sábado, 10 de julho de 2010

Confissões de um casual desconforto de polidez


"Nenhum santo sustenta-se só"
Mindwalk

Eu estava passando por aquela avenida lustrosa no bairro mais aristocrático da cidade. Havia bares chiques nas calçadas de ambos os lados. Pessoas engoliam, literalmente, taças de vinho que eram servidas a cada cinco minutos de mesa em mesa, enquanto esparramavam notas recém saídas do "forno" pelas mesas de madeira maciça. Os garçons estavam vestidos de coelhinhos da páscoa, mas não creio que fosse mês de Abril. A avenida estava infestada de carros possantes e limousines, e como de praxe, atravessei despreocupadamente aquela senda tipicamente urbana revestida por uma densa película de dióxido de carbono que embaçou a minha visão, por pouco não tropeço em um pai que mastigava a sua filha ali mesmo sobre o asfalto. Olhei brevemente com certo desconforto, mas rapidamente recolhi as condolências de minhas feições e sem saber o que dizer eu me retirei com um desajeitado "boa-noite".

Sentei no primeiro banco de praça que encontrei para descansar as minhas pernas exaustas. Eu deveria ter pego um ônibus para poupar-me de todo esse suor que empapava as minhas roupas. Já subia aquele cheiro forte de poros sujos e encharcados. Foi então que um cão que estava zanzando pela praça, a procura de algo mais interessante do que ele mesmo para o seu estômago ou suas necessidades mais imediatas, se aproximou levantando uma de suas patas dianteiras em minha direção e para a minha surpresa, despejou algumas gotas de um líquido amarelado em minhas calças surradas. Não preciso dizer que espanquei o animal até o próprio beirar à morte. Enquanto eu refletia sobre o fato do cachorro urinar em mim, uma criança que por ali passava...

Desculpem a minha falta de polidez!, estava tão entretido em minha prosa que esqueci a quem eu estou dirigindo esses relatos. Vocês devem estar espantados, aterrorizados, mas deixarei claro de que o que estou lhes relatando faz parte do meu cotidiano banalíssimo. Por exemplo, algo que deve incomodar-lhes (claro que isso é muito abstrato), a fantasia dos garçons. Semana passada eles estavam trajados à la prostitutas coreanas de terceira. Não me impressionar com tais situações nefastas não me faz um indivíduo pior do que vocês, aliás, sou um sujeito de bom caráter, de acordo com as convenções da sociedade.

A razão para o meu desencanto diante dessa realidade assombrosa está mesmo na lógica da minha própria constituição, a matéria que me foi oriunda. Sou talvez o único ser que tem a consciência da própria procedência estrutural, não histórica (destituído de passado se não esse que vos relato no presente momento). Um santo solitário. O que se sucederá não cabe inteiramente à mim, mas às vicissitudes de cartolas alheias à minha gestação e meu ventre psicodélico. Sou um misto de caracteres, eletricidade, dispêndio ocioso, o que quer que seja... Mas, tenho cheiro, tenho carne, sou tão humano quanto o pai que acabara de defecar a sua própria filha em um processo digestivo ultra-rápido em meio a um congestionamento em ebulição. Absurdo é ser, meus caros. Não quero me portar como um "Senhor M" ou algo do tipo, mas todo o resto é puro ilusionismo barato.

I.B.

6 comentários:

Reuel Machado disse...

Me lembrou muito a avenida hermes fontes ou as grandes avenidas chiques de aracaju, com cenas e imagens tão marcantes de tão efêmeras. Talvez pra quem projete muito sentido aquele cenario padronizado seja feliz estar naqueles restaurantes, cheio de animais tão fedidos quanto o povo do ônibus. No mais a impreção sem forçar uma lógica precisa de uma abstração do cotidiano, o texto transmita esse ar urbano cotidiano.

ra.quel passos disse...

Essa avenida é ali na beira mar - seja aqui ou em qualquer lugar. É bem capaz de ter bar até infiltrado no mangue para não dar margem à erro suscetível aos bares já instalados nas mediações.

Acredito que você tenha percebido (ou não) de que houve um desfalque no decorrer da estória narrada, principalmente no final. Senti falta de algum acontecimento para tornar o título mais contundente ao fato relatado.

Como sempre, Igor Bacelar fazendo com que os seres humanos encontrem a interpretação sobre o que é ser em relação àquilo que realmente são e para que a busca de se assemelhar a tal seja alcançada - bichos enjaulados sob a tutela de um cardápio sem início e tampouco com um fim rabiscado. Coelhos fardados representam o mínimo do que se referem à si mesmo no momento em que os próprios se deparam em um lugar desacomodado e sujo; seja ele figurado no estandarte que for.

**Ler seus textos bêbada é a melhor coisa desse mundinho podre. Não sei se já disse. Proporciona uma reflexão mais aprofundada, com menos margem de erro, hehehehe

**Bom ver esse canto se movimentar novamente.

O ritmo é um dom casual também. Ou não?

Two Wrecked Minds Full of Thoughts disse...

Desencanto ou indiferença? Realmente, como um um ser divino, o narrador parece pairar acima do mundano, o único capaz de ver através do espelho. Pretender admitir-se humano pareceu mais uma desculpa pra prepotência desse santo do que a consciência da sua humanidade... Somente por esses motivos alguém que seja verdadeiramente humano seria capaz de ser tão indiferente (ou "desencantado") ao mundo ao seu redor. Não seria o desencanto mero eufemismo para indiferença? "Simplesmente desisto desse mundo, que se foda!"

ra.quel passos disse...

Não sei se seria o caso de sumarizar tanto esse duelo conceitual e estrutural Indiferença é uma doença, irreversível, progressivamente sem cura. Já desencanto é um resfriado com previsão de diagnóstico mais veloz que talvez possa se imaginar.

*O complemento deu, mesmo, a compreensão completa do que você quis questionar.
"Sou um misto de caracteres, eletricidade, dispêndio ocioso, o que quer que seja... Mas, tenho cheiro, tenho carne, sou tão humano quanto.." - Muito bom!

ra.quel passos disse...

Essa que soltei agora - "complemento deudeu, mesmo, a compreensão completa" - foi bem a minha cara: redonda.

Pedro Ivo disse...

mais uma vez me vejo em nova gothan city em teus contos...
é tão claro quanto posso acreditar que é por ai que vamos...

quanto ao despreso e ou a indiferença, acho meio que invalido ( sendo redundante ) pra mim, eu faço parte disso, vou ser isso e vou viver isso, meio que dificil fugir disso, mas é facil viver "frustado" nisso, e ja me contradizendo, eu sou frustrado...