilhota amarelada. Fomos tomados de uma sensação angustiante ao nos depararmos com aquilo. O flash da câmera não era suficiente para alcançar além daquelas grades e nós não fomos corajosos o suficiente para perpassar aquele muro enferrujado. A angústia não provinha da incapacidade de obter uma fotografia, mas da presença dos pés de bambu em si. As folhas chacoalhando pela brisa fria noturna, os caules que se envergavam vagarosamente de um lado para o outro, havia algo aterrorizante em tudo aquilo. Uma espécie de dimensão alheia à nossa, abrigando seres fantásticos em seu interior. Era como se aquilo quisesse nos tragar para seus domínios, nos integrar naquela família solitária de bambus para toda a eternidade. Possuía uma força descomunal que nos causava um grande desconforto e uma ânsia de sair daquele lugar imediatamente. Tínhamos medo de que aquele mundo se fechasse sobre nós. Pode parecer um pouco de misticismo, mas a influência que o bambuzal exerceu sobre a nossa sensibilidade foi densamente real e compartilhada. Não podemos ignorar as experiências compartilhadas com tanto descaso, elas são úteis para as descobertas superiores de nossa reles existência. Os pés de bambu utilizam jargões demasiadamente brutos para nosso intelecto de "asfalto". Quando a natureza quer um pouco de privacidade, ela nos é extremamente convincente. Não foi a primeira vez que a natureza me pregou peças, ficariam horrorizados com o mundo desconhecido que habita nas profundezas do mundo selvagem em contato com o nosso animalismo inerte, mas a estrada me remeteu a esta situação curiosa. Eu havia sido tragado para outra dimensão.

Não fiz menção nenhuma de retornar, não sei por que essa opção nunca me passou pela cabeça, mas pisei vigorosamente no acelerador. Queria que tudo aquilo acabasse o mais rápido possível. O marcador registrava 140 km/h. Não havia postes de iluminação. Não havia sinal nenhum de civilização. Apenas a estrada e um imenso horizonte cercado por vegetação e um relevo pouco acidentado. Na verdade não se via muita coisa que não estivesse há alguns metros do carro. Era como se uma densa névoa estivesse espalhada por toda a região, um manto gigantesco sempre a espreita perseguindo o veículo que cortava o chão gelado, furiosamente. Eu respirava vagarosa e silenciosamente como que evitando que alguém ou algo me escutasse e se interessasse por minha aparição naquele lugar ermo. Foi quando percebi uma fonte de luz há uns bocados de distância do meu veículo.

Por apenas um milésimo de segundo, pensei na possibilidade agradável de não estar sozinho naquela terra de ninguém. Mas, foi apenas um devaneio desesperado de alguém encurralado pelo pavor absoluto. O outro veículo se aproximava em uma velocidade muito superior à minha. Tentei em vão ir ainda mais rápido, pois de alguma forma eu não fazia questão de saber o que estava atrás de mim. Era como se de alguma forma eu quisesse evitar olhar o que não deveria ser olhado por olhos humanos. Quase não acreditei no que vi em seguida, não fosse por aquela sensação de que estava solidamente consciente de que aquilo não era um sonho, apesar de minha cabeça parecer ter se desprendido do meu corpo feito um balão, mas isso era devido ao medo inquietante, o palpitar ininterrupto do coração, a respiração que agora era difícil.

Um ônibus em chamas ultrapassava vagarosamente ao meu lado pela outra pista. Não havia motorista, mas percebi uma forma humanóide e esquelética no corredor dos assentos dos passageiros gesticulando alguns sinais, auxiliado por bandeiras rasgadas e um apito estridente. Era como se ele fosse um guarda de trânsito frenético conduzindo um tráfego não menos problemático. O que mais me chocou foi os passageiros em chamas. Havia pessoas derretidas e amalgamadas umas às outras berrando frases ininteligíveis através das janelas, mulheres grávidas exibindo seus corpos nus e inflamáveis, choros desconcertantes e lamuriosos, feições de pranto provenientes de criaturas que não deveriam habitar esse e nem qualquer outro mundo. Era um verdadeiro inferno ambulante que se atirava pela estrada. Um circo de aberrações demoníacas e horripilantes. Não parei de gritar um momento sequer, mas o grito era inaudível, mudo, mais silencioso do que um defunto totalmente decomposto, sem moscas, sem vermes, apenas os restos menos nutritivos que ficam, do tipo que só o tempo dá conta.

