domingo, 11 de julho de 2010

Clara


“Às vezes procuro entender esse laboratório de almas que é o mundo”, foi assim que começou a manhã daquela jovem de cabelos desgrenhados e passos desajeitados. Estava sentada a espera do ônibus, que estava atrasado há alguns longos minutos, e se pegou distraidamente a olhar para os veículos que por ali passavam com interessada minúcia, mais precisamente para os condutores apressados dentro de seus carros. Só desviava a sua atenção quando o observado fazia menção de retribuir-lhe o olhar impulsivamente, sem saber que estava sendo observado. O que em outra ocasião poderia levá-la a conjecturar sobre as particularidades de cada indivíduo, nesse dia em particular, Clara (esse era o seu nome) mirava tudo ao seu redor com um asco recorrente, antigo. Era como se todas as coisas e pessoas não passassem de uma massa disforme, um omelete onde não se diferencia a gema da clara.

O coletivo serpenteava sofregamente por aquelas mesmas avenidas ensandecidas e vielas apertadas do centro da cidade amiúde. Não havia assentos suficientes para todos e aquilo tudo se assemelhava a um gigantesco varal humano. Os cheiros e odores, exóticos ao olfato de Clara, se atiravam desavisadamente em sua direção. Tinha a impressão quase palpável de que estava nua e espremida contra aqueles corpos estranhos. Se houvesse em algum lugar um suco de laranja a ser preparado em qualquer lanchonete ou pocilga daquele éden infernal, a pobrezinha estaria se sentindo exatamente como Clara, que estava à beira de um colapso generalizado.

A jovem recostou-se em um telefone público próximo a um edifício assombrosamente alto. Esse edifício tinha a insistente mania de alfinetar o céu e nas noites tipicamente urbanas, escarrava nas estrelas invisíveis. Clara já não sabia o que fazia ali. Era como se as suas pernas fossem indiferentes às suas sugestões motoras e agissem por conta própria, na lógica da memória frequencial a qual os computadores funcionam. Afastou-se preguiçosamente do seu encosto para dar lugar a um senhor irascível que queria usar o telefone. A sua falta de cortesia incomodou Clara profundamente. Ela se imaginou pisoteando a cabeça do velho rabugento com um par de saltos-altos, mas exibiu meramente um franzir de testa e um aceno de desculpas. O que lhe rendeu, segundos depois, devido ao seu deslocamento desatencioso, uma trombada com uma “madame” toda empertigada. A senhora que estava estatelada no chão, trajava vestidos caros de cores berrantes e possuía uma miríade de jóias. Estava maquiada exageradamente para disfarçar eventuais rugas e espinhas e tinha em seus braços finos uma série de sacolas com produtos de estética e outras mercadorias de artigos de moda.

Esse episódio fez com que a jovem se abstraísse da realidade a sua volta e em um processo reflexivo, remetesse aos tempos do Antigo Egito e às relações de consumo a qual estava habituada a interagir desde a infância, sem ter noção do que estava por trás de coisas aparentemente ingênuas.

O sistema vigente está tão consolidado, pois está fundado em um princípio infalível: uso e desuso das paixões e vícios do gênero humano. Agora, para Clara, tudo parecia ser evidente e óbvio. A vaidade é conhecida como o pecado capital mais grave e esse conceito já têm milhares de anos, mais antigo do que os escritos bíblicos. O capitalismo pegou uma carona com o narcisismo, artificialmente institucionalizado através de um caráter natural do homem. A vaidade famigerada em histórias como Alexandre, O Grande e até mesmo Cleópatra, não passam de exemplos antigos de um vício reiterante e inalienável de qualquer ser que tem consciência plena de si mesmo. O consumismo metamorfoseou nosso vício em doença crônica e pandêmica. O capitalismo é moldado a imagem e semelhança do homem.

Quando Clara recobrou a consciência de suas introspecções, olhou para baixo e sentiu nojo de si mesma ao se ver caída naquele chão imundo enfeitada com vestidos, colares e pulseiras.

Refugiou-se em um parque bastante arborizado, ainda no centro da cidade, e descansou sob uma castanheira bastante velha e frondosa. Tentava ao menos aí, encontrar um espaço de silêncio interior para recobrar a plenitude de seus sentidos. Estava bastante abalada psicologicamente e sentia calafrios e tremores. Era como se a sua cabeça estivesse nas nuvens e fosse difícil para seu corpo fazer uma ligação sensorial com a sua mente. Uma sensação nauseante de alienação, alheamento, um desconforto tamanho que a impossibilitava de ter um pensamento sequer com a mínima clareza necessária. Ainda havia pessoas que transitavam freneticamente pelo parque, aparentemente sempre preocupados com alguma coisa. Pisavam estrondosos no chão, como elefantes, mas pertinazes como formigas.

Aos poucos e progressivamente, uma serenidade começou a tomar conta dos seus pensamentos, uma melodia se acomodava gradativamente em um recôndito seguro de sua mente exausta. Era familiar, lamuriosa, de um cantor sofrido que ela costumava escutar em casa nos dias nublados e chuvosos. Seus olhos marejados pela lembrança que a rendera repentinamente, vieram acompanhados de um ricto que se alastrava por sua face. As lágrimas silenciosas deram lugar a uma enxurrada e um soluçar muito penosos de se ver, ainda mais naquele rosto outrora tão tranqüilo. Havia uma sensibilidade digna do maior dos poetas e literatos sob aquela árvore sábia, que já vira muitos dramas genuinamente humanos. Um conjunto de palmas e ovações oriundos de uma escola que havia ali por perto cortou o silêncio que só não era absoluto por causa de ocasionais choramingos de sinceridade invejável. Clara voltara à realidade mais uma vez simplesmente para regressar às suas introspecções. Dessa vez o palco era uma suposta manifestação celebrante em uma escola.

