segunda-feira, 30 de junho de 2014

O Mar

O Dilúvio de Gustave Doré
Três homens naufragados no meio do mar. À deriva. Braços e pernas chacoalhando sobre o abismo esmeralda. A canção aterradora da valsa marítima. A melodia do oceano, os versos que não nos levam a lugar nenhum. Só despertam dúvida, medo, pequenice.

Os três sujeitos se arrastando sobre o breu, sobre os olhos atentos e nefastos de trocentos inimigos invisíveis. Derramados na superfície de um colosso maior que o mundo. Todos afoitos em direção a lugar nenhum. Seguindo aquele que tomou a iniciativa como faz o gado ao avistar o vaqueiro. Um cardume deselegante de caborjas engatinhando na lama.

Três criaturas fugindo de algo que não podiam ver e nem comprovar de que estaria ali. Mais temerosos desta ameaça intangível do que dos paredões marítimos que invadiam os seus pulmões conforme os tragava para cima e para baixo, para cima e para baixo, esboçando ladeiras assustadoras, penhascos bufados de um enorme nariz oceânico.

Lá estavam eles imersos em um ronco eterno, no âmago do pavor e da loucura fitando os olhos do desespero e da incerteza esverdeada. Uma enorme figura se projetou na superfície transparente como em um pequeno aquário no qual besta nenhuma pode se esconder. Era nítido o suficiente para reconhecer aquelas temerosas barbatanas dorsais e aqueles olhos negros e sem expressão. O focinho dele cortava o atrito da água como papel.

Apenas um deles o viu e não conseguiu avisar aos outros. Perdeu a capacidade de se comunicar e simplesmente continuava a nadar sem saber mais o que fazia se é que soube em algum momento. Era o último deles, o que mais próximo estava daquele monstro selvagem. E não passou muito tempo para o terror assumir uma nova face. Como um raio. Mas, não foi estrondoso e barulhento como se esperava. Era um relâmpago órfão, sem trovoada. Um clarão no céu diurno apercebido, sem cor, uma carícia no vácuo, a mão solitária que afaga a si mesma. Uma descarga poderosa e imperceptível. Três sujeitos eram agora apenas dois. Sem sangue, sem grito, sem guerra, só o mesmo silêncio aguado de uma valsa ininterrupta.

Permaneciam atirando-se contra as ondas como se nada tivesse acontecido. Mas, o  horror estava imbuído agora de uma solidez perversa enquanto o mar lançava os seus soldados sádicos. Um pedaço de isopor boiava em algum lugar no horizonte, desaparecendo periodicamente enquanto o mar se deslocava para cima e para baixo, para cima e para baixo.

Agora estavam sobre aquele caco solitário e frágil que se desfazia aos poucos sob os seus corpos pesados demais. As pernas repousadas dentro do oceano eram como pêndulos melancólicos no fim do mundo. Seus olhares voltados para o fosso inescrutável. Piscou os olhos por causa da água salgada e em um hercúleo e corajoso ato, enxugou sua vista embaçada. Voltou a agarrar-se ao pedaço de isopor enquanto o outro permanecia estático. Eles mal respiravam para que nada os escutasse ali, embora seus corpos implorassem para que seus pulmões ofegassem.

Piscou os olhos e ao abri-los estava submerso enroscado em longos e pegajosos braços que mutilavam sua pele encravados em sua carne flácida e intumescida. O arrastava velozmente para baixo como se agora o oceano tivesse perdido a paciência e o estivesse levando para o abismo, para mostrar-lhe todos os olhos que estavam depositados sobre ele desde que acordou no meio disso tudo. Uma chuva de vários bichos cintilantes se atirava de um lado para o outro com seus tentáculos devassos e serpentinosos enquanto o seu captor o tragava cada vez mais fundo.

O mar agora adentrava as suas entranhas, o sugava completamente para o seu leito lodento e ao piscar os olhos uma última vez no breu, pensou pela primeira vez na morte em lugar da vida. Ouvia berros nunca imaginados, urros oriundos do próprio inferno. Ao abrir os olhos, a sua incapacidade de ver no completo escuro só era interrompida pelo brilho violento daqueles bichos e diante dele permanecia uma gigantesca cabeça com olhos negros o encarando. Enormes tentáculos gasturentos agitando-se tranquilamente naquele lugar abandonado. Seu captor disparou em retirada apavorado. Era do tamanho de um prédio. Aquela coisa demoníaca.

