quarta-feira, 25 de março de 2015

Bicho Papão

Era uma vez...

Cheguei exausto em casa e não tinha nem estímulo para comer o cuzcuz de quatro horas atrás, abandonado no cuzcuzeiro. Um peso morto e insosso sobre o fogão. Me derramei sobre aquela cama larga e vazia e afundei de cara naquele espaço escorregadio até atravessar a sua matéria. Até debaixo da cama, de qualquer cama.

Toda e qualquer cama que existe, debaixo dela, eu sou o seu inquilino. A noite sopra seu hálito quente sobre as paredes dos lares, mas eu permaneço gélido, sobre o piso frio e empoeirado. De vez em quando elas, as crianças, são capazes de escutar o meu sibilo e prontamente se põem a correr para o quarto de seus pais. Algumas delas se cobrem por completo com seus frágeis lençóis e as mais bravas arriscam encarar as profundezas do meu covil. Nada vêem, senão o pó. Mas eu estou lá. Sempre estarei, sempre estive.

O sol aparece. Minha labuta chega ao seu fim. Enfim, eu morro; e, como a fênix, renasço sobre a minha cama. Não é qualquer cama, é uma cama específica. Encostada na parede, grande, vazia, empapada de suor e insônia. Todos se levantam, escuto os passos ressoando pela casa, mas a porta está encravada no chão e eu permaneço deitado sem o ímpeto para me levantar. Quando finalmente eu me ergo de meu leito, eu preciso sair. Até o momento de negligenciar mais um prato de qualquer coisa sobre o fogão.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Exílio


Sinto o meu estômago se comprimir toda vez que me vem ao pensamento e o que me incomoda não tem nada a ver com as coisas passadas, com a bagagem deixada pra trás em maletas velhas e rotas cheias de cheiros e recordações quase táteis. Nem mesmo o futuro auspicioso ou agourento. O único momento absoluto é esse agora, é o corpo vacilante diante de um poço úmido e abafado com cheiro de barro. O momento que precede a viagem. O irromper da revolução na aurora do dia. Um penetrante autoritário berro silencioso como é a justiça selvagem, sem piedade, sem cerimônia. A mandíbula de mil feras encravadas nos pulmões sobre um palco forrado de folhas decompostas. A viagem que não escolhemos trilhar, a verdade que não decidimos acreditar, o dia que nunca esperamos chegar.

Fui expulso do meu lar por oito patas aracnídeas enroscadas em meus cabelos encaracolados e nesta jornada irei acompanhado de memórias espectrais, de fantasmas nas paredes da locomotiva desta Samsara interminável. Há uma caverna lá fora. É o meu destino. Não para me privar da luz, não para me esconder da vida, desta dor, deste sofrimento, das alegrias e prazeres. Um dos passageiros me disse que havia algo lá, algo para mim. Distante de casa, porém, familiar como a pele que me cobria todos os males, todas as inverdades, todas as carências, desamores, vícios. A teta que nutria a minha alma, o casulo maternal que fazia salivar a ansiedade magnânima da crisálida. O deus insano e terreno que me provia de fé e deleite.

Estava lá! A mandala fluorescente em uma noite sem luar. Junto a uma fogueira eu me pus a cantar com os espíritos a uma distância segura da entrada da gruta. Podia sentir sua respiração úmida, refrescante, com cheiro de barro. O cinza de suas rochas é passageiro. Assim como eu o sou nesta locomotiva infalível. E as cores hão de brotar novamente. Seja no exílio ou de volta ao lar. Porque o que importa no final é somente a viagem. As que escolhemos e aquelas que nos são forçadas. Mas, uma coisa é tão imperativa quanto a própria excomunhão do exilado: a esperança de que um dia escute a melodia do chamado de volta à sua pátria.

terça-feira, 10 de março de 2015

O Camaleão de Simão Dias


Primeiro ele veio com a “Mangaba Madura” em 2001, mais de uma década depois de ter iniciado sua carreira como artista. O título do registro foi uma brincadeira com as qualidades deste fruto bastante regional, que quando maduro tem qualidades medicinais e quando verde é tóxico.

