domingo, 25 de julho de 2010

Number 43 (from Sonnets from Portuguese)

"How do I love thee? Let me count the ways.
I love thee to the depth and breadth and height
My soul can reach, when feeling out of sight
For the ends of Being and ideal Grace.
I love thee to the level of everyday's
Most quiet need, by sun and candlelight.
I love thee freely, as men strive for Right;
I love thee purely, as they turn from Praise.
I love thee with the passion put to use
In my old griefs, and with my childhood's faith.
I love thee with a love I seemed to lose
With my lost saints,—I love thee with the breath,
Smiles, tears, of all my life!—and, if God choose,
I shall but love thee better after death."
Elizabeth Barrett Browning

O artista


Sentado à beira de uma piracicaba, uma paisagem pitoresca de clima úmido devido ás quedas d'água e à proximidade com o litoral, o artista estava a vivenciar nebulosas orgias enquanto masturbava-se concentradamente silencioso. O impacto das cachoeiras distraía seus ouvidos do restante do mundo. Esse lugar tem um curioso magnetismo sobrepujante que faz com que todos se calem, conseqüentemente acumulando uma quantidade considerável de verdades e inverdades na alma dos mais sensíveis. Se o sonho é um fato abstrato na concretividade do espírito, esse lugar seria o seu perfeito antagonismo.

O esperma foi despejado no riacho e cuidadosamente perseguido pelos olhos daquela criatura, até que se desfez em um acidente no seu percurso. Sua vitalidade escorreu pelo próprio sêmen do que ele concebe como a criação, o fluido fluxo que desemboca em um infinito universo dentro de uma partícula finita no meio do breu cósmico. Lambeu em seus dedos aquele esperma denso, muito viscoso, e sentiu o gosto salobro percorrer as suas papilas gustativas e grudar em seus dentes amarelados. Uma tentativa vã de germiná-los em sua boca estéril. Seus milhares de descendentes continuam perdidos e solitários, deterioram-se em um simples e breve contato com o mundo. Doce mundo!

Prostrou-se horas a fio na varanda, entediado, ausente, encharcado em suor. O sol estava especialmente quente nessa manhã. Castigava as pobres plantas que se esforçavam para manter a sua temperatura em níveis vitais sobre aquela areia escaldante. O vento, não se percebia sinal sequer dele. Ocasionalmente uma brisa visitava aquela região e aqueles poucos segundos se transformavam em uma coerente razão para viver. Hoje, o litoral decidiu guardar o ar de seus pulmões para eventuais tormentas, como se prenunciasse um evento que exigiria de si um esforço muito grande para se sustentar.

O vilarejo mais próximo era há apenas dez contos de réis do sítio. Quando eu insinuo que a distância se mede em dez contos de réis, só quero chamar a atenção de que a afirmação “tempo é dinheiro” não é uma exclusividade cronológica, mas também espacial. Apesar da proximidade com a civilização, há anos o artista não deixava o seu retiro. Algo inacabado ou até mesmo nunca iniciado o mantinha ali como refém por tempo indeterminado. A grande obra era tema recorrente de seus dias, mas talvez não tivesse achado o dialeto correto para exprimi-la. Com rara freqüência, um amigo ou outro aparecia para visitá-lo e discutir sobre assuntos triviais. Outros artistas vinham lhe consultar, pois ele era conhecedor de técnicas extraordinárias no mundo da arte, principalmente no que se é relativo à pintura. E por mais satisfeitos que os outros artistas fossem embora, o artista não sentia credibilidade em nenhuma das coisas que era forçado a dizer-lhes.

Pegou uma moldura que estava jogada em um amontoado de tralhas, as tintas e os pincéis que estavam sobre um criado mudo e começou a pintar usando o seu suor para misturar as cores. A obra de arte deve ter certos compromissos. Mesmo que o artista não esteja preocupado com essas quinquilharias, uma grande obra surge da sua capacidade de refletir a realidade. Partindo dessa perspectiva, o artista deslizou seu pincel sobre a moldura, guiado por suas mãos suaves como se tocassem uma criança recém-nascida com bastante esmero. Não levou muito tempo e a pintura estava pronta. Um paraíso tropical totalmente congelado em um fim de tarde. Nas dunas, onde havia areia deu lugar à neve, a copa dos coqueiros e algumas anacardiáceas estavam igualmente encobertas, e uma forte tempestade gélida castigava aquela paisagem que outrora gozava de dias quentes e chuvosos. Um completo absurdo climatológico.

