"Algumas horas depois de ter subido até o topo da montanha, não pude me segurar por muito tempo... Os braços me falharam e eu despenquei do topo do céu ao cerne da terra, rumo ao abismo". (...)
O jovem rapaz olhava concentradamente para os convivas. Todos estavam em um estado de euforia, desligados momentaneamente dos tubos que constituem a máquina social. Ele mantinha o seu olhar fixo no baile que se arrastava por toda aquela terra úmida da chuva que acabara de passar. As narinas estavam entretidas com aquele cheiro de terra molhada, misturado com o suor, com o vinho. Parecia estar a troçar de seus convidados, mas não era zombaria, era como se ele houvesse planejado algo que iria surpreender as pessoas de alguma forma. Sua introspecção não afetava em nada os dançarinos contagiados pela música dos pés na terra, dos corpos em contato muito íntimo, das goladas do mais saboroso manjar etílico, das tragadas nos melancólicos cigarros. Não havia música enfim, haviam vibrações abstratas, coletivas, havia relação humana bruta.
"My soul needs a cigarrette".
Pude perceber um melancólico pano de fundo por trás de tudo isso. Por que estaria o próprio anfitrião afastado da celebração? E o que estaria ele a celebrar? Ninguém teve a menor curiosidade de conhecer essas razões, apenas uma linda garota desajeitada de olhar singelo. A ela, preocupava o fato daquela tão querida criatura estar tão distante espiritualmente das outras pessoas. Pois, fisicamente estava ali sim, fitando cada expressão de cada rosto, de cada corpo, como se estivesse a fotografar, a registrar algo muito importante. Olhos examinadores, semelhantes aos de um estudioso em campo.
O sol estava prestes a se pôr, coloriu aquele lugar de um laranja peculiar, que refletia suavemente nas águas do rio, que passava nas proximidades. A garota foi até o jovem que sem perceber, legava ao vento o seu cigarro, que era tragado obstinadamente. Simplesmente sentou-se ao seu lado e ele lhe retribuiu com um sorriso tímido, acanhado. Levantou-se inesperadamente e segurando as suas delicadas mãos juntaram-se às outras pessoas. O jovem pôs-se a dançar. Algo meio peculiar, bizarro até, uma dança enérgica, de pulos e giros agressivos (como um tufão), que logo chamou a atenção de todos os outros. Imediatamente uma forte chuva atirou-se violentamente contra a terra. Como se aquilo fosse uma dança tribal, uma dança que rogava pela chuva. Ventos fortes empurravam avidamente as folhas dos coqueiros, cajueiros, das mangueiras, das alamandas, dos sombreiros. Os coqueiros se envergavam de tamanha a força que era empregada pela ventania, vinda da direção do mar. O impetuoso punho que a natureza emitia apenas reforçava toda aquela celebração. A relação ancestral homem-meio fora resgatada ferozmente, e havia uma sensualidade inelutável que se alastrava naquele momento singular.
Encarou por minutos a fio aquela garrafa que estava pela metade e despejou todo o seu conteúdo em sua boca, chegou a derramar por sua face e seu peito nu. Sabor de vinho seco molhando sua garganta, odor de vinho seco acariciando seus pulmões, e saiu. Momentos depois, apenas a garota sentiu a sua ausência e após um lapso auspicioso que a incomodava incitantemente, se retirou imediatamente do "olho do furacão" à procura do célebre celebrante. Saiu tão imperceptivelmente quanto o jovem rapaz.
Não durou muito até que o encontrou sentado ao lado de um buraco que se assemelhava a uma cova, cabisbaixo. Ele ergueu os olhos e pareceu surpreendido com o que viu.
-Não esperava que fosse você quem viria até aqui. Promessas...
-O que pretende fazer? - Ela se perguntava como que esperando uma resposta pré-concebida em suas próprias elucubrações - Por quê?
-Falta de perspectiva, curiosidade talvez. Compreendo que o céu é só uma promessa. Lembre-se que não existem coisas nobres, tais como a promessa no plano dos mortais. Se existe algo além desse plano, ignoro as possibilidades. Mas, gastamos tanto tempo existindo... Por que não inexistir? Não tem a curiosidade de simplesmente deixar de ser? Desde menino meu problema sempre foi essa tendência de averiguar as coisas, todas elas. Sempre mais perguntas do que respostas. Se fosse o contrário seria assaz insuficiente, não é mesmo? Decidi deixar de ser, com uma pergunta acompanhada de uma resposta. Por que não podemos dormir para sempre?
