Alguns livros repousavam sobre a mesa. A luminária começava a falhar, despejando uma luz insegura sobre as páginas abertas, manchadas pelo vinho que pingava do meu queixo. Não me importava. A única coisa que verdadeiramente me interessa nos livros são as palavras – muitas vezes regurgitadas por um ser sem rosto e sem talento, de cuja face borrada se abre uma fenda a que insiste chamar de boca. Grunhidos, somente, saem dali. Por vezes, apenas um odor insuportável. Prefiro fechá-la, essa boca purulenta, quando sinto as primeiras gotas de saliva atingirem o meu rosto. É o prenúncio do escarro que aquele não-rosto me lançou.
Estava fatigado como a há muito tempo não me sentia. Meus olhos doíam, minha cabeça, minhas costas. Levantei o rosto para descansar. Estava na mesma posição havia muitas horas.
Inadvertidamente, repousei meus olhos sobre um quadro pendurado na parede branca do quarto. Podia ouvir dentro da minha cabeça o grito de agonia emitido pela figura pálido-azulada, de face deformada por grotescas protuberâncias que emergiam da sua fronte. Estavam prestes a explodir essas protuberâncias, como um vulcão que entra em erupção após longos anos de sono. Não suportava tanta agonia, não naquele momento, não naquele dia. Empregava toda minha força de vontade para desviar o olhar daquele ser angustiado. Não conseguia... Foi quando percebi pequenas pétalas que lhe caíam dos céus sobre o rosto, cobrindo os vulcões, aliviando a minha própria dor. As pétalas eram negras....
Somente então notei a fumaça espessa que bruxuleava ao meu redor, impregnando a atmosfera com o cheiro forte do tabaco. Lembrei-me do cigarro que segurava entre os dedos. Já começava a me queimar a mão. Larguei-o ao chão, displicentemente. As cinzas se espalharam sobre o piso de madeira já imundo pela gordura que soltava do meu corpo. Alguns pratos de comida velha e podre permaneciam esquecidos no meu quarto. Um ou outro copo, outrora preenchido pelo mais nobre vinho. Roupas não me faltavam, bastava recolher do chão. E os sapatos, os sapatos deixados no canto do quarto exalavam um cheiro horrível depois de tantas semanas de uso.
Nesse instante preciso, percebi que havia deixado a vida passar por mim sem dar-lhe a devida atenção. E me desesperei...
2 comentários:
Este desespero que narraste, colega de curso, atormentam-me desesperadamente também, não obstante segurem contornos diferenciados do meu lado, com bem menos vinhos e coisas que bruxuleiam, mas... Gostei do que aqui li! Gostei de finalmente ter te conhecido enquanto pessoa e não enquanto um aluno com 2 cursos que eu ficava estudante através da burocracia do DAA (risos)
Gostei mesmo.
Só li este texto que ora comento, em virtude de estar apressado, mas quando voltar da rua, esboçarei minuciosamente tuas crônicas, visse?
Fiquei agora imaginando: o desespero a que o texto se refere é teu mesmo ou ficcional? Que dúvida! Mas nada que retire o brilho reflexivo.
Prazer...
PS: comentei algo sobre o que aconteceu ontem na sala aqui:
http://gomorra69.blogspot.com/2010/03/prolegomenos-da-mesa-invertida.html
WPC>
Boa tarde, espião. Os textos que aqui estão, como qualquer outro já escrito na história da humanidade, só retratam as nossas próprias experiências, mesmo aqueles que inventam, fantasiam, mentem. Este desespero que foi narrado aqui já esteve presente nesse sujeito enfermo que vos fala, mas, não é de minha autoria essa bela crônica sobre o tédio, sobre a solidão. Somos duas mentes avariadas...
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