O Dilúvio de Gustave Doré |
Os três sujeitos se arrastando sobre o breu, sobre os olhos atentos e nefastos de trocentos inimigos invisíveis. Derramados na superfície de um colosso maior que o mundo. Todos afoitos em direção a lugar nenhum. Seguindo aquele que tomou a iniciativa como faz o gado ao avistar o vaqueiro. Um cardume deselegante de caborjas engatinhando na lama.
Três criaturas fugindo de algo que não podiam ver e nem comprovar de que estaria ali. Mais temerosos desta ameaça intangível do que dos paredões marítimos que invadiam os seus pulmões conforme os tragava para cima e para baixo, para cima e para baixo, esboçando ladeiras assustadoras, penhascos bufados de um enorme nariz oceânico.
Lá estavam eles imersos em um ronco eterno, no âmago do pavor e da loucura fitando os olhos do desespero e da incerteza esverdeada. Uma enorme figura se projetou na superfície transparente como em um pequeno aquário no qual besta nenhuma pode se esconder. Era nítido o suficiente para reconhecer aquelas temerosas barbatanas dorsais e aqueles olhos negros e sem expressão. O focinho dele cortava o atrito da água como papel.
Apenas um deles o viu e não conseguiu avisar aos outros. Perdeu a capacidade de se comunicar e simplesmente continuava a nadar sem saber mais o que fazia se é que soube em algum momento. Era o último deles, o que mais próximo estava daquele monstro selvagem. E não passou muito tempo para o terror assumir uma nova face. Como um raio. Mas, não foi estrondoso e barulhento como se esperava. Era um relâmpago órfão, sem trovoada. Um clarão no céu diurno apercebido, sem cor, uma carícia no vácuo, a mão solitária que afaga a si mesma. Uma descarga poderosa e imperceptível. Três sujeitos eram agora apenas dois. Sem sangue, sem grito, sem guerra, só o mesmo silêncio aguado de uma valsa ininterrupta.
Permaneciam atirando-se contra as ondas como se nada tivesse acontecido. Mas, o horror estava imbuído agora de uma solidez perversa enquanto o mar lançava os seus soldados sádicos. Um pedaço de isopor boiava em algum lugar no horizonte, desaparecendo periodicamente enquanto o mar se deslocava para cima e para baixo, para cima e para baixo.
Agora estavam sobre aquele caco solitário e frágil que se desfazia aos poucos sob os seus corpos pesados demais. As pernas repousadas dentro do oceano eram como pêndulos melancólicos no fim do mundo. Seus olhares voltados para o fosso inescrutável. Piscou os olhos por causa da água salgada e em um hercúleo e corajoso ato, enxugou sua vista embaçada. Voltou a agarrar-se ao pedaço de isopor enquanto o outro permanecia estático. Eles mal respiravam para que nada os escutasse ali, embora seus corpos implorassem para que seus pulmões ofegassem.
Piscou os olhos e ao abri-los estava submerso enroscado em longos e pegajosos braços que mutilavam sua pele encravados em sua carne flácida e intumescida. O arrastava velozmente para baixo como se agora o oceano tivesse perdido a paciência e o estivesse levando para o abismo, para mostrar-lhe todos os olhos que estavam depositados sobre ele desde que acordou no meio disso tudo. Uma chuva de vários bichos cintilantes se atirava de um lado para o outro com seus tentáculos devassos e serpentinosos enquanto o seu captor o tragava cada vez mais fundo.
O mar agora adentrava as suas entranhas, o sugava completamente para o seu leito lodento e ao piscar os olhos uma última vez no breu, pensou pela primeira vez na morte em lugar da vida. Ouvia berros nunca imaginados, urros oriundos do próprio inferno. Ao abrir os olhos, a sua incapacidade de ver no completo escuro só era interrompida pelo brilho violento daqueles bichos e diante dele permanecia uma gigantesca cabeça com olhos negros o encarando. Enormes tentáculos gasturentos agitando-se tranquilamente naquele lugar abandonado. Seu captor disparou em retirada apavorado. Era do tamanho de um prédio. Aquela coisa demoníaca.
Longe dali, na superfície, o pedaço de isopor permanecia incólume. Não havia medo, não havia dúvida, não havia olhos e subitamente não havia isopor, não havia mar, não havia nada.
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