Em 2006, depois de um hiato de cinco anos, ele deu vida à “Aquarela pra Pandeiro” (para quem não sabe, aquarela é uma técnica de pintura na qual se dilui várias tintas na água). Após um longo intervalo de sete anos, agora em 2014, ele publicou o seu mais novo trabalho: “José”. Sua capa traz um registro fotográfico antigo dele mesmo e alguns familiares, composto marcadamente pelas cores primárias azul, vermelho e amarelo.

A mudança de cores, se não for a mais importante ferramenta do camaleão, é sem dúvida a que mais o caracteriza. José Lucivaldo Carvalho Silveira, Nininho Silveira, Nino Karva e finalmente, Nino Karvan. Vários nomes, várias caras, expressadas explicitamente em seus trabalhos artísticos. Todos eles representando a diversidade de cores como o seu protagonista. Seja por meio da versatilidade de estilos nos quais Nino desfila tranquilamente, seja através da naturalidade com que cantarola os seus versos multiplurais.

As cores e Nino são parceiros desde sua estreia em um festival nos anos 80 quando tinha apenas 17 anos. Nessa ocasião, ganhou o primeiro lugar com a composição “a cor linda que incomoda”, que tratava da opressão aos negros. Isso durante o centenário de abolição da escravatura.

Há que se falar das maravilhas e das mazelas

Na canção “Ribeira” do “Aquarela pra Pandeiro”, registro inteiramente influenciado pelo xote, xaxado e baião, por exemplo, o cabra consegue de forma extremamente fácil dizer que “o anarquismo nunca rimou com bagunça e ele apenas desarruma o estado que é ruim; e a burguesia dá o golpe e se apruma metendo chute na bunda do leitor de Bakunin”. Isso sem soar proselitista ou forçado. Inclusive, nesta canção digladiam duas questões quase que antagônicas em sua visão de mundo: o amor e a luta de classes.

“Eu não acredito mais em luta de classes, acredito que o mundo só pode ser mudado com amor e não com conflito”, afirmou o cantador. “A revolução historicamente já provou que só traz mais ódio, ditadura, pós-revolução. Pra manter a hegemonia do poder de um partido que se diz a vanguarda revolucionária, e que a revolução passa a tender a uma cúpula, e o povo passa a ser sempre rebanho nessa revolução. Não! Eu quero um povo consciente das suas obrigações, dos seus direitos e deveres e que cada um se sinta por si só um agente dessa transformação, dessa revolução que tem que ser universal (sic)”, explica.

O simãodiense foi membro fundador do Partido dos Trabalhadores (PT) em Simão Dias. Militou por toda a sua juventude, já foi presidente do partido, candidato a vereador... Obra e vida parecem sempre ter caminhado lado a lado de Nino, já que grande parte de suas composições aborda certas contradições da vida contemporânea. Ele mescla o seu eu bastante arraigado às suas origens interioranas e essa relação com a liquidez dos fenômenos sociais.

Este espírito de militância, que pode ter acabado no que se refere ao campo de atuação política, perdura ainda hoje de outra forma. Há de se convir que para ser um artista autoral! especialmente no Estado de Sergipe, com os pés chafurdados em uma caudalosa moqueca de indiferença congênita, é preciso militar. Militar só. Uma punheta rançosa, sem estímulo. É você e sua ressaca moral dançando sob um sol escaldante (descalço) em um chão forrado de brita. Se der sorte, você pode até conseguir gozar. Sorrindo em êxtase com a palma das mãos sujas e sebosas.

Para Nino, que percorreu quase três décadas deste cenário nefasto, praticamente nada mudou no que se refere às oportunidades para a música autoral. O mercado permanece incipiente e em desvantagem estrutural com relação a outras realidades ao redor do país. O que não quer dizer que a produção daqui deixe a desejar. A propósito, a bandeira antropofágica da primeira “colcha de retalhos” (é assim que ele se refere a dois de seus álbuns), o “Mangaba Madura”, é a de que “havia certa maturidade na produção sergipana a ponto de nós termos orgulho de consumí-la”.

E nesta era de convergência digital, com a corrente reconfiguração da indústria cultural diante da “democratização” dos meios de comunicação, é nítido observar a fertilidade das mentes criativas locais através de trabalhos cada vez mais lapidados e concisos. A ausência de uma economia pujante na cadeia produtiva tem servido como um catalisador nesse processo, meio que a contragosto.