Interessou-se pela forma com que as vozes humanas em conjunto se amalgamam e dão a luz a um coral uniformizado. Não só a nível de organização estrutural o gênero humano se homogeneíza, mas também na esfera biológica. Percebe-se que nesse tipo de manifestação da voz, a ovação, quando se tem um número semelhante de homens e mulheres, a voz feminina, mais estridente, se destaca. É como se o espírito feminino entrasse em conflito pacificamente com a dominação supressiva do macho. É a oportunidade que a mulher tem de berrar alto sem rechaçamento, uma auto-afirmação de nível exclusivamente biológico. O timbre da voz humana é particular a cada indivíduo e somente a ele. Mas, a melodia a qual acariciava a confusão de Clara, não passaria de uma estrutura indefesa e sem forma unitária quando colocada em meio à multidão (berros depois de um discurso político, gritos de celebração em um festival de música). Caso contrário, ela não pertence a você. Não dentro dessa lógica.

Atirou-se porta adentro e jogou-se no sofá. Sentia um desconforto no estômago, não sabia dizer se era mais provocado pela fome do que pelo mal estar. Uma lembrança tomou lugar ao seu alívio por ter chegado, enfim, ao lar doce lar. Uma lembrança de algumas cartas que Clara costumava escrever e endereçar a si mesma há alguns anos atrás, quando as jogou indevidamente na lixeira. O conteúdo era essencialmente de desabafo. Era melhor tê-las queimado, agora estão em algum lugar soterradas em um pútrido e miserável amontoado de lixo, desamparadas, perdidas. “Eu virei lixo”, murmurou dirigindo-se à janela do apartamento pela última vez naquele dia. Tudo o que via era uma omelete estragada revestindo todas as coisas que fora dali se encontravam. Sussurrou para si mesma uma espécie de antítese relativa à sua estréia introspectiva de pé esquerdo naquele dia em particular, “não, não. Nós somos o laboratório. O mundo é quem é o cientista maluco”. Foi até a cozinha e impetuosamente abriu o faqueiro.

Ilustração de Charles Allan Gilbert, "Tudo é vaidade"

I.B.


4 comentários:

Pseudokane3 disse...

Tenho medo do faqueiro daqui de casa por motivos similares...

E "amiúde" no meio de um texto como este sempre me encanta...

Belíssimo, aliás!

Talvez o melhor já postado por aqui... Os 3 meses fizeram-te bem!

WPC>

ra.quel passos disse...

Ei, muito bom!
Clara me raptou para sua introspecção.
Agora, que moçinha complicada! Rerere.. Como é que depois de (ela!) ceder espaço para o velhinho irritante usar o orelhão, ela acha ruim? O cabra tinha mesmo sua ira incontrolável (posso até imaginar). Agora, ela deve ter se incomodado com a sua capacidade própria de não conseguir controlar até mesmo a preguiça – aí se imagina pisoteando a cabeça grisalha com um par de saltos-altos??? E depois ainda questiona a mulher dondoca que ela acabou se estatelando no chão?
Tudo bem que é consenso sobre a nossa dualidade. Nós, mulheres, somos complicadas mesmo. Mas Clara é claramente desconsertada*. Coitada. É preguiçosa, mas teria um par de saltos-altos em posse para pisotear o velhinho. Só por ser rabugento? E depois ela pede desculpas por sua introspecção. Ela é pior que eu! Rerere.

“Esse episódio fez com que a jovem se abstraísse da realidade a sua volta e em um processo reflexivo, remetesse aos tempos do Antigo Egito e às relações de consumo a qual estava habituada a interagir desde a infância, sem ter noção do que estava por trás de coisas aparentemente ingênuas” - e ainda tem gente que não acredita na imortalidade da alma; e tampouco acredita existir uma força inteligente e mentora que orienta os espíritos.
Muito bom!
”O consumismo metamorfoseou nosso vício em doença crônica e pandêmica. O capitalismo é moldado a imagem e semelhança do homem”.
“Seus olhos marejados pela lembrança que a rendera repentinamente, vieram acompanhados de um ricto que se alastrava por sua face”.
*“Tudo o que via era uma omelete estragada revestindo todas as coisas que fora dali se encontravam” e finaliza com o faqueiro. Aliás, ela no faqueiro?
A propósito, também gostei um bucado da expressão 'varal humano'.

O que não achei legal foi a teoria machista encubada em “É a oportunidade que a mulher tem de berrar alto sem rechaçamento, uma auto-afirmação de nível exclusivamente biológico”. Reforço que esse tom poderia ser evitado, uma vez que a mulher por si só não precisa participar de uma manifestação para demonstrar sua posição diante da sociedade, muito menos dela própria. Achei até que eu iria impactar menos quando narrou-se que essa “auto-afirmação” seria por motivos biológicos, mas nem assim. Até por se tratar de Clara (ser tão intenso) esse contexto não a valorizou devidamente. Regrediu.

Two Wrecked Minds Full of Thoughts disse...

Não é o discurso que é machista, mas o contexto, a lógica masculina reinante.

Two Wrecked Minds Full of Thoughts disse...

":"