quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Crônicas de Meia-Noite

Finalmente diante do notebook pra redigir uma crônica que devo entregar amanhã quando acordar. São 11:45 e meus olhos já pesam por causa do sono curto embalado por uma noite ébria não por causa dos excessos, mas da intensidade que sorvi aqueles suaves e cítricos tragos de um vinho de reserva. El diablo de la media noche!

A noite se prolongou em devaneios, em brisas fluviais, flashbacks de um passado recente e de passados superficialmente remotos, daqueles que integram as nossas mais constantes inclinações afetivas em face de nossas relações com as coisas materiais e abstratas. E dois pares de braços e pernas se entrelaçavam, se aconchegavam habilidosamente como se não fosse apenas fruto de uma única estação que se passou desde o encontro inevitável. Um aracnídeo de oito patas reluzentes, pescando estrelas no fundo de um rio lamacento.

E assim fui dormir. E assim despertei. Não havia estrelas senão aqueles espectros de outrora e continuava belo e o dia cantava mais vivaz. E a noite era dia e a lua era sol. Havia um ninho novo em cima do armário da despensa. Rolinhas "caldo de feijão": os habitantes sempre majestosos dos telhados da vizinhança.

Duas da tarde e eu aguardava, bastante apreensivo, a tatuadora que terminava um serviço na "sala de operações" de seu estúdio. Eu tenho duas ideias para talhar em minha carne e enquanto eu esperava, assistia um documentário sobre a cena do skate nos Estados Unidos no início da década de 90 com um outro tatuador. Havia uma vontade muito grande de desafiar os limites pré-existentes, naquelas pessoas.  Seja a gravidade, a  lei ou o próprio corpo. Pude ver a grandeza que aqueles jovens detinham em seus olhos. Aquele olhar que ao ser testemunhado, te faz acreditar no impossível junto com o seu portador.

Saí do estúdio com um sentimento de vazio, pois tinha a convicção de que não faria as tatuagens, pelo menos não agora. Não esperava tamanho valor (tou falando de grana) para algo que seria tatuado em meu corpo. Alguém seria eternizado ali e não somente uma particularidade minha, mas outras mãos, outros olhos, até o meu dia derradeiro que a essa altura do campeonato, já me é difícil determinar se virá em breve ou será bem longínquo. Um palco de várias guerras, várias tragédias, dramas, felicidades, angústias, monocromias, polifonias, amores, amores, amor e êxtase.

No caminho para o trampo, nada de novo nos ônibus. Cadeirantes sendo erguidos por pessoas compadecidas para dentro dos coletivos sem elevadores em funcionamento, a cessão de lugar para uma idosa trôpega com problemas nas articulações, atender o telefone celular e se declarar o sujeito mais imbecil do terminal de integração. Nada de novo nas ruas, nos prédios, na cidade. Carros passando, velhinhos bastante dedicados ao seu ofício de fazer suco de laranja, pessoas que peidam berrantemente no ambiente de trabalho. Nada de novo nos pensamentos. Pinturas, quadros, arte, surrealismo... Eis que proclamo a minha sede para a cidade e de prontidão, aqueles caracteres saltam bem diante dos meus olhos: Ananias.

Ananias Cruz é um sujeito que mora em uma praça aqui em meu conjunto. No Sol Nascente. Onde eu cresci e vivi desde os três, quatro anos de idade (?). Seu aspecto sujo, descuidado, abatido pela dureza da vida é desarmado por sua transbordante vivacidade em seu relato de uma coruja que investiu sobre ele nas piçarras verdejantes das ruelas do Aloque. Um povoado que se embrenha aqui em Aracaju (São Cristovão?) e é cortado pelo maltratado Rio Poxim.

