domingo, 25 de julho de 2010

O artista


Sentado à beira de uma piracicaba, uma paisagem pitoresca de clima úmido devido ás quedas d'água e à proximidade com o litoral, o artista estava a vivenciar nebulosas orgias enquanto masturbava-se concentradamente silencioso. O impacto das cachoeiras distraía seus ouvidos do restante do mundo. Esse lugar tem um curioso magnetismo sobrepujante que faz com que todos se calem, conseqüentemente acumulando uma quantidade considerável de verdades e inverdades na alma dos mais sensíveis. Se o sonho é um fato abstrato na concretividade do espírito, esse lugar seria o seu perfeito antagonismo.

O esperma foi despejado no riacho e cuidadosamente perseguido pelos olhos daquela criatura, até que se desfez em um acidente no seu percurso. Sua vitalidade escorreu pelo próprio sêmen do que ele concebe como a criação, o fluido fluxo que desemboca em um infinito universo dentro de uma partícula finita no meio do breu cósmico. Lambeu em seus dedos aquele esperma denso, muito viscoso, e sentiu o gosto salobro percorrer as suas papilas gustativas e grudar em seus dentes amarelados. Uma tentativa vã de germiná-los em sua boca estéril. Seus milhares de descendentes continuam perdidos e solitários, deterioram-se em um simples e breve contato com o mundo. Doce mundo!

Prostrou-se horas a fio na varanda, entediado, ausente, encharcado em suor. O sol estava especialmente quente nessa manhã. Castigava as pobres plantas que se esforçavam para manter a sua temperatura em níveis vitais sobre aquela areia escaldante. O vento, não se percebia sinal sequer dele. Ocasionalmente uma brisa visitava aquela região e aqueles poucos segundos se transformavam em uma coerente razão para viver. Hoje, o litoral decidiu guardar o ar de seus pulmões para eventuais tormentas, como se prenunciasse um evento que exigiria de si um esforço muito grande para se sustentar.

O vilarejo mais próximo era há apenas dez contos de réis do sítio. Quando eu insinuo que a distância se mede em dez contos de réis, só quero chamar a atenção de que a afirmação “tempo é dinheiro” não é uma exclusividade cronológica, mas também espacial. Apesar da proximidade com a civilização, há anos o artista não deixava o seu retiro. Algo inacabado ou até mesmo nunca iniciado o mantinha ali como refém por tempo indeterminado. A grande obra era tema recorrente de seus dias, mas talvez não tivesse achado o dialeto correto para exprimi-la. Com rara freqüência, um amigo ou outro aparecia para visitá-lo e discutir sobre assuntos triviais. Outros artistas vinham lhe consultar, pois ele era conhecedor de técnicas extraordinárias no mundo da arte, principalmente no que se é relativo à pintura. E por mais satisfeitos que os outros artistas fossem embora, o artista não sentia credibilidade em nenhuma das coisas que era forçado a dizer-lhes.

Pegou uma moldura que estava jogada em um amontoado de tralhas, as tintas e os pincéis que estavam sobre um criado mudo e começou a pintar usando o seu suor para misturar as cores. A obra de arte deve ter certos compromissos. Mesmo que o artista não esteja preocupado com essas quinquilharias, uma grande obra surge da sua capacidade de refletir a realidade. Partindo dessa perspectiva, o artista deslizou seu pincel sobre a moldura, guiado por suas mãos suaves como se tocassem uma criança recém-nascida com bastante esmero. Não levou muito tempo e a pintura estava pronta. Um paraíso tropical totalmente congelado em um fim de tarde. Nas dunas, onde havia areia deu lugar à neve, a copa dos coqueiros e algumas anacardiáceas estavam igualmente encobertas, e uma forte tempestade gélida castigava aquela paisagem que outrora gozava de dias quentes e chuvosos. Um completo absurdo climatológico.

Passou o resto da manhã admirando o calor contrastante em relação ao que havia pincelado alguns minutos atrás. Vislumbrava tudo com uma curiosidade e surpresa invejáveis, típico de crianças muito novas e buliçosas. Ao contrário das crianças, ele se mantinha estático e paciente, optou por ter uma experiência sensitiva meramente imagética.

Era quase fim de tarde e o artista entrou apressadamente para dentro do casebre e fechou todas as janelas. Abriu o seu velho e desarrumado guarda-roupa e vestiu roupas densas e quentes. Cobriu-se com um longo sobretudo e calçou suas meias e luvas grossas, e suas surradas botas de couro. Estava muito abafado dentro de toda aquela roupa, que não tinha nenhuma validade naquele lugar. Suava ainda mais do que antes. Foi até a porta da frente todo agasalhado e consultando o antigo relógio de mogno, que estava dependurado na parede, abriu finalmente a maçaneta.

Era frio como nunca havia sido naquele lugar e talvez em qualquer outro que existisse. Nevava intensamente. Alguns animais tentavam em vão se abrigar em qualquer buraco que encontrassem. O artista andou vagarosamente pela neve densa em direção à piracicaba onde costumava pescar e passar o tempo meditando. Ao chegar lá, viu o seu templo imobilizado pelo gelo. As corredeiras estavam imóveis e mudas. Erguendo a sua cabeça para cima, o artista pôs-se a gritar ferozmente como nunca o havia feito. Pela primeira vez, o seu berro desafinado se fez ouvir ali naqueles rochedos. Como que satisfeito, o artista se dirigiu com ligeireza de volta ao casebre.

A lua estava foragida em algum lugar, ocultada pelas nuvens e pela tempestade voraz, mas era perceptível a aproximação da manhã, mesmo que em termos de temperatura não houvesse acontecido nenhum tipo de mudança sensível.

Ao chegar à sua casa, incólume no meio daquele temporal, revirou suas coisas com nítida agonia e impaciência como se estivesse perturbado com alguma coisa. Pegou uma tela e pôs-se a pintar com pressa para não perder alguma inspiração fulgurante que estava a germinar de sua psique. Masturbava-se em intervalos de pinceladas e derramava o seu esperma sobre o piso sem nenhuma cerimônia ou atenção. Mal percebia as baratas que se congregavam ao redor de seu gozo como em um banquete suculento arremessado aos miseráveis. Uma fome incalculável para um suprimento inevitavelmente indigesto. Eis que despencou ao chão com as pernas estremecendo e contemplou a sua obra com um largo sorriso. Olhou para o relógio. Quatro da manhã. Correu com bastante avidez ao seu guarda-roupa para colher o seu melhor terno e deixou para trás a sua mais recente pintura: um revólver disposto em um criado mudo perto de uma janela onde havia um bem-te-vi a cantar alegremente.

I.B.

Desenhos de Mark Ryden

Um comentário:

ra.quel passos disse...

Tão real que minhas expressões oscilavam enquanto me envolvia com o enredo pragmático.

"o sonho é um fato abstrato na concretividade do espírito, esse lugar seria o seu perfeito antagonismo".

Ao tempo em que a história é tenra, pela sensibilidade natural e peculiar ao artista, é cruel pelo desfecho que se dá diante dessa perspectiva. Envolvente como o que é real, e fedido como a realidade.