segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Memórias volantes



Já passava de meia-noite. Era escuro. Era solitário. Breu. O farol do meu carro era o único sinal de vida naquela estrada velha e abandonada. Havia uma bifurcação e foi preciso parar para decidir qual trajeto escolher. Senti imediatamente um frio na espinha por estar ali parado no meio do nada. Uma sensação de que estava sendo vigiado, típica de quando nos sentimos expostos em um lugar desconhecido, nos braços invisíveis e sorrateiros das trevas agourentas. Não me lembro muito bem qual dos caminhos eu escolhi, mas lembro-me de ter pisado nervosamente no acelerador para longe daquela imobilidade. Foi quando me recordei de uma sensação familiar.
Certa vez, acompanhado de uma pessoa de sensibilidade semelhante à minha, que sempre estivera presente nos episódios mais sinistros, indecifráveis, belos e divinos dos quais vivenciei, fui tirar uma fotografia de um isolado bambuzal que se refugiava atrás de umas grades desgastadas em um campus universitário. A altura, grossura e a cor amarelada daqueles caules impressionaram a minha vista. Era magnífico! Sempre admirei os sons que as toras de bambu fazem quando, sopradas pelo vento, se atritam entre elas. Me fazem lembrar de um navio a velejar. As folhas sussurram timbres macios e suaves para nossos ouvidos e os caules estalam como se estivessem a se espreguiçar e falar sonolentamente como se fofocassem algo sem muito entusiasmo. É sempre bom deitar ao lado de um bambuzal quando se está a fim de cochilar ou ler um bom livro. Vocês sabiam que uma única semente de bambu é capaz de formar uma floresta de bambus em apenas trinta anos!? Além disso, uma floresta desse tipo tem em comum uma única raiz em seu solo. É como se várias gerações da mesma família estivessem reunidas em um só lugar. Uma árvore genealógica podia ser facilmente verificada com exatidão naquele lugar.

Era noite quando fomos fotografar aquela ilhota amarelada. Fomos tomados de uma sensação angustiante ao nos depararmos com aquilo. O flash da câmera não era suficiente para alcançar além daquelas grades e nós não fomos corajosos o suficiente para perpassar aquele muro enferrujado. A angústia não provinha da incapacidade de obter uma fotografia, mas da presença dos pés de bambu em si. As folhas chacoalhando pela brisa fria noturna, os caules que se envergavam vagarosamente de um lado para o outro, havia algo aterrorizante em tudo aquilo. Uma espécie de dimensão alheia à nossa, abrigando seres fantásticos em seu interior. Era como se aquilo quisesse nos tragar para seus domínios, nos integrar naquela família solitária de bambus para toda a eternidade. Possuía uma força descomunal que nos causava um grande desconforto e uma ânsia de sair daquele lugar imediatamente. Tínhamos medo de que aquele mundo se fechasse sobre nós. Pode parecer um pouco de misticismo, mas a influência que o bambuzal exerceu sobre a nossa sensibilidade foi densamente real e compartilhada. Não podemos ignorar as experiências compartilhadas com tanto descaso, elas são úteis para as descobertas superiores de nossa reles existência. Os pés de bambu utilizam jargões demasiadamente brutos para nosso intelecto de "asfalto". Quando a natureza quer um pouco de privacidade, ela nos é extremamente convincente. Não foi a primeira vez que a natureza me pregou peças, ficariam horrorizados com o mundo desconhecido que habita nas profundezas do mundo selvagem em contato com o nosso animalismo inerte, mas a estrada me remeteu a esta situação curiosa. Eu havia sido tragado para outra dimensão.

Não fiz menção nenhuma de retornar, não sei por que essa opção nunca me passou pela cabeça, mas pisei vigorosamente no acelerador. Queria que tudo aquilo acabasse o mais rápido possível. O marcador registrava 140 km/h. Não havia postes de iluminação. Não havia sinal nenhum de civilização. Apenas a estrada e um imenso horizonte cercado por vegetação e um relevo pouco acidentado. Na verdade não se via muita coisa que não estivesse há alguns metros do carro. Era como se uma densa névoa estivesse espalhada por toda a região, um manto gigantesco sempre a espreita perseguindo o veículo que cortava o chão gelado, furiosamente. Eu respirava vagarosa e silenciosamente como que evitando que alguém ou algo me escutasse e se interessasse por minha aparição naquele lugar ermo. Foi quando percebi uma fonte de luz há uns bocados de distância do meu veículo.

