sexta-feira, 19 de junho de 2009

Celular

-O que vai querer garota?

-Me dá esse celular que tira fotos com comando de voz e tem internet embutida, dá para ver vídeos, bluetooth, esguicha água nos outros, do menor tamanho possível, que muda de cor no escuro, que reproduz mensagens programadas, que diz oi para mulheres loiras e tem cheiro de mangue. Ah, e que atira aqueles laserzinhos engraçadinhos que dizem que apaga poste!

-Pra que serve um celular mesmo?

-Hã?

-Desculpe, o dinheiro é seu. Não pretendia me intrometer.

-Não entendi a sua pergunta anterior.

E os celulares continuam se reproduzindo como coelhos, e estará nas mãos daqueles que os obtiver, tempo o suficiente para que se finalize o ato coital entre dois preás. A tecnologia é o coelho moderno.

E você... já comprou o seu remédio? Cogitou alguma vez que você é um indivíduo hipocondríaco? Será que o esquizofrênico tem consciência de que é enfermo sem ao menos ser avaliado? Deixe-me levá-lo para a clínica. Prometo meus caros... Eu não vou lhes machucar.

-O que vai querer garota?

-Cenouras.

I.B. & Nog (nas entrelinhas)

Humana

A moça entrou pela porta da frente da lanchonete. Olhou de soslaio para um lindo bebê que estava atracado à sua mãe em uma das mesas, e se manteve ali vislumbrada com a cena tão afetuosa. A criança apertava sua cabeça incisivamente no peito confortável da sua mãe, enquanto ela comia um saboroso hambúrguer de beira de estrada. A moça voltara a si mesma depois daquele surto repentino, embora tenaz. Estava faminta, pois dirigia sua moto milhas e milhas sem descanso. Agora que voltara à plena consciência, subiu em uma das mesas para que todos a vissem.

-Bom-dia! Antecedo-lhes minhas desculpas.

-Por que moça?- falou um senhor de barba mal-feita.

-Pois, assim como vocês, sou humana!

I.B.

Adeus

Exigiu-lhe a bênção, exigiu-lhe o seu calor, exigiu-lhe um pedaço de sua existência. Apenas para abarcar os seus vazios, tapar os seus buracos com lava. Lava que desidrata quando se esvai a quentura, e permanece ali para os refugiados de Pompéia estarem sempre a se remoer pela perda. Um pedaço de si que nunca mais voltará, pois terá renunciado um mundo inteiro dentro de uma partícula subatômica. Amputado, mas não fisicamente. Por que lhe foi exigido um bocado de seu núcleo em pedaços.

I.B.

O Réu

...Calou-se e consentiu com a sentença. O réu olhou-a fixamente nos olhos contritos. Não pronunciou uma palavra sequer. Ele a condenara eternamente por aquela omissão aviltante. Desconcertado, estendeu as mãos ao juiz.

-Prenda-me! Não há mais nada a se averiguar nesse recinto. Me acuso culpado pelos meus pecados. Sou responsável pela minha humanidade!

Fim da sessão. O júri se desfez como formigas num banquete fresco e suculento. Alimentariam os fungos de sua toca, de sua sociedade hierárquica. O réu fora sentenciado: pena máxima.

-A justiça é criação do homem, por isso inexiste. Inexiste pois somos naturalmente injustos.

I.B.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Vasos e flores

E hei de florescer no âmago de tua solidão
Brotando dos cantos mais improváveis de trevas e luz

E hei de brotar nas profundezas de um devaneio seu
Ou até mesmo nas beiradas de um só riso

E hei de me nutrir do teu solo em suspensão
Pois tua lamúria és também meu fardo

E hei de depositar em teu ventre uma semente
Para que tua casca pulse como teu coração fluido

E hei de partir junto à minha carapaça volúvel
Mas não sem ao menos ter sido amado uma única vez

E meus restos jazem nesta piscina solitária
Embora a minha essência transmutada em impressões
Nunca venha a deixar-lhe por completo
Por que eu também te amei

I.B.