Passou o resto da manhã admirando o calor contrastante em relação ao que havia pincelado alguns minutos atrás. Vislumbrava tudo com uma curiosidade e surpresa invejáveis, típico de crianças muito novas e buliçosas. Ao contrário das crianças, ele se mantinha estático e paciente, optou por ter uma experiência sensitiva meramente imagética.

Era quase fim de tarde e o artista entrou apressadamente para dentro do casebre e fechou todas as janelas. Abriu o seu velho e desarrumado guarda-roupa e vestiu roupas densas e quentes. Cobriu-se com um longo sobretudo e calçou suas meias e luvas grossas, e suas surradas botas de couro. Estava muito abafado dentro de toda aquela roupa, que não tinha nenhuma validade naquele lugar. Suava ainda mais do que antes. Foi até a porta da frente todo agasalhado e consultando o antigo relógio de mogno, que estava dependurado na parede, abriu finalmente a maçaneta.

Era frio como nunca havia sido naquele lugar e talvez em qualquer outro que existisse. Nevava intensamente. Alguns animais tentavam em vão se abrigar em qualquer buraco que encontrassem. O artista andou vagarosamente pela neve densa em direção à piracicaba onde costumava pescar e passar o tempo meditando. Ao chegar lá, viu o seu templo imobilizado pelo gelo. As corredeiras estavam imóveis e mudas. Erguendo a sua cabeça para cima, o artista pôs-se a gritar ferozmente como nunca o havia feito. Pela primeira vez, o seu berro desafinado se fez ouvir ali naqueles rochedos. Como que satisfeito, o artista se dirigiu com ligeireza de volta ao casebre.

A lua estava foragida em algum lugar, ocultada pelas nuvens e pela tempestade voraz, mas era perceptível a aproximação da manhã, mesmo que em termos de temperatura não houvesse acontecido nenhum tipo de mudança sensível.

Ao chegar à sua casa, incólume no meio daquele temporal, revirou suas coisas com nítida agonia e impaciência como se estivesse perturbado com alguma coisa. Pegou uma tela e pôs-se a pintar com pressa para não perder alguma inspiração fulgurante que estava a germinar de sua psique. Masturbava-se em intervalos de pinceladas e derramava o seu esperma sobre o piso sem nenhuma cerimônia ou atenção. Mal percebia as baratas que se congregavam ao redor de seu gozo como em um banquete suculento arremessado aos miseráveis. Uma fome incalculável para um suprimento inevitavelmente indigesto. Eis que despencou ao chão com as pernas estremecendo e contemplou a sua obra com um largo sorriso. Olhou para o relógio. Quatro da manhã. Correu com bastante avidez ao seu guarda-roupa para colher o seu melhor terno e deixou para trás a sua mais recente pintura: um revólver disposto em um criado mudo perto de uma janela onde havia um bem-te-vi a cantar alegremente.

I.B.

Desenhos de Mark Ryden

domingo, 11 de julho de 2010

Clara


“Às vezes procuro entender esse laboratório de almas que é o mundo”, foi assim que começou a manhã daquela jovem de cabelos desgrenhados e passos desajeitados. Estava sentada a espera do ônibus, que estava atrasado há alguns longos minutos, e se pegou distraidamente a olhar para os veículos que por ali passavam com interessada minúcia, mais precisamente para os condutores apressados dentro de seus carros. Só desviava a sua atenção quando o observado fazia menção de retribuir-lhe o olhar impulsivamente, sem saber que estava sendo observado. O que em outra ocasião poderia levá-la a conjecturar sobre as particularidades de cada indivíduo, nesse dia em particular, Clara (esse era o seu nome) mirava tudo ao seu redor com um asco recorrente, antigo. Era como se todas as coisas e pessoas não passassem de uma massa disforme, um omelete onde não se diferencia a gema da clara.

O coletivo serpenteava sofregamente por aquelas mesmas avenidas ensandecidas e vielas apertadas do centro da cidade amiúde. Não havia assentos suficientes para todos e aquilo tudo se assemelhava a um gigantesco varal humano. Os cheiros e odores, exóticos ao olfato de Clara, se atiravam desavisadamente em sua direção. Tinha a impressão quase palpável de que estava nua e espremida contra aqueles corpos estranhos. Se houvesse em algum lugar um suco de laranja a ser preparado em qualquer lanchonete ou pocilga daquele éden infernal, a pobrezinha estaria se sentindo exatamente como Clara, que estava à beira de um colapso generalizado.