Por apenas um milésimo de segundo, pensei na possibilidade agradável de não estar sozinho naquela terra de ninguém. Mas, foi apenas um devaneio desesperado de alguém encurralado pelo pavor absoluto. O outro veículo se aproximava em uma velocidade muito superior à minha. Tentei em vão ir ainda mais rápido, pois de alguma forma eu não fazia questão de saber o que estava atrás de mim. Era como se de alguma forma eu quisesse evitar olhar o que não deveria ser olhado por olhos humanos. Quase não acreditei no que vi em seguida, não fosse por aquela sensação de que estava solidamente consciente de que aquilo não era um sonho, apesar de minha cabeça parecer ter se desprendido do meu corpo feito um balão, mas isso era devido ao medo inquietante, o palpitar ininterrupto do coração, a respiração que agora era difícil.

Um ônibus em chamas ultrapassava vagarosamente ao meu lado pela outra pista. Não havia motorista, mas percebi uma forma humanóide e esquelética no corredor dos assentos dos passageiros gesticulando alguns sinais, auxiliado por bandeiras rasgadas e um apito estridente. Era como se ele fosse um guarda de trânsito frenético conduzindo um tráfego não menos problemático. O que mais me chocou foi os passageiros em chamas. Havia pessoas derretidas e amalgamadas umas às outras berrando frases ininteligíveis através das janelas, mulheres grávidas exibindo seus corpos nus e inflamáveis, choros desconcertantes e lamuriosos, feições de pranto provenientes de criaturas que não deveriam habitar esse e nem qualquer outro mundo. Era um verdadeiro inferno ambulante que se atirava pela estrada. Um circo de aberrações demoníacas e horripilantes. Não parei de gritar um momento sequer, mas o grito era inaudível, mudo, mais silencioso do que um defunto totalmente decomposto, sem moscas, sem vermes, apenas os restos menos nutritivos que ficam, do tipo que só o tempo dá conta.

Um beijo intenso em uma floresta úmida. Esqueci das noções básicas de tempo e espaço, esqueci de que poderia esquecer alguma coisa, esqueci do calor, esqueci do frio, esqueci do beijo que se alastrava por tudo, concentrado em um único ponto, esqueci de que eu beijava alguém, esqueci até mesmo de quem eu era. Quando me dei conta de que não me dava conta de nada, quando atingi o vazio absoluto, a escuridão total, a luz emancipadora, recobrei a consciência e de quebra, ela trouxe consigo o medo. Medo do desconhecido, da pequenice, do desapego à carne? Medo de Deus! Esse breve insight, um espectro de uma experiência que já perdeu sua nitidez, agora não passa de um simulacro imperfeito. O que é decifrado legivelmente perde a sua essência maternal, o real é único e inapreensível. O que nos resta é uma falsificação genuína de um fenômeno que se perde no momento em que é concebido. Se perde apenas como um fenômeno isolado, mas nunca abandona inteiramente esse mundo. Esqueçamos as leituras diversas dos eventos que transcorrem nossas vidas, tudo se baseia na forma com que lidamos com a presença divina ao nosso redor no momento em que ela se apresenta. Apenas disserto sobre um beijo intenso em uma floresta úmida, uma estrada de terra molhada. Doces memórias de empatia com o cosmos.

Havia encontrado um pequeno animalzinho peculiar em um bambuzal certa vez. Eu estava sozinho, levei-o para casa. Ele era amistoso, gracioso, não havia algo tão exótico quanto aquilo em lugar nenhum. Um dia quando voltei da rua e fui visitá-lo no quintal de minha casa, tive a surpresa de me deparar com um monstro horrível do tamanho de um urso enorme, sentado e mirando as estrelas. Senti medo, muito medo...