Ele estava terminando de pintar um quadro prodigioso que continha uma bucólica paisagem de um casebre num fim de tarde à beira-rio. Fazia com aparente descuido, mas bastante atento para os detalhes. Meu amigo sugeriu uma sombra na frente da casa. Mirando o rio tomado pelo sol gigantesco que se punha no horizonte alaranjado. E ele esfregou aquele pincel na tela e onde não havia nada, surgiu uma sombra misteriosa. Surgiu um novo olhar que vinha de dentro do quadro e de fora para dentro. Ele pediu míseros 20 conto. Eu dei 25. Ele sorriu, apertou minha mão e sua expressão se transformou mais ainda. Irradiou o sol do meio dia. "Agora, eu vou pra Moscou. Agora, eu vou pra Moscou." E partiu em retirada, rumo aos seus ímpetos de auto-mutilação. Não havia nada atrás dele. Só adiante. Em busca da pedra filosofal. Qual é o preço da arte?

I.B.

terça-feira, 19 de maio de 2015

Ojalá

Ojalá que las hojas no te toquen el cuerpo
Cuando caigan
Para que no las puedas convertir en cristal
Ojalá que la lluvia deje de ser milagro
Que baja por tu cuerpo
Ojalá que la luna pueda salir sin ti
Ojalá que la tierra no te bese los pasos
Ojalá se te acabe la mirada constante
La palabra precisa, la sonrisa perfecta
Ojalá pase algo que te borre de pronto
Una luz cegadora un disparo de nieve
Ojalá por lo menos que me lleve la muerte
Para no verte tanto para no verte siempre
En todos los segundos en todas las visiones
Ojalá que no pueda tocarte ni en canciones
Ojalá que la aurora no dé gritos que caigan
En mi espalda
Ojalá que tu nombre se le olvide a esa voz
Ojalá las paredes no retengan tu ruido
De camino cansado
Ojalá que el deseo se vaya tras de ti
A tu viejo gobierno de difuntos y flores
Ojalá se te acabe la mirada constante
La palabra precisa la sonrisa perfecta
Ojalá pase algo que te borre de pronto
Una luz cegadora un disparo de nieve
Ojalá por lo menos que me lleve la muerte
Para no verte tanto para no verte siempre
En todos los segundos en todas las visiones
Ojalá que no pueda tocarte ni en canciones

Silvio Rodriguez


quarta-feira, 13 de maio de 2015

Confusão


O desconforto já não pesa tanto. Ele vem e volta com promessas efêmeras de que vai estancar. Vez ou outra escorre o sumo através do meu corpo. Mas, eu já sei suturar a ferida e ela sempre abre uma vez mais. Me entrego à loucura, jogo fora o bom senso, a boa conduta e simplesmente sou. Não sinto culpa alguma pela libertinagem e pela boemia. Pois, são os remédios tradicionais no qual os homens depositam suas batalhas perdidas. E a guerra se prolonga por mais insensata que é para os meus interesses patrióticos.

Eu flerto com o mundo inteiro, flerto com a embriaguez, flerto com a insanidade. Estou flertando, na verdade, comigo mesmo. Saco mais uma vez a arma que está em meu coldre. Restam poucas balas em seu tambor. Mas, preciso mais uma vez disparar contra essa confusão. Dessa vez através do telefone, como usualmente tem sido, dada à sua insistência em cultivar distâncias. É mais fácil aceitar a batalha e odiar o inimigo do que tentar racionalizar o momentum. Nos poupa do sofrimento de assassinar um após o outro. Nos poupa de algum peso na consciência. Mas, para isso, nós temos que acreditar nesta raiva e estarmos dispostos a abraçá-la mesmo quando ela dá lugar a outra coisa mais nobre.

É que os movimentos negativos, a destruição é mais prazerosa a curto prazo. É mais fácil! O positivo é um exercício hercúleo no mundo em que vivemos. Requer sacrifícios gigantescos porque sempre praticamos o caminho oposto. Poucos são capazes de construir. É melhor aceitar a desculpa que nos enfiam goela abaixo e matar logo estes filhos duma puta terroristas e torturadores! "Be a good soldier", they say. Kill, kill, kill!

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Saber Viver

Egon Schiele

Não sei... se a vida é curta
ou longa demais para nós,
mas, sei que nada
do que vivemos tem sentido,
se não tocamos o coração das pessoas.

Muitas vezes basta ser:
o colo que acolhe,
o braço que envolve,
a palavra que conforta,
o silêncio que respeita,
a alegria que contagia,
a lágrima que corre,
o olhar que acaricia,
o desejo que sacia,
o amor que promove.