... na minha alma.


... E assim me despedi de ti naquela madrugada. Revestido com o seu aroma, meu amuleto. Impregnado de seu cheiro doce. Da sua boca em minha boca, da tua pele em minha pele, dos teus cabelos em meus cabelos, do teu sexo em meus dedos. Mas além da carne sobre a carne, carreguei o cheiro da tua alma...

I.B.

domingo, 14 de junho de 2009

Dia de Cão

O Sol despontava no horizonte, derramando uma luz fosca sobre o mundo, que, lentamente, começava a despertar. Os minutos se arrastavam preguiçosamente nesse princípio de dia, comprimindo a fatalidade do eterno num breve instante. Dali a pouco o mundo entraria em frenesi, todos vagando de um lado para o outro, louca e desesperadamente em busca de algo – ou alguém... Estariam procurando por si próprios, caçando uma imagem fugidia de um seu próprio reflexo que acabava de dobrar a esquina seguinte?
Nesse instante, porém, uma única alma animava as ruas desertas da cidade sonolenta. Solitária, iniciava sua peregrinação diária - sempre há de existir um novo lugar, novas paragens, onde a vida seja um pouco menos penosa... Pouca, ou nenhuma, questão fazia de não ser notada – não havia ninguém mais ali, e, mesmo que houvesse, a última coisa por que esse alguém se interessaria seria esta pobre e triste alma. Isso me faz pensar na capacidade, particular ao ser humano, de ser indiferente ao outro, ou outros.
Sem remorso revirava o lixo em busca da tradicional refeição matinal. Que tal um belo filet para iniciar o dia? Pena que não há nada para tomar; talvez a fonte já esteja funcionando, haverá água...
O frio da noite havia espantado todo mundo das ruas, sequer os roedores das sarjetas arriscavam por o focinho para fora. Seria companhia, ao menos. Bem, estarei só nessas primeiras horas. E só esteve.
A luz fraca da manhã, projetada sobre a água que vertia da fonte criava a bela imagem de um arco multicor. O nômade, avistando-o, aparentou se interessar. Aparentou apenas... Virou o rosto para o lado oposto. Levantou as narinas e começou a farejar. Havia algo ali próximo. Cheiro de pão, pão fresco, recém saído do forno. Não sei por que ainda sonho com uma bela fatia desse pão. Jamais receberia um pouco daquele muito.
Água, seria muito mais fácil conseguir. Ainda está limpa, devem ter trocado a água ontem mesmo. Pobre coitado, jamais teria imaginado que o homem de uniforme e com um taco de madeira na mão seria cruel a ponto de impedi-lo de beber da água da fonte. Não servem para isso as fontes d'água? Por que me manda embora dessa forma? Foi expulso sob chutes e golpes de taco.
Enquanto se afastava paulatinamente, o senhor guarda gritava já ao longe: "E que você nunca mais volte, seu mendigo miserável e imundo! Nunca mais venha poluir as nossas fontes com a sua sujeira, seu verme! Isso aqui não é lugar para cães rastejadores como você!"
P.M.

Sides

"Allowing you into my mind was much easier than letting you go...."

P.M.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Renascença

E sobre sua carne inscrevo esse epitáfio
Tinjo seu couro com o fluido que pulsara em minhas artérias
Eu quem uma vez amou aquecido por lágrimas em um sofá
Agora estou aqui em meu último suspiro
Pronto para dar lugar a um outro

E sobre sua carne inscrevo esse epitáfio
Sopro-lhe em seus ouvidos instruções de como preservar-me contigo
Eu quem disse coisas doces e afetuosas para um amor autêntico
Jaz aqui uma carcaça em decomposição
Não temo que reste tudo ao meu herdeiro

E sobre sua carne inscrevo esse epitáfio
Enquanto repousa, eu caminho por entre as tumbas de ontem
Palpitavam como se prestes a serem lacradas de seu interior
Cavarei a minha própria alcova
Amo-lhe plenamente e por isso não tenho pesares

E sobre sua carne inscrevo esse epitáfio

E por isso me despeço de ti
E por isso me desfaço em teu sono
E por isso me permita o adeus à minha amada
E por isso me conceda a liberdade

E sobre sua carne inscrevo esse epitáfio


I.B.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Homem só - Parte V


(...)

