sábado, 31 de outubro de 2009

Diálogo em Dm


-"There's a reason for the 21st century. Not too sure, but I know that it's meant to be."

-Sei lá... Acho que você está superestimando o universo. Essa coisa de sempre haver uma razão para todas as coisas. Razão é uma invenção do homem, e o homem nunca criou nada que já não houvesse existido.

-Como assim? Você quer dizer que o universo é tão ignorante a ponto de não premeditar as nossas ações e suas consequências? E o que quer dizer com essa tal não-criação?

-É isso mesmo que eu disse. Tudo que acreditamos ter sido criado pela mente humana, na verdade só foi tirado, como posso dizer, de uma cartola. É isso! A cartola cósmica.

-Não consigo compreender nada do que está dizendo. Aonde quer chegar?

-Dentro de cada um de nós existe um porão, sotão, uma passagem para onde estão todas as coisas. É de lá que as tiramos, enfim, resgatamos. Algumas chegam a ficar bastante empoeiradas, relegadas ao tempo. Pobres coitadas. Todas as coisas são parte da mesma matéria, transfiguradas pela não-matéria que recolhemos do outro lado.

-É como música que se cata no vazio no momento do processo criativo. Interessante essa sua colocação.

-Olhe lá do outro lado da vitrine. Por que todos estão olhando para nós, incrédulos?

-Deve haver uma razão.

-Sempre há.

"Somos feitos da matéria de nossos sonhos". Shakespeare

I.B.


quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Pós-Moderno


Finalmente saiu daquele ateliê abafado e claustrofóbico. Exposição de arte. Arte proveniente de sua cabeça, de suas mãos, dedos, dedicação e o caralho a quatro. Havia uma moldura em branco na parede. Ninguém entendeu nada. Estavam concentrados e a expressão deles era de pura sabedoria, os entendidos. Uma criança não hesitou em dizer. As mãos de sua mãe não foram mais rápidas que sua boca e inocência. Inocência ou sinceridade? "O senhor se esqueceu de pintar esse quadro aqui." O artista baixou suas calças e cagou em suas próprias mãos. Jogou a merda toda naquela moldura em branco. Fedia.

I.B.

A novela


Se bem me lembro, era o desfecho daquela novela. O desenlace de todos os dramas, onde seria decidido quem iria ficar com o mocinho, enfim, o ápice de todos os relacionamentos amorosos sintetizados em uma infeliz representação do que permeia as verdadeiras mutualidades entre os indivíduos. Todo aquele imaginário do que poderia ser e na verdade não é, seduzia libidinosamente aquele viúvo, pai de uma menina de dois anos.

Engraçado como desde pequeno ele vem construindo sua identidade moldado em simples quimeras. Sempre há o bem e o mal e nada entre eles, descarta a aura cinzenta que cerqueia os homens. A televisão também sempre o avisava sobre o momento em que ele devia sorrir, com as pequenas "deixas", as pausas que são sucedidas de gargalhadas programadas (isso se evidencia nos seriados americanos). Até isso foi pré-concebido para exigir o menor dos esforços daquele cérebro indolente.

Houve o intervalo para a propaganda, já não bastasse a sutilidade da lógica de consumo enlaçando cada discurso inserido nas relações entre os personagens e cenários da novela, as mercadorias enlatadas e sorrisos extraordinariamente brancos se espremiam pelo pouco que restava da massa cefálica do homem. O mais marcante era a ansiedade que ele expelia como gases pelo sofá. Sua ansiedade era merda no esgoto, e fedia tanto quanto.A propaganda surgiu bem no momento em que a mocinha iria revelar o seu grande segredo. O homem sentiu medo, angústia, excitação, prazer!

Do lado de fora só se viam as luzes da tevê. O restante estava apagado, mas não por consciência ambiental ou escassez financeira, era simplesmente para criar um clima de cinema. Afinal, era o episódio final daquilo que se tornara febre nacional. Mas, não quero falar sobre as consequências desse entretenimento sublimador em particular. Vou me ater a esse lar em especial, pois de alguma forma o que ocorreu ali me cativou de uma forma hilariante. Somos sádicos, eu sei disso. Por que nos sentimos fortes com o sofrimento dos outros. É a lógica do vale-tudo. Por acaso você nunca sorriu quando um amigo seu escorregou em uma poça e caiu de costas vigorosamente e ficou ali estatelado no chão? Conheço um cara que não, mas o exemplo infeliz é só para dificultar a relação entre o prazer e a dor alheia. Gosto de brincar com exemplos inúteis. A coisa vai bem além disso, essa tendência à auto-afirmação.