-Não vá - ela implorava soluçando, as lágrimas escorrendo de seus olhos encantadores, seu corpo a tremeluzir como uma estrela fraquejando aos poucos.
-Espero que me perdoe pelo que está destinada a fazer nesse momento. Realmente não esperava que fosse você a estar aqui em meu leito, mas você já demonstrava durante a festa, que seria a pessoa a carregar esse fardo. Eu tentei afastá-la das minhas meditações, eu tentei... Mas, existe uma parte sensível de nós mesmos que nos conecta de uma forma que não podemos compreender. Somos algo análogo aos recifes e corais, vários organismos que compõem um só. Mas, estamos irremediavelmente distantes, minha cara estrela.
-Isso que você vai fazer é errado. Há muito mais a ser vivido, a ser compreendido. Pare com isso! Não acredito que isso esteja acontecendo. Tem algo errado aqui- e olhando para o céu pôs-se a gritar - Faça parar!
-Sempre me perguntei sobre o que falaria quando chegasse esse momento. Temia que não pudesse ter a oportunidade de falar algo e depois de pensar muito eu me decidi o que deveria ser dito nesse desenlace trágico.
Havia uma xícara de chá vazia ao seu lado, a garota a fitou e pressagiou o pior. Havia um conteúdo anteriormente ali, naquele objeto, se não estava mais lá... Estava decidido. Ele havia ingerido daquela substância supostamente letal. Como que percebendo a expressão apavorada de sua última companhia, ele levantou-se entregando-lhe uma pá.
-Era cicuta. Já é hora.
A jovem queria sair imediatamente dali, chamar socorro, mas não conseguia mover as pernas.
-Quais são as suas últimas palavras?
O jovem rapaz depositou-se solenemente no buraco que havia cavado algumas horas antes e descansou seus olhos no céu. Até que enfim, se fecharam. A garota chorava baixo, mas tão vorazmente que fez com que as próprias árvores que ali se encontravam, choramingassem a própria seiva. Não havia notado esse absurdo, as árvores em prantos. Há tantas coisas ao nosso redor que deixamos de notar. Talvez aí nessas brechas da surdez do absurdo, esteja a música a tocar. O absurdo não é só o que não se espera, mas o que não se nota. Quase que inconscientemente, apanhou a pá que havia derrubado e despejou aquele monte de terra sobre o corpo. Me pergunto se o corpo seria a casa ou seria a prisão da alma. Onde estão os filósofos numa hora como essas? Casa, prisão. Prisão, casa.
-Quais são as suas últimas palavras?
Depois de ter feito o que lhe havia sido designado, seus músculos frágeis e exaustos a forçaram a deitar-se sobre aquela terra úmida, bem ao lado do túmulo de areia. Tudo o que ela queria naquele momento era dormir, simplesmente dormir. Mas não de cansaço. Não era sono, exaustão. Ela esperava que quando acordasse, o rapaz estivesse ali de volta. Queria acreditar que tudo não passava de um sonho. Para isso, ela achava necessário dormir. Seu corpo não tardou a aceitar essa proposta da sua mente irrequieta. O convite do vazio é sempre mais tentador. Dizem que quando recebemos uma pancada muito forte na cabeça, não devemos dormir. Será que acontece o mesmo para pancadas na alma?
Quando ela acordou, a cova ainda estava lá. Era cedo, a umidade do orvalho impregnava toda a manhã. Não pôde controlar o choro. E mais ninguém estava ali para dividir aquela dor. De alguma forma, ela se sentiu imensamente culpada de ter feito parte daquele velório excêntrico. Estimava tanto aquele rapaz... "Não esperava que fosse você quem viria até aqui", a questão que se desprendia de suas entranhas, quem era essa tal pessoa? O que signifcou toda essa celebração? Para quem? Essa pessoa estaria lá? Quem seria essa pessoa? A cova ainda estava lá e sono nenhum a fez dissipar-se. A cova ainda estava lá.
