Finalmente diante do notebook pra redigir uma crônica que devo entregar amanhã quando acordar. São 11:45 e meus olhos já pesam por causa do sono curto embalado por uma noite ébria não por causa dos excessos, mas da intensidade que sorvi aqueles suaves e cítricos tragos de um vinho de reserva. El diablo de la media noche!
A noite se prolongou em devaneios, em brisas fluviais, flashbacks de um passado recente e de passados superficialmente remotos, daqueles que integram as nossas mais constantes inclinações afetivas em face de nossas relações com as coisas materiais e abstratas. E dois pares de braços e pernas se entrelaçavam, se aconchegavam habilidosamente como se não fosse apenas fruto de uma única estação que se passou desde o encontro inevitável. Um aracnídeo de oito patas reluzentes, pescando estrelas no fundo de um rio lamacento.
E assim fui dormir. E assim despertei. Não havia estrelas senão aqueles espectros de outrora e continuava belo e o dia cantava mais vivaz. E a noite era dia e a lua era sol. Havia um ninho novo em cima do armário da despensa. Rolinhas "caldo de feijão": os habitantes sempre majestosos dos telhados da vizinhança.
Duas da tarde e eu aguardava, bastante apreensivo, a tatuadora que terminava um serviço na "sala de operações" de seu estúdio. Eu tenho duas ideias para talhar em minha carne e enquanto eu esperava, assistia um documentário sobre a cena do skate nos Estados Unidos no início da década de 90 com um outro tatuador. Havia uma vontade muito grande de desafiar os limites pré-existentes, naquelas pessoas. Seja a gravidade, a lei ou o próprio corpo. Pude ver a grandeza que aqueles jovens detinham em seus olhos. Aquele olhar que ao ser testemunhado, te faz acreditar no impossível junto com o seu portador.
Saí do estúdio com um sentimento de vazio, pois tinha a convicção de que não faria as tatuagens, pelo menos não agora. Não esperava tamanho valor (tou falando de grana) para algo que seria tatuado em meu corpo. Alguém seria eternizado ali e não somente uma particularidade minha, mas outras mãos, outros olhos, até o meu dia derradeiro que a essa altura do campeonato, já me é difícil determinar se virá em breve ou será bem longínquo. Um palco de várias guerras, várias tragédias, dramas, felicidades, angústias, monocromias, polifonias, amores, amores, amor e êxtase.
No caminho para o trampo, nada de novo nos ônibus. Cadeirantes sendo erguidos por pessoas compadecidas para dentro dos coletivos sem elevadores em funcionamento, a cessão de lugar para uma idosa trôpega com problemas nas articulações, atender o telefone celular e se declarar o sujeito mais imbecil do terminal de integração. Nada de novo nas ruas, nos prédios, na cidade. Carros passando, velhinhos bastante dedicados ao seu ofício de fazer suco de laranja, pessoas que peidam berrantemente no ambiente de trabalho. Nada de novo nos pensamentos. Pinturas, quadros, arte, surrealismo... Eis que proclamo a minha sede para a cidade e de prontidão, aqueles caracteres saltam bem diante dos meus olhos: Ananias.
Ananias Cruz é um sujeito que mora em uma praça aqui em meu conjunto. No Sol Nascente. Onde eu cresci e vivi desde os três, quatro anos de idade (?). Seu aspecto sujo, descuidado, abatido pela dureza da vida é desarmado por sua transbordante vivacidade em seu relato de uma coruja que investiu sobre ele nas piçarras verdejantes das ruelas do Aloque. Um povoado que se embrenha aqui em Aracaju (São Cristovão?) e é cortado pelo maltratado Rio Poxim.
Ele estava terminando de pintar um quadro prodigioso que continha uma bucólica paisagem de um casebre num fim de tarde à beira-rio. Fazia com aparente descuido, mas bastante atento para os detalhes. Meu amigo sugeriu uma sombra na frente da casa. Mirando o rio tomado pelo sol gigantesco que se punha no horizonte alaranjado. E ele esfregou aquele pincel na tela e onde não havia nada, surgiu uma sombra misteriosa. Surgiu um novo olhar que vinha de dentro do quadro e de fora para dentro. Ele pediu míseros 20 conto. Eu dei 25. Ele sorriu, apertou minha mão e sua expressão se transformou mais ainda. Irradiou o sol do meio dia. "Agora, eu vou pra Moscou. Agora, eu vou pra Moscou." E partiu em retirada, rumo aos seus ímpetos de auto-mutilação. Não havia nada atrás dele. Só adiante. Em busca da pedra filosofal. Qual é o preço da arte?
I.B.
Nenhum comentário:
Postar um comentário