terça-feira, 9 de junho de 2009

Homem só - Parte IV


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Aquelas luzes todas, típicas de uma madrugada ensandecida nessa cidade. O colorido horrível das aglomerações urbanas, o som de buzinas indo e vindo como granadas em uma guerra, burburinhos em cada esquina que eu cortava, mulheres que pareciam carne exposta em um açougue do buraco mais decrépito de um país esquecido, e seus famintos carnívoros latindo para um céu sem estrelas. Bem-vindo à selva. A selva de pedra! Bem-vindo ao que chamam de realidade, o banquete de homens sobre homens, o canibalismo atroz. Onde as pessoas não agem. Elas só REAGEM! Não existe criação, apenas continuidade, progressão estática, reação imóvel desnaturada. Os novos ídolos desse pandemônio desumano, eram telas de plasma e fios de cobre, homens de plástico abotoados até a própria testa polida em excremento alheio! As cidades sempre me causam esse efeito misantrópico. Agora me recordo por que fiquei tanto tempo naquela lata de sardinha gigantesca. Seria medo de comungar dos mesmos anseios dessa imundície patológica? As aves que planavam pelo teto dessa cúpula em ebulição, eram locomoção para os praticantes dessa insanidade sacrílega. Me engulam se forem capazes! Não! Nenhum de vocês foi capaz de me devorar. Mas, e se eu mesmo o fiz comigo mesmo? Em minhas próprias entranhas? Ouvi gritarem um nome que há muito não escutava. A voz se lançava de trás de mim, e me atingia como uma rajada disparada em um campo de batalha. Aquele ruído ensurdecedor se dirigia a mim! Era como um tiro pelas costas, mas que audácia, que covardia! Decidi não olhar para trás, não pretendia reviver o passado. Senti uma mão pesada me segurar pelo ombro e me forçar a olhar para aquele que me abordara. Aquele rosto me parecia familiar e justamente por isso me amedrontava tanto. Estava cara a cara com algo que me remetia a tempos anteriores ao meu auto-confinamento. Era como um vírus que está inativo até encontrar um hospedeiro. Eu era seu hospedeiro! Ele iria se apropriar de minhas substâncias nutritivas, desencadearia um processo que iria exaurir minhas faculdades mentais até a última gota de consciência. Esse rosto era capaz de me afogar em um tempo que eu não mais transitava. Via seus lábios tremerem e clamarem por algo que eu não ouvia, seus olhos chafurdavam-se em lágrimas e aos poucos fui me sentindo distante daquele lugar. Meu corpo todo formigava e parecia estar se tornando etéreo. Me sentia como um balão, sem gás em seu interior, o que me erguia do chão que eu pisava era senão, vazio! Um vazio associado ao peso, pois, não era leveza que sentia naquele momento, mas um fardo incomensurável. Flutuando, deslizando, em inércia. E essa é a história de como o passado me arremessou vagarosamente rumo ao céu sem estrelas. Pude escutar uma voz macia de mulher e risadas de crianças. Uma música nostálgica que decrescia conforme a melancolia estripava minhas memórias mais doces de um lugar há muito abandonado. Logo, escutei berros e mais berros. Grito, desespero, morte! Devia voltar o quanto antes para meu apartamento, para longe desse barulho estrondoso de vozes e vozes, e buzinas, e motores, e aquela música repugnante, mas, por quanto tempo mais eu teria que flutuar sobre aquelas cabeças desvairadas? Talvez o suficiente para eu perceber que em festa de criança, palhaços estão a assombrar e balões estão a estourar.

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I.B.

(quadro de William Adolphe Bouguereau)

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