segunda-feira, 13 de abril de 2009

Interlúdio




..."A mente tem mil olhos, o coração apenas um."

Crepúsculo de inverno. A chuva torrencial disfarçou cada segundo desse dia: em crepúsculo. A janela estava aberta e ele estava deitado em seu leito ouvindo as pesadas gotas caindo sobre o piso do lado de fora, sobre as ruas. E os bueiros a cantar violentamente em resposta à correnteza da água. Há várias horas estava deitado olhando para o teto branco. Deixara a janela aberta e o vento soprava gotículas de chuva que caíam em seu rosto inerte. Nem mesmo os trovões eram capazes de despertarem-lhe surpresa. Parecia que estava em outro lugar, e o que jazia ali era senão um corpo oco. Em um devaneio nos locais mais remotos de sua consciência, nas terras ermas e insólitas de um indivíduo que não pertencia a mais lugar nenhum além dele mesmo. Mas ele mesmo não fora capaz de evitar a sua desgraça, pela primeira vez entregou-se ao destino e não ousou mover um dedo sequer. Não é bem verdade que o que é para ser será. A escolha existe para todos, porém ele se deixou levar por essa apatia quase religiosa. Permitiu essa força coercitiva lhe nocautear com um cruzado de direita. Nem ao menos se deu ao esforço de erguer-se. Sujeito indolente. Agora está afundando em um colchão, desprezando a beleza que é o toque da chuva, a sua melodia suave, o tamboreio dos trovões e o chicotear inflexível dos relâmpagos. Um insulto a sua essência de se admirar com as coisas mais corriqueiras, mundanas de qualquer bocado do tudo e do nada, por mais ínfimo que parecesse, por mais óbvio que se apresentasse para os seus sentidos. Sempre existe um mundo inteiro de percepções até mesmo em um grão de areia. Afastar esse zelo pelas coisas, esse interesse primordial pela vastidão, esvaziava seu empenho em ser, em existir. "A parte de mim que só você conhecia, nunca mais será entendida", ele se levantou e pela primeira vez pisou no chão frio e sórdido, descalço. Era como se aquilo o tivesse tomado, lhe dado uma dose de realidade. Uma realidade há muito infligida por um sono opressivo, uma infecção purulenta que gangrenava aquela carcaça cambaleante, aquele rascunho de indivíduo. "A luz de uma vida inteira se desfaz diante de mim".


"Tudo que somos, são folhas de outono". Caminhava rua afora naquela noite de outono. Não sabia para onde ir e nem de onde viera. Sentou-se junto a um bando de boêmios cantarolantes e irremediavelmente alegres. Simpáticas figuras embebicadas. Pôs-se a beber junto àqueles cães sem dono, dialogando com o silêncio, silenciando consigo mesmo. "Por que choras meu bom homem?", punham mais vinho em uma caneca suja e velha. Cobriu em vão seus olhos tristonhos. Soluçava em pranto. "Todas as lembranças são rastros de lágrimas". Tudo a sua volta perdia a solidez, sentia-se como um viajante desavisado despencando em um pântano com areia movediça, seus esforços equívocos o afundavam cada vez mais naquela lama pegajosa. Embora estivesse acompanhado, sentia-se tremendamente só. Enquanto aquele bando uivava para a lua, em torno de uma fogueira a dançar, a cadência de seus corpos criou-lhe um interesse peculiar. Gole após gole. Não sabia ao certo o que olhava, para que olhava, mas não conseguia lhes tirar os olhos. Não sabia se aquela cena o incomodava ou o transportava para tempos passados, que tipo de delírio o tragava daquele luau alucinado. Como resposta às orações corpóreas, à liturgia da alcatéia desvairada, as nuvens se amontoaram cinzentas sobre aquela terra fustigada, intempérica. "Me digam agora, quem está por trás da chuva."


Os dois se levantaram de seu sono naquela campina esverdeada. O capim estava alto e as gotas de orvalho umedeciam o solo, o ar. Havia uma única árvore naquela planície, frondosa, eles a escolheram para deitar sob sua cabeleira esmeralda, sob o aconchego de seus braços ramificados. Ouvia-se o canto dos pássaros a fazer ninhos em sua copa. Caminharam de mãos dadas até as margens de um riacho não muito distante dali e se despiram. Banharam-se tranqüilamente, sem pressa, sem urgência de se despedir daquela centelha do infinito. As toras de árvore que encontravam no chão, usavam para se aquecer à noite, os frutos maduros que se pronunciavam dos galhos, colhiam em risos insustentavelmente largos, do tamanho de seus espíritos. Encontraram uma clareira de terra úmida e ela começou a pintar o corpo do outro com a areia molhada, presenteando-lhe com sua visão artística do impossível esculpida em carne, em poros, em pele. Ele apalpou o seio desnudo, sincero, e nutriu-se de sua feminilidade exposta. Não cansava de mirar aqueles olhos. Não se incomodava de ser penetrada por aqueles olhos. "Os olhos são espelhos da alma". "Mas será que os espelhos nos mostram o que realmente somos? Os espelhos não podem refletir a alma. Os espelhos são avessos". Mas aqueles olhos penetravam com uma sinceridade distinta, continham muito em tão pouco... Estavam os dois abraçados, desajeitadamente belos e jovens. Era a primeira alvorada da primavera e as nuvens se reuniram naquela manhã ensolarada. Era a primeira chuva da primavera que proferia seus acordes maiores, sem nenhum traço melancólico. Bucólico, idílico. Um sonho possível de uma primavera perdida.

(fotos por Zilda Onofri)

I.B.

Nenhum comentário: