domingo, 7 de junho de 2009

Homem só - Parte III


(...)

Era uma rua isolada, iluminada apenas por um poste que se erguia sobre uma cabine telefônica. Seu fulgor, do poste, oscilava entre as trevas e a luz. Havia uma mulher estendida bem ao lado da cabine telefônica, onde havia também uma árvore gigantesca que mergulhava em direção ao céu da madrugada, como uma arma apontada para alguém. Suas raízes estavam fincadas no asfalto e se estendiam por algumas centenas de metros, danificando as estruturas da rua. A copa era tão extensa que cobria metade da rua no escuro. Se não fosse pelo poste relutante... Já quase havia me esquecido! Estavam ali também, fazendo parte da reunião, os que ouso chamar de comensais. A mulher prostrada no chão úmido, a cabine telefônica, e é claro, o poste. Mas como poderia antever isto? Poderia ser mesmo um absurdo pensar que a própria árvore não fosse um conviva. Relegar que eu mesmo fosse o anfitrião daquele banquete de silêncio e trevas era igualmente absurdo! Imediatamente me atirei em direção à mulher, mais por curiosidade do que por qualquer outro motivo. A partir daqui, não tenho palavras suficientes para descrever a beleza do que vi, do que senti. A princípio, não sabia se estava viva ou morta, mas, uma coisa eu tinha absoluta convicção. Eu a amava profundamente! Ela e aqueles cabelos que transitavam entre matizes, conforme a luz do poste acendia e apagava. Desconfio que o próprio poste estivesse desse jeito, pois, não só a sua chama queria examiná-la, como também as trevas que constituíam suas engrenagens. Estávamos todos ali, apenas para contemplar aquela linda mulher, aquele pedaço do universo, bruto, que antevia a qualquer experiência. Eu havia encontrado o útero do todo, e do tudo, e do nada, e só havíamos nós quatro para testemunhar aquilo! Hesitei por alguns instantes em tocá-la. Fui o último a chegar e o único capaz de senti-la fisicamente. Tenho certeza de que eu estava sendo aguardado por algumas madrugadas. Inconscientemente fui convocado para essa reunião, por essa rua, para poder fazer o que nenhum poderia, senti-la em totalidade. Finalmente, despido de medo, verifiquei seu pulso. Pulsava! Vacilante, anêmico, raquítico, mas pulsava. Não tenho idéia de quanto tempo passei ali, era como se tivesse sido jogado em uma cápusla no meio do espaço sideral, imune ao próprio tempo, imune à minha percepção temporal. Ficaria ali até que ela resolvesse acordar de seu coma mordaz. E se ficasse preso naquela rua para todo o sempre? O que ela fora fazer naquela rua afinal? Por que resolvera depositar-se diante da cabine telefônica sob aquele arvoredo frondoso? Quando o outono finalmente chegou e nos cobriu de folhas, o pulso cessou de pulsar. Encarei o céu sobre mim e mirei meus olhos lacrimejantes para as nuvens, para a lua, para todos aqueles que permitiram aquilo acontecer. Até mesmo uma coruja que passava por ali, sentiu-se envergonhada com tamanho descaso. A cabine ressoou o seu tilintar. Atendi a ligação e não ouvi nenhuma voz. Era como se fosse um último suspiro que nunca chegou a ser ouvido. O poste parou de funcionar e eu me ergui daquele chão úmido e soterrado por folhas, olhei-a uma última vez e não tinha dúvida... Eu a amaria enquanto errasse ao redor do mundo. Deixei a árvore sozinha, ela teria o desgosto de ver a mulher decompor-se em sua frente. Infestada de vermes e odores horríveis. Nutrir-se-ia de seu corpo decomposto, através das raízes, do solo, seria a única capaz de senti-la em sua totalidade, que ignorância a minha pensar que eu fosse o único capaz de tocá-la. Como boa anfitriã, varreria toda a sujeira daquela finada reunião, para que o céu, o mundo, não se remoesse por toda a eternidade, não presenciasse aquele assassinato dia após dia. A árvore o guardara para si, por que ela mais do que todo mundo, também amava.

(...)

(pintura de Mark Ryden)

I.B.

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