Entrei naquele quarto velho e manchado de tinta do teto ao chão. Lancei um olhar provocativo para a janela colorida. Abri as cortinas e admirei aquela vista como se fosse pela última vez. Estava no topo do mundo, mas era como se estivesse sepultado em uma vala, como um indigente. Apanhei o balde de tinta branca que estava ao lado da privada e principiei o que seria minha mais nova ocupação naquela madrugada, comecei a pintar a janela de branco. Antes havia ponderado pintá-la de preto para a nova função que deveria assumir a partir de finalizado o trabalho, mas branco condizia mais com a situação vigente. Eis a razão:

A cor branca é a junção de todas as cores, mas aparenta ser destituída de cor alguma. Reflete todas as frequências de raios luminosos, reagindo de tal forma a contraditoriamente estar reclusa de toda e qualquer claridade. Ela por si só é claridade, sozinha, reprime-se de tudo quanto lhe é possível, destituída de pigmentação. Basta um esguicho de areia e água, e ela está nitidamente manchada. O branco está fadado a essa condição. Está isolado e ainda assim comporta todas as cores para si, invisíveis. Associam paz à cor branca, e para mim a paz é suscetível a ser manchada, com um simples esguicho de areia e água. O conceito de paz só existe, por que há a discórdia. A cor branca é a cor das trevas. Estou certo disso!

A cor preta absorve todos os raios luminosos como se funcionasse como um aspirador ou um buraco negro. É a ausência de cores, de divergência, é um só e nenhum ao mesmo tempo. Age de tal forma a envolver tudo para si. Associo o preto ao insaciável, incansável, longe da indolência de sua irmã. Isso me lembra uma citação de uma entrevista do controverso escritor americano Henry Miller, que me deparei uma vez. Nunca li nada desse sujeito, mas isso me fez refletir especialmente sobre cores! Era o seguinte, "na realidade pouca revolta de qualquer espécie é permitida ao homem moderno. Ele já não age, ele reage. Ele é a vítima que, afinal, veio a ser apanhada na sua própria armadilha". Percebem por que escolhi branco ao invés de preto? Eu fui apanhado na minha própria armadilha!

Branco, negro. Antipatia, simpatia. Ódio, amor. Cansaço, entusiasmo. Contraditoriamente enxergamos justamente o contrário do que as cores realmente representam em seu cerne. Nos conformamos com a obviedade. Acomodados demais no nosso sofá macio infestado de ácaros, para levantarmos e mudar o canal mesmo com o controle quebrado. Cores! Cores! Foram as cores que me fizeram tanta companhia todo esse tempo, enquanto estive enclausurado nesse quarto. Enquanto ELES(!)... haviam tomado de mim tudo o que eu havia construído, as extensões do que me constituíam, a minha quietude, a paixão. Nunca mais ouvirei aquelas vozes doces a cantar. Finalizei meu trabalho, as paredes a testemunhar debilmente, tapadas em tinta, em cores. A janela estava enfim pintada. Quem em sã consciência recusaria o convite de uma janela branca? Eu não.

(.)

I.B.

(foto por Zilda Onofri)

terça-feira, 9 de junho de 2009

À Vênus


É por ser nu que és visível meu amor. De carne exposta e aroma singular. Nenhum cobertor, nenhum pano ouse cobrí-lo e sufocar-lhe os poros...

(27/03/09)

I.B.

(pintura de Alexandre Cabanel)

Homem só - Parte IV


(...)