E isso não é coisa de outro mundo,
é o que dá sentido à vida.
É o que faz com que ela não
seja nem curta, nem longa demais,
mas que seja intensa, verdadeira,
pura enquanto ela durar...

Cora Coralina

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Waking Life

Sonhos não se opõem ao real. Sonhos são o combustível do real. Eles são a força motriz, a vontade. As substâncias que compõem os sonhos tem uma profunda e obstinada intenção de viver (no real). Por isso eles falam comigo todos os dias, em noites mal dormidas, em manhãs contemplativas, em lapsos de um mundo novo que se apresenta diante da minha cama. Querem existir em uma música (registrada na memória da cultura humana), em um conto, um poema, um desabafo, em uma atitude, em um beijo, em um abraço.

Há também os que não são paridos de nosso intelecto. Os sonhos terrenos, encontrados em padarias, em pradarias, em um sorriso que escapa da alma. Esses sonhos misteriosos, que completam nossas alegrias e acalmam nossos infortúnios. Que nos fazem jurar toda a plenitude do universo em momentos únicos nos quais construímos algo maior do que nós mesmos.

É como aquele conto dos gatos, de Neil Gaiman, no qual certo dia todos os humanos sonharam que não eram mais escravos dos felinos (a raça dominante na ocasião). No outro dia, os gatos amanheceram como animais domésticos e a raça humana triunfava em meio à cadeia evolutiva. O sonho dentre as virtudes humanas é aquela que tem mais vontade e a que conduz todos os espíritos transformadores. O sonho é o real transvestido. Boiando em uma piscina de medos e inseguranças, mas sempre em busca das bordas, com uma vontade maior do que o seu sonhador. Esperando o momento certo para dizer alguma coisa para todo o mundo a sua volta.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Sombras

Dave Mckean

A sombra é um "ser" escuro, uma figura, uma região concebida pela ausêncial parcial de luz, decorrente da existência de um obstáculo que bloqueia a claridade. Quanto mais opaca a barreira que está à frente da passagem luminosa, mais densa é a silhueta projetada, ocupando todo o espaço atrás do obstáculo e moldando-se de acordo com a origem da luz. As sombras só se manifestam quando há luz. E quando não há luz? Onde é que as sombras vivem?


sexta-feira, 17 de abril de 2015

Ódio

Dói em mim saber da dor que te aflige o ventre
Quando sequestra novamente meu sono já tranquilo
O amor que se sentindo roubado, traído, esculachado
Se transfigura em raiva, ódio que toma o peito
Ódio que sufoca meu sono
Que me aquece o corpo
Que endurece minha alma
Que me enlutece o coração, tão essencial pra o que me sou
Te sou
Te fui...
Cinco verões me vem como cinco estações sem sol
O único sol que pulsa agora é essa raiva mista
Desmedida
Essa insônia
Esse ódio
Quando vou me perdoar por ter sido feliz?
Pois, pra mim tudo não passa agora de ilusão
Seria tão líquido e inconsequente esse seu impulso egoísta
Ou o tempo, cinco verões é só um breve momento como o cair de uma gota de chuva?
Mais outra ilusão?
A liberdade é assim um anseio tão déspota?
Que para o papagaio de asas cortadas é uma lembrança já esquecida
E não são mais sonhos que me comovem
Eles morreram
Foram sepultados
É o fantasma que volta, o da sua confusão
Não é meu
Mas, sou arrastado por essa alucinação
E não há paixões em meus devaneios
São distrações
Só ódio e amor
Um amor odioso
Um ódio amoroso
Que te surpreenderia em uma noite insana
Prematura
Natimorta
Rasgando-lhe a decência
Sangrando a carne
Prometendo um sol que queima o peito de uma galáxia inteira
Sob o frio torrencial da chuva em uma noite agitada
Procurando sequestrar a ti
De um saguão de incertezas

terça-feira, 14 de abril de 2015

Sou o olho do furacão

Freud's Quote for today

Magritte

"Ao tomar uma decisão de menor importância, eu descobri que é sempre vantajoso considerar todos os prós e contras. Em assuntos vitais, no entanto, tais como a escolha de um companheiro ou de uma profissão, a decisão deve vir do inconsciente, de algum lugar dentro de nós. Nas decisões importantes da vida pessoal, devemos ser governados, penso eu, pelas profundas necessidades íntimas da nossa natureza."

