Primeiro ele veio com a “Mangaba Madura” em 2001, mais de uma década
depois de ter iniciado sua carreira como artista. O título do registro foi uma
brincadeira com as qualidades deste fruto bastante regional, que quando maduro
tem qualidades medicinais e quando verde é tóxico.
Em 2006, depois de um hiato de cinco anos, ele deu vida à “Aquarela pra
Pandeiro” (para quem não sabe, aquarela é uma técnica de pintura na qual se
dilui várias tintas na água). Após um longo intervalo de sete anos, agora em
2014, ele publicou o seu mais novo trabalho: “José”. Sua capa traz um registro
fotográfico antigo dele mesmo e alguns familiares, composto marcadamente pelas
cores primárias azul, vermelho e amarelo.
A mudança de cores, se não for a mais importante ferramenta do camaleão,
é sem dúvida a que mais o caracteriza. José Lucivaldo Carvalho Silveira,
Nininho Silveira, Nino Karva e finalmente, Nino Karvan. Vários nomes, várias caras,
expressadas explicitamente em seus trabalhos artísticos. Todos eles representando
a diversidade de cores como o seu protagonista. Seja por meio da versatilidade
de estilos nos quais Nino desfila tranquilamente, seja através da naturalidade
com que cantarola os seus versos multiplurais.
As cores e Nino são parceiros desde sua estreia em um festival nos anos
80 quando tinha apenas 17 anos. Nessa ocasião, ganhou o primeiro lugar com a
composição “a cor linda que incomoda”, que tratava da opressão aos negros. Isso
durante o centenário de abolição da escravatura.
Há que se falar das maravilhas e das
mazelas
Na canção “Ribeira” do “Aquarela pra Pandeiro”, registro inteiramente
influenciado pelo xote, xaxado e baião, por exemplo, o cabra consegue de forma
extremamente fácil dizer que “o anarquismo nunca rimou com bagunça e ele apenas
desarruma o estado que é ruim; e a burguesia dá o golpe e se apruma metendo
chute na bunda do leitor de Bakunin”. Isso sem soar proselitista ou forçado.
Inclusive, nesta canção digladiam duas questões quase que antagônicas em sua
visão de mundo: o amor e a luta de classes.
“Eu não acredito mais em luta de classes, acredito que o mundo só pode
ser mudado com amor e não com conflito”, afirmou o cantador. “A revolução
historicamente já provou que só traz mais ódio, ditadura, pós-revolução. Pra
manter a hegemonia do poder de um partido que se diz a vanguarda
revolucionária, e que a revolução passa a tender a uma cúpula, e o povo passa a
ser sempre rebanho nessa revolução. Não! Eu quero um povo consciente das suas
obrigações, dos seus direitos e deveres e que cada um se sinta por si só um
agente dessa transformação, dessa revolução que tem que ser universal (sic)”,
explica.
O simãodiense foi membro fundador do Partido dos Trabalhadores (PT) em
Simão Dias. Militou por toda a sua juventude, já foi presidente do partido,
candidato a vereador... Obra e vida parecem sempre ter caminhado lado a lado de
Nino, já que grande parte de suas composições aborda certas contradições da
vida contemporânea. Ele mescla o seu eu bastante arraigado às suas origens
interioranas e essa relação com a liquidez dos fenômenos sociais.
Este espírito de militância, que pode ter acabado no que se refere ao
campo de atuação política, perdura ainda hoje de outra forma. Há de se convir
que para ser um artista autoral! especialmente no Estado de Sergipe, com os pés
chafurdados em uma caudalosa moqueca de indiferença congênita, é preciso
militar. Militar só. Uma punheta rançosa, sem estímulo. É você e sua ressaca
moral dançando sob um sol escaldante (descalço) em um chão forrado de brita. Se
der sorte, você pode até conseguir gozar. Sorrindo em êxtase com a palma das
mãos sujas e sebosas.
Para Nino, que percorreu quase três décadas deste cenário nefasto,
praticamente nada mudou no que se refere às oportunidades para a música
autoral. O mercado permanece incipiente e em desvantagem estrutural com relação
a outras realidades ao redor do país. O que não quer dizer que a produção daqui
deixe a desejar. A propósito, a bandeira antropofágica da primeira “colcha de
retalhos” (é assim que ele se refere a dois de seus álbuns), o “Mangaba
Madura”, é a de que “havia certa maturidade na produção sergipana a ponto de
nós termos orgulho de consumí-la”.