Aquelas luzes todas, típicas de uma madrugada ensandecida nessa cidade. O colorido horrível das aglomerações urbanas, o som de buzinas indo e vindo como granadas em uma guerra, burburinhos em cada esquina que eu cortava, mulheres que pareciam carne exposta em um açougue do buraco mais decrépito de um país esquecido, e seus famintos carnívoros latindo para um céu sem estrelas. Bem-vindo à selva. A selva de pedra! Bem-vindo ao que chamam de realidade, o banquete de homens sobre homens, o canibalismo atroz. Onde as pessoas não agem. Elas só REAGEM! Não existe criação, apenas continuidade, progressão estática, reação imóvel desnaturada. Os novos ídolos desse pandemônio desumano, eram telas de plasma e fios de cobre, homens de plástico abotoados até a própria testa polida em excremento alheio! As cidades sempre me causam esse efeito misantrópico. Agora me recordo por que fiquei tanto tempo naquela lata de sardinha gigantesca. Seria medo de comungar dos mesmos anseios dessa imundície patológica? As aves que planavam pelo teto dessa cúpula em ebulição, eram locomoção para os praticantes dessa insanidade sacrílega. Me engulam se forem capazes! Não! Nenhum de vocês foi capaz de me devorar. Mas, e se eu mesmo o fiz comigo mesmo? Em minhas próprias entranhas? Ouvi gritarem um nome que há muito não escutava. A voz se lançava de trás de mim, e me atingia como uma rajada disparada em um campo de batalha. Aquele ruído ensurdecedor se dirigia a mim! Era como um tiro pelas costas, mas que audácia, que covardia! Decidi não olhar para trás, não pretendia reviver o passado. Senti uma mão pesada me segurar pelo ombro e me forçar a olhar para aquele que me abordara. Aquele rosto me parecia familiar e justamente por isso me amedrontava tanto. Estava cara a cara com algo que me remetia a tempos anteriores ao meu auto-confinamento. Era como um vírus que está inativo até encontrar um hospedeiro. Eu era seu hospedeiro! Ele iria se apropriar de minhas substâncias nutritivas, desencadearia um processo que iria exaurir minhas faculdades mentais até a última gota de consciência. Esse rosto era capaz de me afogar em um tempo que eu não mais transitava. Via seus lábios tremerem e clamarem por algo que eu não ouvia, seus olhos chafurdavam-se em lágrimas e aos poucos fui me sentindo distante daquele lugar. Meu corpo todo formigava e parecia estar se tornando etéreo. Me sentia como um balão, sem gás em seu interior, o que me erguia do chão que eu pisava era senão, vazio! Um vazio associado ao peso, pois, não era leveza que sentia naquele momento, mas um fardo incomensurável. Flutuando, deslizando, em inércia. E essa é a história de como o passado me arremessou vagarosamente rumo ao céu sem estrelas. Pude escutar uma voz macia de mulher e risadas de crianças. Uma música nostálgica que decrescia conforme a melancolia estripava minhas memórias mais doces de um lugar há muito abandonado. Logo, escutei berros e mais berros. Grito, desespero, morte! Devia voltar o quanto antes para meu apartamento, para longe desse barulho estrondoso de vozes e vozes, e buzinas, e motores, e aquela música repugnante, mas, por quanto tempo mais eu teria que flutuar sobre aquelas cabeças desvairadas? Talvez o suficiente para eu perceber que em festa de criança, palhaços estão a assombrar e balões estão a estourar.

(...)

I.B.

(quadro de William Adolphe Bouguereau)

domingo, 7 de junho de 2009

Homem só - Parte III


(...)

