sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Cama de gato


Era como se não houvesse chão nenhum sob meu corpo adormecido. Sentía-me como se houvesse um piso fluido ou nem mesmo nada ali, como se flutuasse sobre algo quase intangível, sobre um céu vazio pincelado de nuvens por quase toda a sua extensão. Eu só sentia frio, um frio que era abastecido pelo vento que batia em minha face rispidamente. O vento gritava em meus ouvidos forçando-me a abrir os meus olhos para encarar a causa da sua própria lamúria.

O que veio em seguida foi uma sensação nauseante acompanhada de uma vertigem desesperadora que só não devorara minhas entranhas por fazer parte das coisas de qualidade abstrata, mas, foi uma questão de tempo até que meu eu completo reagisse àquilo. Com certeza o que não fazia parte dessa categoria de coisas (abstratas), imediatamente entrou em estado de torpor, forçando o meu corpo à desmaterializar-se por completo. O espanto que eu levei se alastrou para o corpo, ou fora o contrário? Talvez o corpo e a mente tenham reagido concomitantemente, sem intervalos perceptíveis.

Eu estava sobre a minha cama, coberto por um grosso edredão, no meio da noite, há alguns milhares de pés do chão talvez, há alguns milhares de pés do que convencionamos de realidade.

A cama se locomovia horizontalmente como uma espécie de planador bem veloz. Era como se a verdadeira função dela fosse na verdade voar e não servir de leito para os "sonhadores". Demorou um pouco até que eu me acostumasse com o fato de estar sendo transportado para não sei onde, em cima da cama que eu durmo desde criança. Com o tempo passei a oferecer-lhe a mesma confiança que eu lhe concedi todos esses anos... meu recanto, minha cama, meu conforto, onde eu repouso não somente o corpo, mas a minha alma.

A lua estava cheia e no momento que uma enorme nuvem a cobriu e a escuridão se apossou de toda a vastidão do céu, como se não bastasse o baque inicial que me custara a conseguir ficar tranquilo com a idéia de estar planando em cima de uma cama voadora, nós começamos a cair, trazendo à tona toda aquela sensação aterrorizante. Não posso dizer que lembro exatamente de como foi que aconteceu, mas eu já estava no chão, era escuro demais para distinguir onde eu estava. Estava sobre uma espécie de pilha de ursos de pelúcia (foi o que imaginei no momento), repleta do zunido de centenas de moscas, e cheirava à sangue. Comecei a ouvir alguns gemidos meio nasalados que pareciam com algo homônimo à miados e vozes de pessoas. Pude ouvir algumas tosses muito fortes regurgitando algo de odor horrível. A nuvem fora soprada da frente da lua como uma cortina revelando a sua atração principal, ela se mostrou ainda mais luminosa do que antes e revelou o que seria aquele lugar.

Estava sobre uma montanha semelhante aos depósitos de lixo das cidades. Ao invés de lixo, haviam enormes bolas de pêlo e corpos de gatos sem cabeça. Estremeci quando fitei as criaturas que estavam emitindo aqueles sons. Eram gatos com cabeça de chineses! Aqueles olhinhos puxados, aqueles pescoços costurados nos troncos dos gatos, e eles cantavam para a lua, me ignoravam naquela pilha morta de cadáveres decapitados. Enquanto uns prosseguiam com aquele cântico macabro, outros se punham a vomitar o que eu imaginei serem bolas de pêlo, na verdade o que eles expulsavam de seus estômagos era uma espécie de animal peludo e viscoso que se contorcia espasmodicamente produzindo sons agudos que assemelhavam-se a risadas.

Corri imediatamente aonde estava a minha cama e tentei em vão fazê-la levitar. Passei horas e horas tentando convencê-la a tirar-me dali, mas em vão. Provavelmente a insanidade estava a se apossar de mim, é indiscutivelmente impossível dialogar com uma cama. Me deitei na pilha de gatos decapitados e mirei as estrelas no céu, já não me incomodava mais com as milhares de moscas que compunham aquele túmulo gigante. Elas estavam por toda a parte, insistentemente tentando entrar pelos meus ouvidos, nariz, boca, era muito difícil respirar. As estrelas pareciam tão vistosas naquela noite...

Passeei por entre aqueles montes de corpos como um destemido viajante, sentindo-me um verdadeiro desbravador. Mas, não havia nada além daquelas aberrações por todo o horizonte. O hino para a lua parecia crescer conforme a noite se aproximava da madrugada, mergulhando cada vez mais no breu, como se fosse o último beijo, o mais intenso, que precede aos raios de sol que fulminarão com toda aquela cantiga noturna. Afinal, dizem as más e boas línguas que a noite é mais escura antes do amanhecer. Olhei para uma poça de sangue sob minhas pequenas patas e vi a face de um menino chinês sendo refletida. Imediatamente comecei a retrucar alguma melodia.

I.B.

4 comentários:

Unknown disse...

uma história pra contar pro seu filho =) hehe
sinistra e muito boa!

Raquel Passos disse...

meio nojento o que os gatos com cabeça de chineses vomitaram!

obs.: estabelecer diálogo com cama eu não sei, mas com pia é gratificante.

Anônimo disse...

já tive sonhos assim...

Tutu Marambá disse...
Este comentário foi removido pelo autor.