Segundo Nino, já que a instituição do Estado ainda existe, ela tem uma dívida muito grande com o incentivo à produção cultural, mas também a iniciativa privada tem sido negligente na contribuição para o enriquecimento emocional, espiritual e mental das pessoas.

Como o samba está pro som do pandeiro

Como eu já havia mencionado anteriormente nestas laudas, “José” é o mais recente material publicado por Nino Karvan. De todos, é o mais bem produzido, sofisticado, com arranjos e temática mais sólidos e o mais bem amarrado apesar de o registro englobar influências sonoras que transitam desde a infância do compositor até os atuais 45 anos. Porém, essa miscelânea estética faz parte de sua índole criativa e está muito longe de ser um sinal de indefinição. “José” levou sete anos para ser concebido. Um período deveras penoso para um compositor inventivo como ele é. Atualmente, para terem uma noção, o músico compõe de um a dois sambas por semana. Um ano tem 52 semanas. Façam suas projeções!

Todo esse enérgico impulso laboral parece buscar alento por todos os cantos em diversas áreas da expressão artística, já que Nino é também comunicador, musicoterapeuta, luthier, artista plástico, etc. A música assumindo sempre um papel central.

E foi em 2013, quase que acidentalmente, num papo com o percussionista, baterista e produtor musical Dudu Prudente, que Nino se convidou para participar do que veio a ser um de seus mais audaciosos projetos: Anavantou!

Anavantou! é a miscigenação do grupo instrumental sergipano “Membrana” que conta com as participações do pesquisador e maestro Pedrinho Mendonça, o virtuoso gaitista Júlio Rego (parceiro de longa data de Nino) e Dudu Prudente em junção com um grupo de música instrumental belga chamado Turdus Philomelos. Todo esse time é elencado por músicos extremamente competentes e engajados em uma proposta consistente.

 Os trabalhos de Nino, da Membrana e da Turdus Philomelos tem características em comum. São profundamente pautados em experimentações com as raízes tradicionais de suas realidades em fusão com outros gêneros musicais. Forró, maracatu e pífano amalgamando-se com o folclore europeu. Aliás, o forró que tem origem nas danças de salão europeias com um pouco de influência do toré indígena não faz mais do que reencontrar-se com um amigo de longa data. A reunião de lados opostos do atlântico conflui para conceber uma mistura em sintonia com as novas relações do indivíduo global com o espaço. O sintoma dos novos tempos. 

Depois de uma turnê ocorrida entre junho e agosto deste ano passando por alguns países europeus, o grupo recém-formado se consolida cada vez mais escrevendo músicas juntos e em processo de gravação desta parceria internacional. A ideia desta nova banda que vem surpreendendo pelos palcos mundo afora permeada por apresentações instigantes e bastante performáticas teve surgimento em uma conversa entre dois amigos: o percussionista Dudu Prudente e o cineasta belga Damien Chemin. Pensar em um intercâmbio musical se fazia necessário naquele momento.

O episódio ocorreu quando Dudu estava na Bélgica para finalizar a trilha de sua autoria para o longa, rodado em Aracaju, “A Pelada”. O filme, lançado em 2013 e recentemente distribuído pela Paris Filmes, é a primeira produção da indústria cinematográfica brasileira (apesar de ser uma produção franco-belga-brasileira) gravada 100% em Aracaju com a maior parte da equipe e do elenco composta por profissionais sergipanos.

A palavra anavantou, que significa avante em francês, é uma expressão popularmente utilizada nas quadrilhas juninas para marcar o movimento dos dançarinos. Esta ideia semântica que norteia a base rítmica e harmônica desse novo projeto se confunde com a essência latente de Nino. Parafraseando um mártir contemporâneo sob um cajueiro em um dia bastante ensolarado, o camaleão de Simão Dias não disfarça a sua pretensão genuína. “Como Chico Science dizia: Pernambuco embaixo dos pés e a mente na imensidão”. E as coisas vão acontecendo quando tem que acontecer.


Igor Bacelar

Foto por Lucilene Carvalho