Era uma rua isolada, iluminada apenas por um poste que se erguia sobre uma cabine telefônica. Seu fulgor, do poste, oscilava entre as trevas e a luz. Havia uma mulher estendida bem ao lado da cabine telefônica, onde havia também uma árvore gigantesca que mergulhava em direção ao céu da madrugada, como uma arma apontada para alguém. Suas raízes estavam fincadas no asfalto e se estendiam por algumas centenas de metros, danificando as estruturas da rua. A copa era tão extensa que cobria metade da rua no escuro. Se não fosse pelo poste relutante... Já quase havia me esquecido! Estavam ali também, fazendo parte da reunião, os que ouso chamar de comensais. A mulher prostrada no chão úmido, a cabine telefônica, e é claro, o poste. Mas como poderia antever isto? Poderia ser mesmo um absurdo pensar que a própria árvore não fosse um conviva. Relegar que eu mesmo fosse o anfitrião daquele banquete de silêncio e trevas era igualmente absurdo! Imediatamente me atirei em direção à mulher, mais por curiosidade do que por qualquer outro motivo. A partir daqui, não tenho palavras suficientes para descrever a beleza do que vi, do que senti. A princípio, não sabia se estava viva ou morta, mas, uma coisa eu tinha absoluta convicção. Eu a amava profundamente! Ela e aqueles cabelos que transitavam entre matizes, conforme a luz do poste acendia e apagava. Desconfio que o próprio poste estivesse desse jeito, pois, não só a sua chama queria examiná-la, como também as trevas que constituíam suas engrenagens. Estávamos todos ali, apenas para contemplar aquela linda mulher, aquele pedaço do universo, bruto, que antevia a qualquer experiência. Eu havia encontrado o útero do todo, e do tudo, e do nada, e só havíamos nós quatro para testemunhar aquilo! Hesitei por alguns instantes em tocá-la. Fui o último a chegar e o único capaz de senti-la fisicamente. Tenho certeza de que eu estava sendo aguardado por algumas madrugadas. Inconscientemente fui convocado para essa reunião, por essa rua, para poder fazer o que nenhum poderia, senti-la em totalidade. Finalmente, despido de medo, verifiquei seu pulso. Pulsava! Vacilante, anêmico, raquítico, mas pulsava. Não tenho idéia de quanto tempo passei ali, era como se tivesse sido jogado em uma cápusla no meio do espaço sideral, imune ao próprio tempo, imune à minha percepção temporal. Ficaria ali até que ela resolvesse acordar de seu coma mordaz. E se ficasse preso naquela rua para todo o sempre? O que ela fora fazer naquela rua afinal? Por que resolvera depositar-se diante da cabine telefônica sob aquele arvoredo frondoso? Quando o outono finalmente chegou e nos cobriu de folhas, o pulso cessou de pulsar. Encarei o céu sobre mim e mirei meus olhos lacrimejantes para as nuvens, para a lua, para todos aqueles que permitiram aquilo acontecer. Até mesmo uma coruja que passava por ali, sentiu-se envergonhada com tamanho descaso. A cabine ressoou o seu tilintar. Atendi a ligação e não ouvi nenhuma voz. Era como se fosse um último suspiro que nunca chegou a ser ouvido. O poste parou de funcionar e eu me ergui daquele chão úmido e soterrado por folhas, olhei-a uma última vez e não tinha dúvida... Eu a amaria enquanto errasse ao redor do mundo. Deixei a árvore sozinha, ela teria o desgosto de ver a mulher decompor-se em sua frente. Infestada de vermes e odores horríveis. Nutrir-se-ia de seu corpo decomposto, através das raízes, do solo, seria a única capaz de senti-la em sua totalidade, que ignorância a minha pensar que eu fosse o único capaz de tocá-la. Como boa anfitriã, varreria toda a sujeira daquela finada reunião, para que o céu, o mundo, não se remoesse por toda a eternidade, não presenciasse aquele assassinato dia após dia. A árvore o guardara para si, por que ela mais do que todo mundo, também amava.

(...)

(pintura de Mark Ryden)

I.B.

sábado, 6 de junho de 2009

Homem só - Parte II


(...)

