sábado, 17 de janeiro de 2009

O barco

Ele acabara de sair de uma terrível tormenta e aquela ferida que teima a cicatrizar, exposta, viril, cáustica, fora aberta como uma semente que germina, em direção à luz. Há tempos não sentira a noite desabar sobre seus ombros, foi tomado imediatamente pelo cansaço. O corpo refletia seu ébrio, pendendo de um lado para o outro sem encontrar um lugar para despencar, um semblante que arrancava das entranhas a bílis e a expunha descaradamente para todos os malditos. Doía para alguns presenciar aquela mágoa que forçadamente contida saía pelos poros, pelos olhos, pela alma. Foi pego contemplando o mar, e era tão triste ver aquela pobre criatura tão cheia de vida, tão murcha e negra... negra como a noite. Compartilhando com as pedras essa visão solitária, de pés no silte, no sal, no vaivém das ondas, o fluxo das águas, a prova de que a terra é um ser vivo, em comunhão com os espíritos que jorram das artérias mais comprimidas. Já não via mais aquela figura cadavérica, putrefata... sublimou-se, dispersou-se no ar, no vento, no mundo... Mas havia deixado algo ali em sua oscilação melancólica, um resquício de sua breve estadia naquele canto do mundo e eu mudo, naufragado na terra, desgastado pela maresia, pelas inúmeras navegações que me foram atribuídas e por meu fim sombrio... Ele deixara uma flor amarela sob a sombra do meu mastro carcomido.

"As palavras não podem exprimir a cor dos nossos espíritos".
I.B.

Um comentário:

Olhodolago disse...

"O Barco!
Noite no teu, tão bonito
Sorriso solto perdido
Horizonte, madrugada
O riso, o arco da madrugada
O porto, nada!...

Navegar é preciso, viver não é preciso"



o que me remete, pro que fiz remeter.