segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Horizonte de Eventos

Richard Marchand
A gênese
Era escuro o quarto. Acordei lá e não sei bem o porquê. Todos os pontos de referência que eu tinha sobre alguma coisa não existiam mais ou não faziam mais sentido. Eu não saberia dizer se havia se passado uma semana ou um mês ou mesmo um ano. Eu já nem sabia o meu nome ou quem eu era ou como eu era. O quarto escuro era eu e eu era ele. Tudo se resumia àquilo e me pareceu que sempre  fora dessa forma. E a porta se abre arrastando uma explosão luminosa que ofusca os meus olhos e arde como milhares de alfinetes penetrando as minhas pupilas e mordiscando a minha pele.
Horizonte de Eventos
Eis que a mulher está diante de mim com seus cabelos luminosos escorrendo por sobre os seus seios tímidos. Conseguia ver a luz de lá de fora escapando por seus olhos mesmo quando a porta misteriosamente se fechava atrás dela. E nós nos abraçamos e eu afoitamente descobri os seus seios e os aconcheguei em meu peito. O quarto que era tudo o que havia ali parecia ser incapaz de ingerir aquele pequeno sol que aquecia aqueles rasos desfiladeiros gélidos e ressequidos. E tudo ficou cálido, doce, ardente, eterno. E sob meus braços tudo se tornou silêncio novamente. Um silêncio materno que derramava sua solução láctea e nutritiva sobre meus lábios fundidos. Depois do silêncio veio o despertar e ela não estava mais lá.
O quarto
Novamente o escuro se apossava daquele lugar. Mas ao invés de só haver um quarto indissociado de seu inquilino, algo mais habitava aquela substância.  Não saberia dizer se a outra coisa que dividia aquele espaço seria mesmo algo ou a ausência de algo. E se a ausência de algo era de fato algo? Antes era só ausência, mas eu não percebia que o era ou a ausência não me fazia carente de alguma coisa. Tudo simplesmente era e nada mais. A ausência que ficou ou essa coisa que permaneceu por aqui era diferente. Agora eu precisava de algo que não mais estava aqui. E a princípio não me fazia diferença onde eu estava, como eu estava, com quem eu estava. Agora eu sentia fome. E é desconfortável. Dói. Agora eu sou como o quarto que precisa de mim para ser um quarto e por essa razão eu já não era mais o quarto.

Diálogo
A porta se abre e novamente minha percepção dormente é invadida por aquelas chamas rasgantes. Mais uma vez tudo se torna um sistema heliocêntrico e as terríveis forças que tragavam aquele lugar para dentro de si mesmo, comigo junto, eram repelidas atrozmente por aquela figura terrivelmente feminina. O deserto insosso e agreste florescia os seus veios fluviais que não podiam ser testemunhados ali por nada ou ninguém que não fôssemos nós dois. Uma avalanche suave e macia me encobriam os ouvidos e me fazia sentir um tremor na pele através de sua vibração constante e aveludada. Eram pétalas sonoras e eu as rebatia metalicamente de acordo com a música que me era apresentada. Dois solistas perspicazes. Nenhum dos dois queria impor o seu ritmo, mas construir uma peça sólida. Sem início, sem fim. Só frases melodiosas, caóticas, calculadas, grotescas: genuínas. Erotismo. Esses encontros se repetiam ininterruptamente. Na nudez afoita, na calmaria cambaleante, na dialética da vida e de qualquer outra noção que se oponha a isso. Até que um dia ela não estava mais lá.

Finn, (...)
Tudo corroia violentamente dentro daquele quarto. Eu lembrava do meu nome ou tinha criado um enquanto ela esteve aqui (não me lembro bem). Eu lembrava de quanto tempo tinha se passado. Contei todos os dias, horas, minutos, segundos, séculos que estava nocauteado naquele chão duro e fétido. Era o meu fedor. O hálito da fome, da dor inane, o cheiro do escuro e do claustro. Expatriado! Indigente!  Eis que a porta se abre novamente e em um lapso de segundos o quarto já não sou mais eu. De dentro de minha úlcera nefasta, a luz que chamusca meu couro me dá prazer indescritível e a porta se fecha novamente deixando quarto adentro uma coisa pequena, pouco maior que a minha não. Era humanóide. Envolta em um manto rubro de sangue. A porta nunca mais se abriu e aquela coisa permanecia ali. Tive a impressão de que havia dito algo certa vez. Me chamou de pai, criador, deus, não sei dizer ao certo. Sempre era assim no início. Depois eles não falam mais nada. Eles vão se desfazendo na vastidão dos tempos. Eles ficam aqui comigo. Viram quarto.  
I.B.


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