Eis que me vejo no meio de uma plantação homogênea de eucaliptos. É tudo tão ensurdecedoramente silencioso que chega a incomodar os meus ouvidos. Não há sinal nenhum de vida, nem mesmo naquelas altas árvores magérrimas e bulímicas. Posso sentir cheiro de morte, não o cheiro físico de putrefação, mas algo pior, que está em contato íntimo com a minha própria alma. Quase posso sentir uma mão acariciando o meu crânio insensivelmente. Aqueles longos corredores inférteis faziam meus olhos cambalearem de náuseas conquanto não vissem nada além de árvores enfiadas naquela terra suja de folhas perfumadas. Podia perceber uma comunicação mesquinha que serpenteava das próprias árvores, do alto de suas copas quase carecas se comparadas a outras plantas mais saudáveis. Eu não era bem vindo.

Recobrei a consciência e nem me dei conta do ônibus que havia debandado alguns poucos segundos atrás. Meus nervos estavam aos frangalhos, quase não conseguia mais dirigir. Era quase automático o fato de eu continuar seguindo em frente, mal sentia os músculos do meu corpo. Precisava acreditar que estava delirando ou havia enlouquecido, mas era incontestável de que não fora um pesadelo ou algo do tipo. Tudo era tão concreto, maciço, diferia em muito da realidade etérea do mundo onírico. Nunca havia me sentido tão vivo em toda a minha vida e por isso comecei a me questionar se eu não havia enfim morrido. Interessante a proximidade de duas coisas tão antagônicas, a vida e a morte.

Entrei por uma cidade desabitada e aparentemente antiga. Passei por uma praça destroçada enquanto pegava a avenida principal. Havia mesinhas para jogar xadrez, onde outrora deveria haver senhores a jogar religiosamente toda tarde enquanto repetiam milhares de vezes suas histórias para quem tivesse a paciência de ouví-los. Parquinhos infantis cobertos de poeira e já bastante desgastados com o abandono. De repente algo passou a me intrigar horripilantemente. Apesar de não ver o menor sinal de alguém por aquelas casas antigas e ruas desamparadas, tive a impressão de que crianças brincavam por ali sorridentes. Pude ouvir suas vozes e gargalhadas aviltarem janela adentro, alfinetarem cada poro de minha alma exausta. O corpo não mais respondia. Entrei em estado catatônico. O carro capotou e foi parar bem diante de um cemitério.

Silêncio. Não fosse pelos pneus girando de cabeça para baixo. Eu estava de ponta-cabeça no banco do motorista. Sobrevivi graças ao cinto de segurança, mas isso me rendeu um grave hematoma na região do tronco e por pouco não esfacelou o meu pescoço. Desvencilhei-me do cinto e caí no teto interior do carro. O farol ameaçava se apagar e dava umas piscadelas de vez em quando. No momento em que isso acontecia, tinha a impressão de que coisas se esgueiravam pelas sombras em direção do acidente. Eu torcia para que isso não se repetisse, mas conforme a bateria ia cedendo, acontecia com mais freqüência. Criaturas assustadoras se pronunciavam pelas janelas espatifadas e muitas nem possuíam olhos em suas órbitas. Quando ficava claro eu só podia ouvir seus grunhidos, suas vozes, uma multidão de transeuntes curiosos de um mundo soterrado pela escuridão e renegado pela própria luz. Apagou mais uma vez. Me deparei de frente com uma criança cinzenta de dentes afiados e uma língua esquisita que apresentava uma segunda boca em sua ponta, segurando talheres em ambas as mãos. A luz voltou e tive o alívio de não sentir aquele bafo podre de carne morta e chorume. Não teria tanta sorte da próxima vez.

I.B.

Desenhos de Mark Ryden

2 comentários:

ra.quel passos disse...

Sempre tem um chorume que entrelaça o odor das emoções que percorrem as veias estéreas de seus personagens. Bom demais!

nog disse...

muito bom,cara!