O jovem rapaz olhava concentradamente para os convivas. Todos estavam em um estado de euforia, desligados momentaneamente dos tubos que constituem a máquina social. Ele mantinha o seu olhar fixo no baile que se arrastava por toda aquela terra úmida da chuva que acabara de passar. As narinas estavam entretidas com aquele cheiro de terra molhada, misturado com o suor, com o vinho. Parecia estar a troçar de seus convidados, mas não era zombaria, era como se ele houvesse planejado algo que iria surpreender as pessoas de alguma forma. Sua introspecção não afetava em nada os dançarinos contagiados pela música dos pés na terra, dos corpos em contato muito íntimo, das goladas do mais saboroso manjar etílico, das tragadas nos melancólicos cigarros. Não havia música enfim, haviam vibrações abstratas, coletivas, havia relação humana bruta.
"My soul needs a cigarrette".
Pude perceber um melancólico pano de fundo por trás de tudo isso. Por que estaria o próprio anfitrião afastado da celebração? E o que estaria ele a celebrar? Ninguém teve a menor curiosidade de conhecer essas razões, apenas uma linda garota desajeitada de olhar singelo. A ela, preocupava o fato daquela tão querida criatura estar tão distante espiritualmente das outras pessoas. Pois, fisicamente estava ali sim, fitando cada expressão de cada rosto, de cada corpo, como se estivesse a fotografar, a registrar algo muito importante. Olhos examinadores, semelhantes aos de um estudioso em campo.
O sol estava prestes a se pôr, coloriu aquele lugar de um laranja peculiar, que refletia suavemente nas águas do rio, que passava nas proximidades. A garota foi até o jovem que sem perceber, legava ao vento o seu cigarro, que era tragado obstinadamente. Simplesmente sentou-se ao seu lado e ele lhe retribuiu com um sorriso tímido, acanhado. Levantou-se inesperadamente e segurando as suas delicadas mãos juntaram-se às outras pessoas. O jovem pôs-se a dançar. Algo meio peculiar, bizarro até, uma dança enérgica, de pulos e giros agressivos (como um tufão), que logo chamou a atenção de todos os outros. Imediatamente uma forte chuva atirou-se violentamente contra a terra. Como se aquilo fosse uma dança tribal, uma dança que rogava pela chuva. Ventos fortes empurravam avidamente as folhas dos coqueiros, cajueiros, das mangueiras, das alamandas, dos sombreiros. Os coqueiros se envergavam de tamanha a força que era empregada pela ventania, vinda da direção do mar. O impetuoso punho que a natureza emitia apenas reforçava toda aquela celebração. A relação ancestral homem-meio fora resgatada ferozmente, e havia uma sensualidade inelutável que se alastrava naquele momento singular.
Encarou por minutos a fio aquela garrafa que estava pela metade e despejou todo o seu conteúdo em sua boca, chegou a derramar por sua face e seu peito nu. Sabor de vinho seco molhando sua garganta, odor de vinho seco acariciando seus pulmões, e saiu. Momentos depois, apenas a garota sentiu a sua ausência e após um lapso auspicioso que a incomodava incitantemente, se retirou imediatamente do "olho do furacão" à procura do célebre celebrante. Saiu tão imperceptivelmente quanto o jovem rapaz.
Não durou muito até que o encontrou sentado ao lado de um buraco que se assemelhava a uma cova, cabisbaixo. Ele ergueu os olhos e pareceu surpreendido com o que viu.
-Não esperava que fosse você quem viria até aqui. Promessas...
-O que pretende fazer? - Ela se perguntava como que esperando uma resposta pré-concebida em suas próprias elucubrações - Por quê?
-Falta de perspectiva, curiosidade talvez. Compreendo que o céu é só uma promessa. Lembre-se que não existem coisas nobres, tais como a promessa no plano dos mortais. Se existe algo além desse plano, ignoro as possibilidades. Mas, gastamos tanto tempo existindo... Por que não inexistir? Não tem a curiosidade de simplesmente deixar de ser? Desde menino meu problema sempre foi essa tendência de averiguar as coisas, todas elas. Sempre mais perguntas do que respostas. Se fosse o contrário seria assaz insuficiente, não é mesmo? Decidi deixar de ser, com uma pergunta acompanhada de uma resposta. Por que não podemos dormir para sempre?