O homem de uniforme guardava a entrada do prédio. O chamavam de vigia, porteiro! Mas ele guardava algo muito mais significante do que um portão de um condomínio antigo. O homem de uniforme guardava o arco-íris dentro de um pote de vidro! Era uma missão muito importante, pois ele detinha o dom de conceber quase um milagre, quando as gotículas de chuva estão em suspensão no ar, e o Sol penetra em seus corpos fluidos. Vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, anil e violeta. Essas pontes majestosas de cores e luz, não pertencem ao mundo dos homens. Você as vê claramente em florestas, perto de cachoeiras... Quanto mais submergida está a natureza nas florestas de concreto, que costumam chamar de cidades, centros urbanos e etc e tal, menor o contato dessas pontes com a realidade. O homem esqueceu-se que é tambem natureza. Se considerarmos a natureza como a desordem, e o homem como o seu paradoxo, o caos urbano é uma tentativa da natureza de corromper a ordem, corromper o homem, reclamá-lo para si novamente (a dualidade do gênero humano). E o vigia ali, segurando aquele vistoso pote de vidro. E se ele fosse meu? Teria o arco-íris inteiro só para mim! Deleitaria-me em suas cores sedosas, quase tangíveis, leves, infinitas. Para mim a ordem é um poema parnasiano, e a natureza um devaneio romântico. Prefiro o caos criativo, o impulso. Mas, quando gotículas de chuva estão suspensas no ar e a luz do Sol as atinge, necessariamente temos um arco-íris. Por que as coisas bonitas também tem fórmulas? O vigia roubou o arco-íris para si, para nunca mais vê-los como um simples arranjo de água e luz. Roubou-os para preservar sua beleza inefável. Diante dos meus olhos, eu o deixei com aquele fardo, e homem nenhum teria o direito de abarcá-lo para si. Os vigias são pagos para vigiar, o arco-íris para ser vislumbrado, e eu, para entreter o incolor cotidiano. Nunca recebi um centavo, muito menos o arco-íris!

(...)

I.B.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Homem só - Parte I


Cacos de vidro mastigam a sola dos meus pés enquanto me desloco naquele quarto escuro. A janela, colorida, me convida para adentrá-la e nunca mais pisar naquele chão, naqueles cacos banhados em vermelho vívido. Vermelho vivo. Um convite rumo aos confins do meu próprio frenesi. Momentaneamente considero o que me foi recomendado. Mas quem em sã consciência daria ouvidos à uma janela colorida? Lembro-me que ela está assim por que decorei o apartamento jogando vários baldes de tinta ao redor da casa. Nos móveis, nas paredes, na cama... Queria todas as cores para mim! Para me fazerem companhia! Decidi dar uma volta lá embaixo para clarear a cabeça. Preferi pegar as escadas (tenho medo de tudo que me lembre parede, como um elevador), pois cada degrau tem uma história para contar. Gosto de ouví-las enquanto caminho sobre eles, sobre elas. Eles conhecem todo mundo, pois todo mundo, só é alguém neste prédio, quando está na solidão das escadas. Subindo, ofegantes, subindo, descendo, ofegantes. O que é a vida senão um conjunto de decisões e ações fatigantes? Diferentemente das paredes, escadas não julgam as ações humanas. Por exemplo, uma vez fiquei sabendo que Tainá tinha problemas no joelho, a forma de uma pessoa andar diz muito sobre ela. Os pés sustentam todo o nosso corpo! A forma com que deslizamos pela superfície, ora graciosa, ora desajeitada, nos é inalienável. E quem não tem pés? Tainá sempre tem algo a esconder, seus segredos pressionaram tanto seus joelhos... Sua obscuridade desgastou suas articulações. Ela não é quem aparenta ser. Tenho medo de passar em frente ao apartamento 101! Seu espírito é pesado. Ouço risadas lá dentro. Risadas sinceras. Risadas de Tainá! Ela ri demais, por isso anda mancando. Como alguém pode se sentir confortável entre paredes? As paredes tem acesso aos frutos do que se passa em nossas cabeças, o pensamento refletido em ação, expressão, e o chuveiro pode tocar a semente, o âmago da ação, da expressão, através das gotas d'água, penetram em nossa inteligência, pelos poros, pelos olhos, ouvidos, nariz, cabelo, mãos, torso, até mesmo pelas unhas dos pés. Afinal, é a cabeça que sustenta o espírito, ou o espírito que sustenta a cabeça? De qualquer forma, os pés sempre estão lá, e se não estiverem... Você não pode subir escadas!

(...)

I.B.