sábado, 11 de abril de 2015

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Saudade


Narciso e Narciso

Caravaggio

Se Narciso se encontra com Narciso
e um deles finge
que ao outro admira
(para sentir-se admirado),
o outro
pela mesma razão finge também
e ambos acreditam na mentira.
Para Narciso
o olhar do outro, a voz
do outro, o corpo
é sempre o espelho
em que ele a própria imagem mira.
E se o outro é
como ele
outro Narciso,
é espelho contra espelho:
o olhar que mira
reflete o que o admira
num jogo multiplicado em que a mentira
de Narciso a Narciso
inventa o paraíso.
E se amam mentindo
no fingimento que é necessidade
e assim
mais verdadeiro que a verdade.
Mas exige, o amor fingido,
ser sincero
o amor que como ele
é fingimento.
E fingem mais
os dois
com o mesmo esmero
com mais e mais cuidado
- e a mentira se torna desespero.
Assim amam-se agora
se odiando.
O espelho
embaciado,
já Narciso em Narciso não se mira:
se torturam
se ferem
não se largam
que o inferno de Narciso
 é ver que o admiravam de mentira.

Ferreira Gullar

Eu

John William Waterhouse

Hoje eu acordei só. Acordei eu. Sem um intruso em minhas entranhas. Apenas em devaneios tardios, de depois de abrir-me os olhos. Mais por estranhamento do que por uma aflição interior. Um vão misterioso pela frente, sem verdades (ou ilusões) construídas com raízes profundas. Apenas eu, solto e absorto com a minha falta de permanência.Um dente de leão à mercê de uma brisa e uma única promessa, daquelas efêmeras, sem compromissos: vou pousar na terra e depois um sopro qualquer há de me arrancar dali para outros pousos. Simplesmente porque hoje, eu acordei só.

terça-feira, 7 de abril de 2015

Despertar é sempre perigoso


Tem manhãs que não são manhãs
Dias que não são dias
Noites que não são noites
Tem carícias que não são carícias
Abraços que não são abraços
Beijos que não são beijos
Há camas que não são camas
 Viagens que não são viagens
 Sonhos que não são sonhos
Poemas que não são poemas
Esquinas que não são esquinas
Sorrisos que não são sorrisos
Tem noites que não são camas
Há esquinas que não são viagens
Tem dias que não são abraços
Há poemas que não são carícias
Tem manhãs que não são sorrisos
Há sonhos que não são beijos

quarta-feira, 1 de abril de 2015

1+1


A turma estava toda reunida na aula de matemática. Detrás do birô, o professor escrevia um problema no quadro com giz.

- Quanto é um mais um?

Um menino levantou sua mão sem titubear.

- Dois!

Todos os seus colegas se puseram a gargalhar, até mesmo o professor acompanhou aquele coro zombeteiro. Apontavam seus dedos para seu corpo desprotegido no meio da sala, atiravam papeizinhos em sua cabeça.

- Vou repetir mais uma vez - tentava conter o riso - quanto é um mais um?

- Dois - insistiu o menino.

A sala estava em polvorosa. Todos gritavam em reprovação e o menino se punha cada vez mais encolhido no meio daquele tribunal de infantes. O professor não se manifestava contrário ao que estava acontecendo, pelo contrário, juntava-se às crianças e proferia palavras que menosprezavam a inteligência do menino.

- Quanto é um mais um, classe?

- Três! Três! Três!

- É dois!

- Três! Três! Três! Um mais um é três!

As gargalhadas cresciam como um enxame sobre a cabeça do menino. O desespero era grande demais, estava sufocado diante daquela que seria a verdade mais absurda que já havia ouvido. Para ele era tão óbvio como a certeza de que o sol sempre nasceria toda manhã.

-Três! Três! Três! É três!

- Dois! Dois! Dois!

Mas, o coro das outras crianças era maior. Suprimia a sua voz, sua convicção, sua resistência e não durou muito até que o menino levantou-se com todas as suas forças.

- É três! É três!