E nesta era de convergência digital, com a corrente reconfiguração da
indústria cultural diante da “democratização” dos meios de comunicação, é
nítido observar a fertilidade das mentes criativas locais através de trabalhos
cada vez mais lapidados e concisos. A ausência de uma economia pujante na
cadeia produtiva tem servido como um catalisador nesse processo, meio que a
contragosto.
Segundo Nino, já que a instituição do Estado ainda existe, ela tem uma
dívida muito grande com o incentivo à produção cultural, mas também a
iniciativa privada tem sido negligente na contribuição para o enriquecimento
emocional, espiritual e mental das pessoas.
Como o samba está pro som do
pandeiro
Como eu já havia mencionado anteriormente nestas laudas, “José” é o mais
recente material publicado por Nino Karvan. De todos, é o mais bem produzido,
sofisticado, com arranjos e temática mais sólidos e o mais bem amarrado apesar
de o registro englobar influências sonoras que transitam desde a infância do
compositor até os atuais 45 anos. Porém, essa miscelânea estética faz parte de
sua índole criativa e está muito longe de ser um sinal de indefinição. “José”
levou sete anos para ser concebido. Um período deveras penoso para um
compositor inventivo como ele é. Atualmente, para terem uma noção, o músico
compõe de um a dois sambas por semana. Um ano tem 52 semanas. Façam suas
projeções!
Todo esse enérgico impulso laboral parece buscar alento por todos os
cantos em diversas áreas da expressão artística, já que Nino é também
comunicador, musicoterapeuta, luthier, artista plástico, etc. A música
assumindo sempre um papel central.
E foi em 2013, quase que acidentalmente, num papo com o percussionista,
baterista e produtor musical Dudu Prudente, que Nino se convidou para
participar do que veio a ser um de seus mais audaciosos projetos: Anavantou!
Anavantou! é a miscigenação do grupo instrumental sergipano “Membrana”
que conta com as participações do pesquisador e maestro Pedrinho Mendonça, o
virtuoso gaitista Júlio Rego (parceiro de longa data de Nino) e Dudu Prudente
em junção com um grupo de música instrumental belga chamado Turdus Philomelos.
Todo esse time é elencado por músicos extremamente competentes e engajados em
uma proposta consistente.
Os trabalhos de Nino, da Membrana
e da Turdus Philomelos tem características em comum. São profundamente pautados
em experimentações com as raízes tradicionais de suas realidades em fusão com
outros gêneros musicais. Forró, maracatu e pífano amalgamando-se com o folclore
europeu. Aliás, o forró que tem origem nas danças de salão europeias com um
pouco de influência do toré indígena não faz mais do que reencontrar-se com um
amigo de longa data. A reunião de lados opostos do atlântico conflui para
conceber uma mistura em sintonia com as novas relações do indivíduo global com
o espaço. O sintoma dos novos tempos.
Depois de uma turnê ocorrida entre junho e agosto deste ano passando por
alguns países europeus, o grupo recém-formado se consolida cada vez mais
escrevendo músicas juntos e em processo de gravação desta parceria
internacional. A ideia desta nova banda que vem surpreendendo pelos palcos
mundo afora permeada por apresentações instigantes e bastante performáticas
teve surgimento em uma conversa entre dois amigos: o percussionista Dudu
Prudente e o cineasta belga Damien Chemin. Pensar em um intercâmbio musical se fazia
necessário naquele momento.
O episódio ocorreu quando Dudu estava na Bélgica para finalizar a trilha
de sua autoria para o longa, rodado em Aracaju, “A Pelada”. O filme, lançado em
2013 e recentemente distribuído pela Paris Filmes, é a primeira produção da
indústria cinematográfica brasileira (apesar de ser uma produção
franco-belga-brasileira) gravada 100% em Aracaju com a maior parte da equipe e
do elenco composta por profissionais sergipanos.
A palavra anavantou, que significa avante em francês, é uma expressão
popularmente utilizada nas quadrilhas juninas para marcar o movimento dos
dançarinos. Esta ideia semântica que norteia a base rítmica e harmônica desse
novo projeto se confunde com a essência latente de Nino. Parafraseando um
mártir contemporâneo sob um cajueiro em um dia bastante ensolarado, o camaleão
de Simão Dias não disfarça a sua pretensão genuína. “Como Chico Science dizia:
Pernambuco embaixo dos pés e a mente na imensidão”. E as coisas vão acontecendo
quando tem que acontecer.
Igor Bacelar
Foto por Lucilene Carvalho