sexta-feira, 22 de maio de 2009

Castelos de Areia


O céu estava nebuloso naquela tarde de tom cinza. Sentado à beira da praia no recanto mais inóspito da costa, estava um sujeito belo e esguio de feições quase femininas, não só o rosto, mas o imaterial, tudo que o compunha. Taciturno. Estava de pés descalços e sentia a maciez áspera do terreno arenoso. Microscópicas rochas carcomidas pelo vento, pela água, a areia. Várias conchas e pequenas pedrinhas vestiam o solo como se este estivesse a desfilar em um baile real, digno de uma rainha. Vez ou outra, alguns siris punham metade de seus frágeis corpos de crustáceo para fora de suas tocas de areia, e o fitavam com seus olhinhos escuros. Mirou aquele horizonte oceânico preenchido por plataformas petrolíferas, aqueles gigantes de metal que acompanharam o progresso da sociedade contemporânea e estão dirigindo-a à falência. Mas eles não eram sua única companhia. Alguns pequenos pássaros arriscavam-se a marchar pela praia, bem próximos ao sujeito sentado. O pouco de receio que tinham era suprimido pela curiosidade. Ele se levantou de sua meditação homeostática, inevitavelmente afugentando os animais, e passeou pelas dunas da praia, até encontrar um pequeno balde, algumas pazinhas, e logo ao lado, um castelo de areia! Provavelmente alguma criança, mais cedo, tinha feito aquela pequenina obra de arte e esquecido seus brinquedos, verdadeiros pincéis da areia, pois, era tão bonito observar aquele singelo monumento erguido por delicadas mãos de criança. Era uma pena que a maré iria avançar e desmanchá-lo todo, dissolver o fruto de um artista, sua obra transitória, fotografia psíquica, ulteriormente intangível. Iria ser tragada pelo vai-e-vem do mar, misturada no infinito oceânico para nunca mais se recompor, precocemente inundado pela água salgada. Alguém deveria antever essa característica de se construir um castelo de areia, a condição a que eles estão fadados, nascer e perecer em um piscar de olhos. Não foi culpa da criança, ela não pretendia agir com crueldade, é a simples natureza das coisas. Todas as coisas estão fincadas em uma praia, como uma placa de salva-vidas, e o mar sempre haverá de estar lá, o seu dom da ubiqüidade, e as ondas ululam o dia inteiro sem descanso. Somos areia! Ele não suportou presenciar aquele teatro horrível em que o personagem principal tem que morrer! Hoje, não haveria espaço para tragédias! Cuidadosamente, o sujeito, utilizando-se das pequenas ferramentas que estavam ao lado do balde, pôs-se a raspar o chão sob o pequeno castelo e fez um tapete com um pedaço de papelão que havia encontrado enganchado em uma moita, onde colocou delicadamente o castelo em cima. Carregou-o vagarosamente até o topo de uma duna onde o mar nunca poderia alcançar. Encheu-se de um prazer tão grande depois do seu feitio, que sentiu sua alma tristonha, revigorar-se plenamente. O sujeito contemplou pela última vez aquele pequeno castelo de areia, e relutantemente se afastou, desaparecendo no horizonte. E lá no meio do mar, onde descansavam inertes as grandes plataformas de metal, o vento soprava forte em direção ao litoral, à praia, e o castelo permanecia firme, tenaz, como se o sujeito solitário o houvesse imbuído de humanidade, de vontade. Queria crer que aquilo fosse o suficiente, e parecia que seria. Aquela batalha exaustiva contra as rajadas que se chocavam naquela duna, naquela fortaleza exposta aos soldados de uma nação vizinha, e ele se mantinha erguido, como um bravo general diante de sua tropa devastada. As nuvens que já se afirmavam desde o início do dia, fizeram chuva, chuva torrencial. E lá estava ele, imóvel, só, como um castelo de areia deveria estar, e assim como todos eles, a desmanchar.

I.B.

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