A sirene tocou, mas dessa vez ninguém se levantou correndo como de costume. O menino atravessou a porta da sala e nunca mais foi visto por ali.

quarta-feira, 25 de março de 2015

Bicho Papão

Era uma vez...

Cheguei exausto em casa e não tinha nem estímulo para comer o cuzcuz de quatro horas atrás, abandonado no cuzcuzeiro. Um peso morto e insosso sobre o fogão. Me derramei sobre aquela cama larga e vazia e afundei de cara naquele espaço escorregadio até atravessar a sua matéria. Até debaixo da cama, de qualquer cama.

Toda e qualquer cama que existe, debaixo dela, eu sou o seu inquilino. A noite sopra seu hálito quente sobre as paredes dos lares, mas eu permaneço gélido, sobre o piso frio e empoeirado. De vez em quando elas, as crianças, são capazes de escutar o meu sibilo e prontamente se põem a correr para o quarto de seus pais. Algumas delas se cobrem por completo com seus frágeis lençóis e as mais bravas arriscam encarar as profundezas do meu covil. Nada vêem, senão o pó. Mas eu estou lá. Sempre estarei, sempre estive.

O sol aparece. Minha labuta chega ao seu fim. Enfim, eu morro; e, como a fênix, renasço sobre a minha cama. Não é qualquer cama, é uma cama específica. Encostada na parede, grande, vazia, empapada de suor e insônia. Todos se levantam, escuto os passos ressoando pela casa, mas a porta está encravada no chão e eu permaneço deitado sem o ímpeto para me levantar. Quando finalmente eu me ergo de meu leito, eu preciso sair. Até o momento de negligenciar mais um prato de qualquer coisa sobre o fogão.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Exílio


Sinto o meu estômago se comprimir toda vez que me vem ao pensamento e o que me incomoda não tem nada a ver com as coisas passadas, com a bagagem deixada pra trás em maletas velhas e rotas cheias de cheiros e recordações quase táteis. Nem mesmo o futuro auspicioso ou agourento. O único momento absoluto é esse agora, é o corpo vacilante diante de um poço úmido e abafado com cheiro de barro. O momento que precede a viagem. O irromper da revolução na aurora do dia. Um penetrante autoritário berro silencioso como é a justiça selvagem, sem piedade, sem cerimônia. A mandíbula de mil feras encravadas nos pulmões sobre um palco forrado de folhas decompostas. A viagem que não escolhemos trilhar, a verdade que não decidimos acreditar, o dia que nunca esperamos chegar.

Fui expulso do meu lar por oito patas aracnídeas enroscadas em meus cabelos encaracolados e nesta jornada irei acompanhado de memórias espectrais, de fantasmas nas paredes da locomotiva desta Samsara interminável. Há uma caverna lá fora. É o meu destino. Não para me privar da luz, não para me esconder da vida, desta dor, deste sofrimento, das alegrias e prazeres. Um dos passageiros me disse que havia algo lá, algo para mim. Distante de casa, porém, familiar como a pele que me cobria todos os males, todas as inverdades, todas as carências, desamores, vícios. A teta que nutria a minha alma, o casulo maternal que fazia salivar a ansiedade magnânima da crisálida. O deus insano e terreno que me provia de fé e deleite.

Estava lá! A mandala fluorescente em uma noite sem luar. Junto a uma fogueira eu me pus a cantar com os espíritos a uma distância segura da entrada da gruta. Podia sentir sua respiração úmida, refrescante, com cheiro de barro. O cinza de suas rochas é passageiro. Assim como eu o sou nesta locomotiva infalível. E as cores hão de brotar novamente. Seja no exílio ou de volta ao lar. Porque o que importa no final é somente a viagem. As que escolhemos e aquelas que nos são forçadas. Mas, uma coisa é tão imperativa quanto a própria excomunhão do exilado: a esperança de que um dia escute a melodia do chamado de volta à sua pátria.

terça-feira, 10 de março de 2015

O Camaleão de Simão Dias


Primeiro ele veio com a “Mangaba Madura” em 2001, mais de uma década depois de ter iniciado sua carreira como artista. O título do registro foi uma brincadeira com as qualidades deste fruto bastante regional, que quando maduro tem qualidades medicinais e quando verde é tóxico.