Longe dali, na superfície, o pedaço de isopor permanecia incólume. Não havia medo, não havia dúvida, não havia olhos e subitamente não havia isopor, não havia mar, não havia nada.



sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Breves Impressões: Karvan, Membrana e Turdus Philomelos... Anavantou (no Museu da Gente Sergipana)!

Sob as tranças de um jereré gigante se desenrolava um espetáculo inusitado. Poderia até chama-lo de excêntrico, mas, as definições linguísticas da palavra a associam demasiadamente ao estranho, ao esquisito. Pois, o que se passou debaixo daquela rede enorme de pescar siris não tinha nada disso. Era familiar e íntimo. Milimetricamente encaixado como dois amantes no fulgor de sua paixão.

Meu pai vez ou outra pescava siris no mangue utilizando-se de um jereré, pedaço de rede preso a um aro, de formato cônico, mencionado no parágrafo anterior. A versão gigante que habita o pátio do elevador do Museu da Gente Sergipana não capturava crustáceos. Sorvia em seu interior alguns artigos característicos da cultura nordestina dispostos por um artesão.

(A teia tecida por um aracnídeo global, por um pescador sentado pacientemente na esquina do universo)

A metáfora perfeita para aquela orquestra composta por nove homens que percorriam majestosamente o piso liso do salão rodeado de palmas extrovertidas e nádegas preguiçosas pressionadas contra o plástico e o chão. Além de algumas dezenas de pernas notáveis desfilando um ar de autêntica brasilidade naquela junção de algum canto da Bélgica com algum canto do Brasil. Oras, cantarolantes, oras em murmúrios tímidos e atentos.

Muito longe de terem sido tragados para as preliminares auspiciosas de um panelão escaldante, o jereré capturou o que há de mais gracioso em suas patas plurimetamórficas. O acordeão proveniente da europa reencontrou-se com seu filho prodigioso sobre o agreste verbalizado como bandeira por Pedrinho Mendonça, discípulo de grandes percussionistas brasileiros como, por exemplo, Naná Vasconcelos.

A acústica não era lá essas coisas. Havia espaços indesejáveis que provocavam a evasão das ondas sonoras e de alguns pontos do local não era possível ouvir bem alguns detalhes da apresentação. Problemas que foram contornados com maestria pelos técnicos de som que conseguiram sintetizar todo aquele caos espacial de forma bastante competente. O calor do espetáculo fez o resto do trabalho. Envolvendo todos invariavelmente.

Nino Karvan, uma pérola da nata artística sergipana, que acaba de parir o seu “José” (que ainda não tive a oportunidade de escutar), conduziu com primazia e um domínio marcante os temas que embalou com sua voz segura e o velho triângulo retumbante guiado por seus dedos. Aquele cara tem sangue latino! Em algum momento me lembrou uma versão de “A Saucerful of Secrets” de David Gilmour com muito sertão goela abaixo.

Os belgas, eram cinco e se chamam Turdus Philomelos (uma espécie de pássaro que deve habitar aquelas bandas de lá), se misturavam bastante confortáveis naquele amálgama sonoro. Assim foi com os pardais portugueses que se enraizaram na fauna local há alguns séculos atrás.

A dupla Julien e Martin, acordeonista e saxofonista pareciam dois furacões e chamavam bastante atenção com seu senso de humor característico de meninos travessos com uma atitude extremamente ‘punk’. Sem querer rotular a euforia e a alegria dos dois talentosos músicos, mas apenas para ilustrá-las.

Naquela geléia geral precisamente executada, o virtuosismo dava as caras, mas sem perder o elemento emocional da coisa toda. Sem exageros. Dez garrafas de vinho genialmente tragadas com dezenas de copos d’água.

Em um único e incansável movimento, sempre adiante, para frente, quase que exclusivamente corporal, o que marca bastante os ritmos latinos e africanos, eles percorreram a polka, o reggae, o forró, o samba, o blues, o jazz, o rap, a música eletrônica, o progressivo, o psicodélico, o popular, o “erudito” (não em oposição ao popular, mas o gênero musical propriamente, desconsiderando o anacronismo do termo), tudo de uma sutileza bastante fácil e natural.


Uma aula de história musical na qual identificavam-se as conexões culturais expressas em canções. A contemplação de uma partícula de um elo perdido reatando os seus laços, suas origens! e por que não seus cismas? Foi um dos melhores shows de rock que vi há tempos (risos)!

I.B. Versão revisitada de texto originalmente publicado na Revista Rever