domingo, 11 de abril de 2010

Arco Voltaico



Sola - Cuca



Um turbilhão de luzes coloridas se atirava por debaixo da minha cama contagiando todo o aposento com seu violento balé ofuscante. Pude ouvir claramente um ritmo insistente acompanhado por uma melodia psicodélica de voz feminina encoberta por vários efeitos que faziam o som reverberar de uma forma completamente artificial. A cama era como uma tampa que abafava todo o estardalhaço sonoro e o teatro desordenado de um arco-íris voltaico.

Estiquei meu pescoço para debaixo da cama na esperança de ver a origem da minha "rave particular" e avistei uma curiosa maçaneta encravada no piso de madeira maciça desgastado com algumas fissuras (por onde o som escapava). Assim que empunhei a maçaneta de aço, senti seu toque gélido. As vibrações do "mundo" que estaria me convidando à sua volúpia orgiástica percorreram da ponta dos meus dedos até a espinha dorsal através do objeto metálico. Abri a passagem e foi como em um passe de mágica. Lá estava eu em um beco que expirava hostilidade e inspirava o próprio ar de meus pulmões.

O céu se limitava a ser vislumbrado verticalmente devido à quantidade exorbitante de prédios e a extensão das próprias construções que monopolizavam a vista para o horizonte. Não havia vento, brisa, apenas um aglomerado de concreto enfeitado por pichações, outdoors eletrônicos, gigantescas películas que transmitiam imagens televisivas, janelas iluminadas, amplificadores embutidos, fios de alta e baixa tensão, antenas de transmissão. A música que soava pelo ambiente era uma mistura caótica de buzinas, telefonemas, freios e uma miríade de aparelhos eletrônicos reproduzindo sonoridades distintas que em conjunto se conglomeravam em um só groove indistinto. Em qualquer veio da natureza podemos observar esse processo sendo regido por uma série de elementos, mas era engraçado perceber como essa lógica se encaixava em processos de mecanismos inorgânicos.

"ZZZ", "Abaixo a ditadura estética da cultura pop", "Foda-se a corporocracia", "Sexo biônico para todos", "Desregularizemos e derrubemos as indústrias da doença!", "Anarquia", "Oh! E agora, quem poderá me ajudar?", "Ahhhh!!!!", "Queimem suas famílias e abracem o Partido", "Morte aos roedores", "Terrorismo ideológico", "Tragam-nos o profeta de volta à sua morada sagrada", "Boom!".

Meus olhos percorreram atônitos em vista da descarga incessante de ódio que estava registrado em depredações aos edifícios e muros das ruas. A atmosfera do lugar era pesada e isso era refletido nas pessoas que transitavam pela cidade. Seus olhares eram de uma natureza desconfiada, beirando a paranóia. As ruas tinham uma espécie de vida própria, que se alastrava para o comportamento das pessoas e inoculava a sua poesia furiosa e extrovertida. Uma poesia talhada na obscenidade do presente e desacreditada com as engrenagens que movem o seu próprio tempo. Poetas de um futuro não menos obsceno.

Um urso de pelúcia do tamanho de um homem estava admirando uma avenida movimentada que se localizava sob a ponte. Mal pude acompanhar o momento em que o mesmo se jogou lá embaixo, em direção a um caminhão de lixo triturador. Era como se ele já estivesse esperando esse momento horas a fio. Eram exatas 3:00 da manhã. Podia-se ouvir os seus gemidos de voz infantil e cartunística. Vida e morte nas fronteiras de uma terra sem fronteiras.

Um telão no topo de uma torre de transmissão de sinais fez com que várias pessoas quase que inconscientemente se mobilizassem para dar atenção a imagem e o som que estavam sendo propagados pelo aparelho. Era uma espécie de propaganda sobre algum apetrecho eletrônico protagonizada por uma linda mulher de trajes esquisitos (pelo menos para mim). Ainda me lembro do vestido que ela usava, uma vaga lembrança dos Jetsons veio a minha mente. O evento publicitário foi terrivelmente interrompido por um bombardeio vindo de não sei onde. Fui o primeiro a correr e tive uma leve impressão de que os outros tardaram um pouco a fazer o mesmo (além dos limites considerados normais).