Em 2006, depois de um hiato de cinco anos, ele deu vida à “Aquarela pra Pandeiro” (para quem não sabe, aquarela é uma técnica de pintura na qual se dilui várias tintas na água). Após um longo intervalo de sete anos, agora em 2014, ele publicou o seu mais novo trabalho: “José”. Sua capa traz um registro fotográfico antigo dele mesmo e alguns familiares, composto marcadamente pelas cores primárias azul, vermelho e amarelo.

A mudança de cores, se não for a mais importante ferramenta do camaleão, é sem dúvida a que mais o caracteriza. José Lucivaldo Carvalho Silveira, Nininho Silveira, Nino Karva e finalmente, Nino Karvan. Vários nomes, várias caras, expressadas explicitamente em seus trabalhos artísticos. Todos eles representando a diversidade de cores como o seu protagonista. Seja por meio da versatilidade de estilos nos quais Nino desfila tranquilamente, seja através da naturalidade com que cantarola os seus versos multiplurais.

As cores e Nino são parceiros desde sua estreia em um festival nos anos 80 quando tinha apenas 17 anos. Nessa ocasião, ganhou o primeiro lugar com a composição “a cor linda que incomoda”, que tratava da opressão aos negros. Isso durante o centenário de abolição da escravatura.

Há que se falar das maravilhas e das mazelas

Na canção “Ribeira” do “Aquarela pra Pandeiro”, registro inteiramente influenciado pelo xote, xaxado e baião, por exemplo, o cabra consegue de forma extremamente fácil dizer que “o anarquismo nunca rimou com bagunça e ele apenas desarruma o estado que é ruim; e a burguesia dá o golpe e se apruma metendo chute na bunda do leitor de Bakunin”. Isso sem soar proselitista ou forçado. Inclusive, nesta canção digladiam duas questões quase que antagônicas em sua visão de mundo: o amor e a luta de classes.

“Eu não acredito mais em luta de classes, acredito que o mundo só pode ser mudado com amor e não com conflito”, afirmou o cantador. “A revolução historicamente já provou que só traz mais ódio, ditadura, pós-revolução. Pra manter a hegemonia do poder de um partido que se diz a vanguarda revolucionária, e que a revolução passa a tender a uma cúpula, e o povo passa a ser sempre rebanho nessa revolução. Não! Eu quero um povo consciente das suas obrigações, dos seus direitos e deveres e que cada um se sinta por si só um agente dessa transformação, dessa revolução que tem que ser universal (sic)”, explica.

O simãodiense foi membro fundador do Partido dos Trabalhadores (PT) em Simão Dias. Militou por toda a sua juventude, já foi presidente do partido, candidato a vereador... Obra e vida parecem sempre ter caminhado lado a lado de Nino, já que grande parte de suas composições aborda certas contradições da vida contemporânea. Ele mescla o seu eu bastante arraigado às suas origens interioranas e essa relação com a liquidez dos fenômenos sociais.

Este espírito de militância, que pode ter acabado no que se refere ao campo de atuação política, perdura ainda hoje de outra forma. Há de se convir que para ser um artista autoral! especialmente no Estado de Sergipe, com os pés chafurdados em uma caudalosa moqueca de indiferença congênita, é preciso militar. Militar só. Uma punheta rançosa, sem estímulo. É você e sua ressaca moral dançando sob um sol escaldante (descalço) em um chão forrado de brita. Se der sorte, você pode até conseguir gozar. Sorrindo em êxtase com a palma das mãos sujas e sebosas.

Para Nino, que percorreu quase três décadas deste cenário nefasto, praticamente nada mudou no que se refere às oportunidades para a música autoral. O mercado permanece incipiente e em desvantagem estrutural com relação a outras realidades ao redor do país. O que não quer dizer que a produção daqui deixe a desejar. A propósito, a bandeira antropofágica da primeira “colcha de retalhos” (é assim que ele se refere a dois de seus álbuns), o “Mangaba Madura”, é a de que “havia certa maturidade na produção sergipana a ponto de nós termos orgulho de consumí-la”.