Um beijo intenso em uma floresta úmida. Esqueci das noções básicas de tempo e espaço, esqueci de que poderia esquecer alguma coisa, esqueci do calor, esqueci do frio, esqueci do beijo que se alastrava por tudo, concentrado em um único ponto, esqueci de que eu beijava alguém, esqueci até mesmo de quem eu era. Quando me dei conta de que não me dava conta de nada, quando atingi o vazio absoluto, a escuridão total, a luz emancipadora, recobrei a consciência e de quebra, ela trouxe consigo o medo. Medo do desconhecido, da pequenice, do desapego à carne? Medo de Deus! Esse breve insight, um espectro de uma experiência que já perdeu sua nitidez, agora não passa de um simulacro imperfeito. O que é decifrado legivelmente perde a sua essência maternal, o real é único e inapreensível. O que nos resta é uma falsificação genuína de um fenômeno que se perde no momento em que é concebido. Se perde apenas como um fenômeno isolado, mas nunca abandona inteiramente esse mundo. Esqueçamos as leituras diversas dos eventos que transcorrem nossas vidas, tudo se baseia na forma com que lidamos com a presença divina ao nosso redor no momento em que ela se apresenta. Apenas disserto sobre um beijo intenso em uma floresta úmida, uma estrada de terra molhada. Doces memórias de empatia com o cosmos.

Havia encontrado um pequeno animalzinho peculiar em um bambuzal certa vez. Eu estava sozinho, levei-o para casa. Ele era amistoso, gracioso, não havia algo tão exótico quanto aquilo em lugar nenhum. Um dia quando voltei da rua e fui visitá-lo no quintal de minha casa, tive a surpresa de me deparar com um monstro horrível do tamanho de um urso enorme, sentado e mirando as estrelas. Senti medo, muito medo...

Eis que me vejo no meio de uma plantação homogênea de eucaliptos. É tudo tão ensurdecedoramente silencioso que chega a incomodar os meus ouvidos. Não há sinal nenhum de vida, nem mesmo naquelas altas árvores magérrimas e bulímicas. Posso sentir cheiro de morte, não o cheiro físico de putrefação, mas algo pior, que está em contato íntimo com a minha própria alma. Quase posso sentir uma mão acariciando o meu crânio insensivelmente. Aqueles longos corredores inférteis faziam meus olhos cambalearem de náuseas conquanto não vissem nada além de árvores enfiadas naquela terra suja de folhas perfumadas. Podia perceber uma comunicação mesquinha que serpenteava das próprias árvores, do alto de suas copas quase carecas se comparadas a outras plantas mais saudáveis. Eu não era bem vindo.

Recobrei a consciência e nem me dei conta do ônibus que havia debandado alguns poucos segundos atrás. Meus nervos estavam aos frangalhos, quase não conseguia mais dirigir. Era quase automático o fato de eu continuar seguindo em frente, mal sentia os músculos do meu corpo. Precisava acreditar que estava delirando ou havia enlouquecido, mas era incontestável de que não fora um pesadelo ou algo do tipo. Tudo era tão concreto, maciço, diferia em muito da realidade etérea do mundo onírico. Nunca havia me sentido tão vivo em toda a minha vida e por isso comecei a me questionar se eu não havia enfim morrido. Interessante a proximidade de duas coisas tão antagônicas, a vida e a morte.

Entrei por uma cidade desabitada e aparentemente antiga. Passei por uma praça destroçada enquanto pegava a avenida principal. Havia mesinhas para jogar xadrez, onde outrora deveria haver senhores a jogar religiosamente toda tarde enquanto repetiam milhares de vezes suas histórias para quem tivesse a paciência de ouví-los. Parquinhos infantis cobertos de poeira e já bastante desgastados com o abandono. De repente algo passou a me intrigar horripilantemente. Apesar de não ver o menor sinal de alguém por aquelas casas antigas e ruas desamparadas, tive a impressão de que crianças brincavam por ali sorridentes. Pude ouvir suas vozes e gargalhadas aviltarem janela adentro, alfinetarem cada poro de minha alma exausta. O corpo não mais respondia. Entrei em estado catatônico. O carro capotou e foi parar bem diante de um cemitério.

Silêncio. Não fosse pelos pneus girando de cabeça para baixo. Eu estava de ponta-cabeça no banco do motorista. Sobrevivi graças ao cinto de segurança, mas isso me rendeu um grave hematoma na região do tronco e por pouco não esfacelou o meu pescoço. Desvencilhei-me do cinto e caí no teto interior do carro. O farol ameaçava se apagar e dava umas piscadelas de vez em quando. No momento em que isso acontecia, tinha a impressão de que coisas se esgueiravam pelas sombras em direção do acidente. Eu torcia para que isso não se repetisse, mas conforme a bateria ia cedendo, acontecia com mais freqüência. Criaturas assustadoras se pronunciavam pelas janelas espatifadas e muitas nem possuíam olhos em suas órbitas. Quando ficava claro eu só podia ouvir seus grunhidos, suas vozes, uma multidão de transeuntes curiosos de um mundo soterrado pela escuridão e renegado pela própria luz. Apagou mais uma vez. Me deparei de frente com uma criança cinzenta de dentes afiados e uma língua esquisita que apresentava uma segunda boca em sua ponta, segurando talheres em ambas as mãos. A luz voltou e tive o alívio de não sentir aquele bafo podre de carne morta e chorume. Não teria tanta sorte da próxima vez.

I.B.

Desenhos de Mark Ryden