Sob as tranças de um jereré
gigante se desenrolava um espetáculo inusitado. Poderia até chama-lo de
excêntrico, mas, as definições linguísticas da palavra a associam
demasiadamente ao estranho, ao esquisito. Pois, o que se passou debaixo daquela
rede enorme de pescar siris não tinha nada disso. Era familiar e íntimo.
Milimetricamente encaixado como dois amantes no fulgor de sua paixão.
Meu pai vez ou outra pescava
siris no mangue utilizando-se de um jereré, pedaço de rede preso a um aro, de
formato cônico, mencionado no parágrafo anterior. A versão gigante que habita o
pátio do elevador do Museu da Gente Sergipana não capturava crustáceos. Sorvia
em seu interior alguns artigos característicos da cultura nordestina dispostos
por um artesão.
(A teia tecida por um aracnídeo
global, por um pescador sentado pacientemente na esquina do universo)
A metáfora perfeita para aquela
orquestra composta por nove homens que percorriam majestosamente o piso liso do
salão rodeado de palmas extrovertidas e nádegas preguiçosas pressionadas contra
o plástico e o chão. Além de algumas dezenas de pernas notáveis desfilando um
ar de autêntica brasilidade naquela junção de algum canto da Bélgica com algum
canto do Brasil. Oras, cantarolantes, oras em murmúrios tímidos e atentos.
Muito longe de terem sido
tragados para as preliminares auspiciosas de um panelão escaldante, o jereré
capturou o que há de mais gracioso em suas patas plurimetamórficas. O acordeão
proveniente da europa reencontrou-se com seu filho prodigioso sobre o agreste
verbalizado como bandeira por Pedrinho Mendonça, discípulo de grandes
percussionistas brasileiros como, por exemplo, Naná Vasconcelos.
A acústica não era lá essas
coisas. Havia espaços indesejáveis que provocavam a evasão das ondas sonoras e
de alguns pontos do local não era possível ouvir bem alguns detalhes da
apresentação. Problemas que foram contornados com maestria pelos técnicos de
som que conseguiram sintetizar todo aquele caos espacial de forma bastante
competente. O calor do espetáculo fez o resto do trabalho. Envolvendo todos invariavelmente.
Nino Karvan, uma pérola da nata
artística sergipana, que acaba de parir o seu “José” (que ainda não tive a
oportunidade de escutar), conduziu com primazia e um domínio marcante os temas
que embalou com sua voz segura e o velho triângulo retumbante guiado por seus
dedos. Aquele cara tem sangue latino! Em algum momento me lembrou uma versão de
“A Saucerful of Secrets” de David Gilmour com muito sertão goela abaixo.
Os belgas, eram cinco e se chamam
Turdus Philomelos (uma espécie de pássaro que deve habitar aquelas bandas de lá),
se misturavam bastante confortáveis naquele amálgama sonoro. Assim foi com os
pardais portugueses que se enraizaram na fauna local há alguns séculos atrás.
A dupla Julien e Martin,
acordeonista e saxofonista pareciam dois furacões e chamavam bastante atenção
com seu senso de humor característico de meninos travessos com uma atitude
extremamente ‘punk’. Sem querer rotular a euforia e a alegria dos dois
talentosos músicos, mas apenas para ilustrá-las.
Naquela geléia geral precisamente
executada, o virtuosismo dava as caras, mas sem perder o elemento emocional da
coisa toda. Sem exageros. Dez garrafas de vinho genialmente tragadas com
dezenas de copos d’água.
Em um único e incansável
movimento, sempre adiante, para frente, quase que exclusivamente corporal, o
que marca bastante os ritmos latinos e africanos, eles percorreram a polka, o
reggae, o forró, o samba, o blues, o jazz, o rap, a música eletrônica, o
progressivo, o psicodélico, o popular, o “erudito” (não em oposição ao popular,
mas o gênero musical propriamente, desconsiderando o anacronismo do termo), tudo
de uma sutileza bastante fácil e natural.
Uma aula de história musical na
qual identificavam-se as conexões culturais expressas em canções. A
contemplação de uma partícula de um elo perdido reatando os seus laços, suas
origens! e por que não seus cismas? Foi um dos melhores shows de rock que vi há
tempos (risos)!
I.B. Versão revisitada de texto originalmente publicado na Revista Rever
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