A novela reiniciou. Plástico. Olhos atentos, imóveis, concentrados. Só havia ele e a novela. Só havia novela e manequim. Só havia ele e a televisão. Só havia televisão e controle remoto. De repente, um choro de criança, de fome, de carência, de solidão, de amor. De repente, golpes repetidos de um controle remoto em uma cabeça frágil. Silêncio. A novela reiniciou.

I.B.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009


''As famílias felizes parecem-se todas; as famílias infelizes são infelizes cada uma à sua maneira.''

Liev Tolstoy

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

sábado, 3 de outubro de 2009

Bon Vivant


"Algumas horas depois de ter subido até o topo da montanha, não pude me segurar por muito tempo... Os braços me falharam e eu despenquei do topo do céu ao cerne da terra, rumo ao abismo". (...)

O jovem rapaz olhava concentradamente para os convivas. Todos estavam em um estado de euforia, desligados momentaneamente dos tubos que constituem a máquina social. Ele mantinha o seu olhar fixo no baile que se arrastava por toda aquela terra úmida da chuva que acabara de passar. As narinas estavam entretidas com aquele cheiro de terra molhada, misturado com o suor, com o vinho. Parecia estar a troçar de seus convidados, mas não era zombaria, era como se ele houvesse planejado algo que iria surpreender as pessoas de alguma forma. Sua introspecção não afetava em nada os dançarinos contagiados pela música dos pés na terra, dos corpos em contato muito íntimo, das goladas do mais saboroso manjar etílico, das tragadas nos melancólicos cigarros. Não havia música enfim, haviam vibrações abstratas, coletivas, havia relação humana bruta.

"My soul needs a cigarrette".

Pude perceber um melancólico pano de fundo por trás de tudo isso. Por que estaria o próprio anfitrião afastado da celebração? E o que estaria ele a celebrar? Ninguém teve a menor curiosidade de conhecer essas razões, apenas uma linda garota desajeitada de olhar singelo. A ela, preocupava o fato daquela tão querida criatura estar tão distante espiritualmente das outras pessoas. Pois, fisicamente estava ali sim, fitando cada expressão de cada rosto, de cada corpo, como se estivesse a fotografar, a registrar algo muito importante. Olhos examinadores, semelhantes aos de um estudioso em campo.

O sol estava prestes a se pôr, coloriu aquele lugar de um laranja peculiar, que refletia suavemente nas águas do rio, que passava nas proximidades. A garota foi até o jovem que sem perceber, legava ao vento o seu cigarro, que era tragado obstinadamente. Simplesmente sentou-se ao seu lado e ele lhe retribuiu com um sorriso tímido, acanhado. Levantou-se inesperadamente e segurando as suas delicadas mãos juntaram-se às outras pessoas. O jovem pôs-se a dançar. Algo meio peculiar, bizarro até, uma dança enérgica, de pulos e giros agressivos (como um tufão), que logo chamou a atenção de todos os outros. Imediatamente uma forte chuva atirou-se violentamente contra a terra. Como se aquilo fosse uma dança tribal, uma dança que rogava pela chuva. Ventos fortes empurravam avidamente as folhas dos coqueiros, cajueiros, das mangueiras, das alamandas, dos sombreiros. Os coqueiros se envergavam de tamanha a força que era empregada pela ventania, vinda da direção do mar. O impetuoso punho que a natureza emitia apenas reforçava toda aquela celebração. A relação ancestral homem-meio fora resgatada ferozmente, e havia uma sensualidade inelutável que se alastrava naquele momento singular.

Encarou por minutos a fio aquela garrafa que estava pela metade e despejou todo o seu conteúdo em sua boca, chegou a derramar por sua face e seu peito nu. Sabor de vinho seco molhando sua garganta, odor de vinho seco acariciando seus pulmões, e saiu. Momentos depois, apenas a garota sentiu a sua ausência e após um lapso auspicioso que a incomodava incitantemente, se retirou imediatamente do "olho do furacão" à procura do célebre celebrante. Saiu tão imperceptivelmente quanto o jovem rapaz.

Não durou muito até que o encontrou sentado ao lado de um buraco que se assemelhava a uma cova, cabisbaixo. Ele ergueu os olhos e pareceu surpreendido com o que viu.

-Não esperava que fosse você quem viria até aqui. Promessas...

-O que pretende fazer? - Ela se perguntava como que esperando uma resposta pré-concebida em suas próprias elucubrações - Por quê?