-Não vá - ela implorava soluçando, as lágrimas escorrendo de seus olhos encantadores, seu corpo a tremeluzir como uma estrela fraquejando aos poucos.
-Espero que me perdoe pelo que está destinada a fazer nesse momento. Realmente não esperava que fosse você a estar aqui em meu leito, mas você já demonstrava durante a festa, que seria a pessoa a carregar esse fardo. Eu tentei afastá-la das minhas meditações, eu tentei... Mas, existe uma parte sensível de nós mesmos que nos conecta de uma forma que não podemos compreender. Somos algo análogo aos recifes e corais, vários organismos que compõem um só. Mas, estamos irremediavelmente distantes, minha cara estrela.
-Isso que você vai fazer é errado. Há muito mais a ser vivido, a ser compreendido. Pare com isso! Não acredito que isso esteja acontecendo. Tem algo errado aqui- e olhando para o céu pôs-se a gritar - Faça parar!
-Sempre me perguntei sobre o que falaria quando chegasse esse momento. Temia que não pudesse ter a oportunidade de falar algo e depois de pensar muito eu me decidi o que deveria ser dito nesse desenlace trágico.
Havia uma xícara de chá vazia ao seu lado, a garota a fitou e pressagiou o pior. Havia um conteúdo anteriormente ali, naquele objeto, se não estava mais lá... Estava decidido. Ele havia ingerido daquela substância supostamente letal. Como que percebendo a expressão apavorada de sua última companhia, ele levantou-se entregando-lhe uma pá.
-Era cicuta. Já é hora.
A jovem queria sair imediatamente dali, chamar socorro, mas não conseguia mover as pernas.
-Quais são as suas últimas palavras?
O jovem rapaz depositou-se solenemente no buraco que havia cavado algumas horas antes e descansou seus olhos no céu. Até que enfim, se fecharam. A garota chorava baixo, mas tão vorazmente que fez com que as próprias árvores que ali se encontravam, choramingassem a própria seiva. Não havia notado esse absurdo, as árvores em prantos. Há tantas coisas ao nosso redor que deixamos de notar. Talvez aí nessas brechas da surdez do absurdo, esteja a música a tocar. O absurdo não é só o que não se espera, mas o que não se nota. Quase que inconscientemente, apanhou a pá que havia derrubado e despejou aquele monte de terra sobre o corpo. Me pergunto se o corpo seria a casa ou seria a prisão da alma. Onde estão os filósofos numa hora como essas? Casa, prisão. Prisão, casa.
-Quais são as suas últimas palavras?
Depois de ter feito o que lhe havia sido designado, seus músculos frágeis e exaustos a forçaram a deitar-se sobre aquela terra úmida, bem ao lado do túmulo de areia. Tudo o que ela queria naquele momento era dormir, simplesmente dormir. Mas não de cansaço. Não era sono, exaustão. Ela esperava que quando acordasse, o rapaz estivesse ali de volta. Queria acreditar que tudo não passava de um sonho. Para isso, ela achava necessário dormir. Seu corpo não tardou a aceitar essa proposta da sua mente irrequieta. O convite do vazio é sempre mais tentador. Dizem que quando recebemos uma pancada muito forte na cabeça, não devemos dormir. Será que acontece o mesmo para pancadas na alma?
Quando ela acordou, a cova ainda estava lá. Era cedo, a umidade do orvalho impregnava toda a manhã. Não pôde controlar o choro. E mais ninguém estava ali para dividir aquela dor. De alguma forma, ela se sentiu imensamente culpada de ter feito parte daquele velório excêntrico. Estimava tanto aquele rapaz... "Não esperava que fosse você quem viria até aqui", a questão que se desprendia de suas entranhas, quem era essa tal pessoa? O que signifcou toda essa celebração? Para quem? Essa pessoa estaria lá? Quem seria essa pessoa? A cova ainda estava lá e sono nenhum a fez dissipar-se. A cova ainda estava lá.
Pinturas de Mark Ryden
I.B.
Um comentário:
a parte da dança me lembrou lavoura arcaica...
escrita intensa..
:*
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