Como se não bastasse o atentado à torre de telecomunicação, percebi que a asma que eu havia adquirido quando criança e superado na adolescência, havia voltado a me atacar. Me sentei na sarjeta de onde saía uma massa de ar fedorenta de um bueiro. Na minha agonia por um pouco de ar fresco, mal percebi um mendigo que estava deitado em frente ao que eu acredito que fosse um restaurante chinês, devido ao pato assado na vitrine, que é típico da cultura "gastronômica" chinesa. Eu não entendia nada do que estava escrito sob a marquise daquele recinto.

O mendigo me indicou com seus dedos sujos uma espécie de estrutura côncava e gigantesca que estava há alguns metros da calçada. Segui a sua sugestão sem pestanejar. Ao chegar na estrutura, pude ver uma vastidão verde de árvores através das paredes constituídas de um espesso vidro transparente. Era uma vegetação matematicamente formatada, o que parecia ser para mim, o último pedaço de vida daquelas ruas orgânicas de uma sociedade inorgânica. Uma partícula da natureza visivelmente estuprada, mas que ainda oferece os seus gracejos.

Tentei entrar naquele parque arborizado como um viajante perdido no deserto do Saara se jogaria ao avistar um riacho no meio das dunas. Fui barrado! Associei aquela intervenção do segurança que vigiava a entrada ao fato de eu não ter pago por aquelas tão necessárias doses de oxigênio. Me senti como um menino impedido de saborear a sobremesa antes de comer toda a sua refeição de verduras. Só que nesse caso não era o prazer que me motivava, mas o meu instinto de sobrevivência. As pessoas pagam os impostos para respirar a fumaça despejada pelas indústrias, além de pagar pelos seus produtos, e ainda se sujeitam a comprar o oxigênio que as próprias indústrias purificam para usar como mercadoria. Se até o ar que se respira é produto das corporações, não duvido que o próprio indivíduo tenha se tornado uma mercadoria em si desde o dia em que nasceu, já que naturalizou uma série de perdas relevantes em sua existência medíocre. Assim como uma salsicha. Será que se apropriaram até mesmo do leite materno? Foi em meio ao meu conflito de ordem filosófica, que eu comecei a ouvir aquela música que era tocada debaixo da minha cama horas antes.

Entrei em uma espécie de discoteca, de onde o som parecia estar sendo reproduzido. Andei por corredores labirínticos em um esforço sisífico percorri estradas intermináveis. Não poderia dizer se tinha passado horas ou até mesmo décadas naquela busca por alguma coisa que já não lembrava mais. Procurava algo que não fazia o menor sentido. Talvez nunca tivesse sentido algum. Foi então que no meio de uma pista de dança vazia e iluminada por canhões de luz colorida, vi a minha cama. Tive a ligeira impressão de que vi o meu próprio quarto de relance. Existia algo de familiar naquele salão. Evidentemente o que via ali diferia sensivelmente do meu quarto, mas depois me convenci de que apenas haviam mudado algumas coisas de posição. Eu estava de volta!

Me sentei, ainda sobre a cama, quando acordei. Quando fiz menção de pisar no chão, percebi que estava ilhado. Todo o aposento havia sido inundado pelo mar. Não havia para onde ir. Não conseguiria nadar para terra firme alguma, por mais esforço que fizesse. Foi quando brotaram das profundezas até a superfície, um misto de homens com guelras e rostos violados por corais que pulsavam em suas peles como se fossem partes deles mesmos. Me deitei novamente e cobri todo o meu corpo com o lençol que se encharcava a medida que algo se projetava sobre mim. Fiz questão de tapar os meus olhos em uma tentativa vã para que aquelas coisas nefastas desaparecessem. Expectativa angustiante. Foi silencioso como uma piscadela.

I.B.