E nesta era de convergência digital, com a corrente reconfiguração da indústria cultural diante da “democratização” dos meios de comunicação, é nítido observar a fertilidade das mentes criativas locais através de trabalhos cada vez mais lapidados e concisos. A ausência de uma economia pujante na cadeia produtiva tem servido como um catalisador nesse processo, meio que a contragosto.

Segundo Nino, já que a instituição do Estado ainda existe, ela tem uma dívida muito grande com o incentivo à produção cultural, mas também a iniciativa privada tem sido negligente na contribuição para o enriquecimento emocional, espiritual e mental das pessoas.

Como o samba está pro som do pandeiro

Como eu já havia mencionado anteriormente nestas laudas, “José” é o mais recente material publicado por Nino Karvan. De todos, é o mais bem produzido, sofisticado, com arranjos e temática mais sólidos e o mais bem amarrado apesar de o registro englobar influências sonoras que transitam desde a infância do compositor até os atuais 45 anos. Porém, essa miscelânea estética faz parte de sua índole criativa e está muito longe de ser um sinal de indefinição. “José” levou sete anos para ser concebido. Um período deveras penoso para um compositor inventivo como ele é. Atualmente, para terem uma noção, o músico compõe de um a dois sambas por semana. Um ano tem 52 semanas. Façam suas projeções!

Todo esse enérgico impulso laboral parece buscar alento por todos os cantos em diversas áreas da expressão artística, já que Nino é também comunicador, musicoterapeuta, luthier, artista plástico, etc. A música assumindo sempre um papel central.

E foi em 2013, quase que acidentalmente, num papo com o percussionista, baterista e produtor musical Dudu Prudente, que Nino se convidou para participar do que veio a ser um de seus mais audaciosos projetos: Anavantou!

Anavantou! é a miscigenação do grupo instrumental sergipano “Membrana” que conta com as participações do pesquisador e maestro Pedrinho Mendonça, o virtuoso gaitista Júlio Rego (parceiro de longa data de Nino) e Dudu Prudente em junção com um grupo de música instrumental belga chamado Turdus Philomelos. Todo esse time é elencado por músicos extremamente competentes e engajados em uma proposta consistente.

 Os trabalhos de Nino, da Membrana e da Turdus Philomelos tem características em comum. São profundamente pautados em experimentações com as raízes tradicionais de suas realidades em fusão com outros gêneros musicais. Forró, maracatu e pífano amalgamando-se com o folclore europeu. Aliás, o forró que tem origem nas danças de salão europeias com um pouco de influência do toré indígena não faz mais do que reencontrar-se com um amigo de longa data. A reunião de lados opostos do atlântico conflui para conceber uma mistura em sintonia com as novas relações do indivíduo global com o espaço. O sintoma dos novos tempos. 

Depois de uma turnê ocorrida entre junho e agosto deste ano passando por alguns países europeus, o grupo recém-formado se consolida cada vez mais escrevendo músicas juntos e em processo de gravação desta parceria internacional. A ideia desta nova banda que vem surpreendendo pelos palcos mundo afora permeada por apresentações instigantes e bastante performáticas teve surgimento em uma conversa entre dois amigos: o percussionista Dudu Prudente e o cineasta belga Damien Chemin. Pensar em um intercâmbio musical se fazia necessário naquele momento.

O episódio ocorreu quando Dudu estava na Bélgica para finalizar a trilha de sua autoria para o longa, rodado em Aracaju, “A Pelada”. O filme, lançado em 2013 e recentemente distribuído pela Paris Filmes, é a primeira produção da indústria cinematográfica brasileira (apesar de ser uma produção franco-belga-brasileira) gravada 100% em Aracaju com a maior parte da equipe e do elenco composta por profissionais sergipanos.

A palavra anavantou, que significa avante em francês, é uma expressão popularmente utilizada nas quadrilhas juninas para marcar o movimento dos dançarinos. Esta ideia semântica que norteia a base rítmica e harmônica desse novo projeto se confunde com a essência latente de Nino. Parafraseando um mártir contemporâneo sob um cajueiro em um dia bastante ensolarado, o camaleão de Simão Dias não disfarça a sua pretensão genuína. “Como Chico Science dizia: Pernambuco embaixo dos pés e a mente na imensidão”. E as coisas vão acontecendo quando tem que acontecer.