-Falta de perspectiva, curiosidade talvez. Compreendo que o céu é só uma promessa. Lembre-se que não existem coisas nobres, tais como a promessa no plano dos mortais. Se existe algo além desse plano, ignoro as possibilidades. Mas, gastamos tanto tempo existindo... Por que não inexistir? Não tem a curiosidade de simplesmente deixar de ser? Desde menino meu problema sempre foi essa tendência de averiguar as coisas, todas elas. Sempre mais perguntas do que respostas. Se fosse o contrário seria assaz insuficiente, não é mesmo? Decidi deixar de ser, com uma pergunta acompanhada de uma resposta. Por que não podemos dormir para sempre?

-Não vá - ela implorava soluçando, as lágrimas escorrendo de seus olhos encantadores, seu corpo a tremeluzir como uma estrela fraquejando aos poucos.

-Espero que me perdoe pelo que está destinada a fazer nesse momento. Realmente não esperava que fosse você a estar aqui em meu leito, mas você já demonstrava durante a festa, que seria a pessoa a carregar esse fardo. Eu tentei afastá-la das minhas meditações, eu tentei... Mas, existe uma parte sensível de nós mesmos que nos conecta de uma forma que não podemos compreender. Somos algo análogo aos recifes e corais, vários organismos que compõem um só. Mas, estamos irremediavelmente distantes, minha cara estrela.

-Isso que você vai fazer é errado. Há muito mais a ser vivido, a ser compreendido. Pare com isso! Não acredito que isso esteja acontecendo. Tem algo errado aqui- e olhando para o céu pôs-se a gritar - Faça parar!

-Sempre me perguntei sobre o que falaria quando chegasse esse momento. Temia que não pudesse ter a oportunidade de falar algo e depois de pensar muito eu me decidi o que deveria ser dito nesse desenlace trágico.

Havia uma xícara de chá vazia ao seu lado, a garota a fitou e pressagiou o pior. Havia um conteúdo anteriormente ali, naquele objeto, se não estava mais lá... Estava decidido. Ele havia ingerido daquela substância supostamente letal. Como que percebendo a expressão apavorada de sua última companhia, ele levantou-se entregando-lhe uma pá.

-Era cicuta. Já é hora.

A jovem queria sair imediatamente dali, chamar socorro, mas não conseguia mover as pernas.

-Quais são as suas últimas palavras?

O jovem rapaz depositou-se solenemente no buraco que havia cavado algumas horas antes e descansou seus olhos no céu. Até que enfim, se fecharam. A garota chorava baixo, mas tão vorazmente que fez com que as próprias árvores que ali se encontravam, choramingassem a própria seiva. Não havia notado esse absurdo, as árvores em prantos. Há tantas coisas ao nosso redor que deixamos de notar. Talvez aí nessas brechas da surdez do absurdo, esteja a música a tocar. O absurdo não é só o que não se espera, mas o que não se nota. Quase que inconscientemente, apanhou a pá que havia derrubado e despejou aquele monte de terra sobre o corpo. Me pergunto se o corpo seria a casa ou seria a prisão da alma. Onde estão os filósofos numa hora como essas? Casa, prisão. Prisão, casa.

-Quais são as suas últimas palavras?

Depois de ter feito o que lhe havia sido designado, seus músculos frágeis e exaustos a forçaram a deitar-se sobre aquela terra úmida, bem ao lado do túmulo de areia. Tudo o que ela queria naquele momento era dormir, simplesmente dormir. Mas não de cansaço. Não era sono, exaustão. Ela esperava que quando acordasse, o rapaz estivesse ali de volta. Queria acreditar que tudo não passava de um sonho. Para isso, ela achava necessário dormir. Seu corpo não tardou a aceitar essa proposta da sua mente irrequieta. O convite do vazio é sempre mais tentador. Dizem que quando recebemos uma pancada muito forte na cabeça, não devemos dormir. Será que acontece o mesmo para pancadas na alma?

Quando ela acordou, a cova ainda estava lá. Era cedo, a umidade do orvalho impregnava toda a manhã. Não pôde controlar o choro. E mais ninguém estava ali para dividir aquela dor. De alguma forma, ela se sentiu imensamente culpada de ter feito parte daquele velório excêntrico. Estimava tanto aquele rapaz... "Não esperava que fosse você quem viria até aqui", a questão que se desprendia de suas entranhas, quem era essa tal pessoa? O que signifcou toda essa celebração? Para quem? Essa pessoa estaria lá? Quem seria essa pessoa? A cova ainda estava lá e sono nenhum a fez dissipar-se. A cova ainda estava lá.


Pinturas de Mark Ryden

I.B.