Igor Bacelar

Foto por Lucilene Carvalho

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Hoje

Alguma coisa começou a mudar e eu ainda não sei exatamente o quê. O céu está tomado por edificações monstruosas, castelos fantásticos, catedrais, montanhas e elas despencam vagarosamente em direção do solo, ofuscando a lua nesta noite trêmula e fria. As pessoas se amontoaram na frente de suas casas para observar com pavor a exibição absurda daquele momento singular da história da humanidade. O dia em que a realidade escancarou suas portas, janelas, para o absurdo.

Pela primeira vez em mais de uma década, pude ver meus vizinhos reunidos ali na porta, interagindo, fazendo parte de uma comunidade. Reunidos pelo medo. Não um medo comum. Um medo do desconhecido, medo das fronteiras da percepção, medo da inexatidão, medo de perder suas certezas, medo de serem incapazes de alcançar os seus lugares misteriosos, medo da loucura.

Eu havia entrado em uma dessas construções há alguns anos com um amigo. Ela havia surgido onde antes era uma casa abandonada na rua detrás. Não conseguimos compreender o que estava acontecendo, mas sentíamos que era grandioso. Era maior que qualquer coisa que algum indivíduo havia experienciado.  A coisa sumiu do mesmo jeito que surgiu e por muito procuramos sempre afogar estas lembranças nebulosas. Tudo não havia passado de um delírio compartilhado.

Uma mentira provocada por circunstâncias improváveis e uma carência por uma fantasia quimérica que só teríamos acesso em uma partida de RPG ou um sono profundo. Os sonhos foram feitos para morrer junto com seus sonhadores e atormentar aquele que desperta com a memória de um universo despedaçado. Através desta rodovia é que conduzimos por qual senda vamos nos embrenhar e em qual ponto vamos nos chocar em qualquer ponto ocasional.

Talvez naquele dia, nós dois não fizemos mais do que abrir um portal para que essa coisa viesse para cá. Pelo simples fato de termos coexistido naquele pedaço de um mundo impossível, ele próprio impôs a sua existência, esta é a sua condição. Milhões de olhos se amalgamavam na visão apocalíptica da fusão de dois mundos aparentemente antagônicos. A imaginação desabava sobre as noções fabricadas pelo bem comum.

Todos aguardavam a aterrissagem daquelas construções, daqueles horizontes, relevos. Será que havia alguém vivendo ali? A ansiedade mastigava o estômago daqueles corpos silenciosos e desamparados. Se há alguém lá, eles estão dispostos a dividir o mundo cá embaixo conosco? Talvez simplesmente deixaremos de existir assim como foi no dia em que eu e meu amigo, na casa abandonada, tivemos o que por muito nos esforçamos a interpretar como uma alucinação coletiva. A plenitude de um mundo necessariamente reivindicaria a anulação do outro?

Havia tão pouco tempo e provavelmente o gastaríamos simplesmente sentindo medo. Existiu um período em que havia muito tempo e o medo, nós construímos para nos isolar do mundo lá fora. Nada havia mudado exatamente. O que começou como uma manifestação sobrenatural e encantadora do absoluto alastrou-se para o interior do coração dos homens como uma chaga. Não havia espaço para não-espaços.


Eu já havia sonhado muito, todos os dias. Já fui trocentos heróis e trocentos covardes. Já enfrentei centenas de monstros e dezenas de amores e cada vez mais pessoas se amontoavam na frente de minha casa para me consultar sobre alguma coisa proveniente de um lugar que achavam que era íntimo de minhas elocubrações frequentes. Queriam ir, pelo menos, com a ilusão de compreender o que viria dali e no meio daquela balbúrdia mimética eu vi a esperança alva como se a lua ofuscada tivesse descendido o céu nublado e tomado pelos rabiscos mais nefastos das mentes mais criativas. Me aproximei de sua consternação resignada e em tuas plumas cândidas eu a fiz sorrir. No último dia. No último agora. No último hoje de um amanhã que nunca morreria.

I.B.

Pintura de Jacek Yerka.