A jovem recostou-se em um telefone público próximo a um edifício assombrosamente alto. Esse edifício tinha a insistente mania de alfinetar o céu e nas noites tipicamente urbanas, escarrava nas estrelas invisíveis. Clara já não sabia o que fazia ali. Era como se as suas pernas fossem indiferentes às suas sugestões motoras e agissem por conta própria, na lógica da memória frequencial a qual os computadores funcionam. Afastou-se preguiçosamente do seu encosto para dar lugar a um senhor irascível que queria usar o telefone. A sua falta de cortesia incomodou Clara profundamente. Ela se imaginou pisoteando a cabeça do velho rabugento com um par de saltos-altos, mas exibiu meramente um franzir de testa e um aceno de desculpas. O que lhe rendeu, segundos depois, devido ao seu deslocamento desatencioso, uma trombada com uma “madame” toda empertigada. A senhora que estava estatelada no chão, trajava vestidos caros de cores berrantes e possuía uma miríade de jóias. Estava maquiada exageradamente para disfarçar eventuais rugas e espinhas e tinha em seus braços finos uma série de sacolas com produtos de estética e outras mercadorias de artigos de moda.

Esse episódio fez com que a jovem se abstraísse da realidade a sua volta e em um processo reflexivo, remetesse aos tempos do Antigo Egito e às relações de consumo a qual estava habituada a interagir desde a infância, sem ter noção do que estava por trás de coisas aparentemente ingênuas.

O sistema vigente está tão consolidado, pois está fundado em um princípio infalível: uso e desuso das paixões e vícios do gênero humano. Agora, para Clara, tudo parecia ser evidente e óbvio. A vaidade é conhecida como o pecado capital mais grave e esse conceito já têm milhares de anos, mais antigo do que os escritos bíblicos. O capitalismo pegou uma carona com o narcisismo, artificialmente institucionalizado através de um caráter natural do homem. A vaidade famigerada em histórias como Alexandre, O Grande e até mesmo Cleópatra, não passam de exemplos antigos de um vício reiterante e inalienável de qualquer ser que tem consciência plena de si mesmo. O consumismo metamorfoseou nosso vício em doença crônica e pandêmica. O capitalismo é moldado a imagem e semelhança do homem.

Quando Clara recobrou a consciência de suas introspecções, olhou para baixo e sentiu nojo de si mesma ao se ver caída naquele chão imundo enfeitada com vestidos, colares e pulseiras.

Refugiou-se em um parque bastante arborizado, ainda no centro da cidade, e descansou sob uma castanheira bastante velha e frondosa. Tentava ao menos aí, encontrar um espaço de silêncio interior para recobrar a plenitude de seus sentidos. Estava bastante abalada psicologicamente e sentia calafrios e tremores. Era como se a sua cabeça estivesse nas nuvens e fosse difícil para seu corpo fazer uma ligação sensorial com a sua mente. Uma sensação nauseante de alienação, alheamento, um desconforto tamanho que a impossibilitava de ter um pensamento sequer com a mínima clareza necessária. Ainda havia pessoas que transitavam freneticamente pelo parque, aparentemente sempre preocupados com alguma coisa. Pisavam estrondosos no chão, como elefantes, mas pertinazes como formigas.

Aos poucos e progressivamente, uma serenidade começou a tomar conta dos seus pensamentos, uma melodia se acomodava gradativamente em um recôndito seguro de sua mente exausta. Era familiar, lamuriosa, de um cantor sofrido que ela costumava escutar em casa nos dias nublados e chuvosos. Seus olhos marejados pela lembrança que a rendera repentinamente, vieram acompanhados de um ricto que se alastrava por sua face. As lágrimas silenciosas deram lugar a uma enxurrada e um soluçar muito penosos de se ver, ainda mais naquele rosto outrora tão tranqüilo. Havia uma sensibilidade digna do maior dos poetas e literatos sob aquela árvore sábia, que já vira muitos dramas genuinamente humanos. Um conjunto de palmas e ovações oriundos de uma escola que havia ali por perto cortou o silêncio que só não era absoluto por causa de ocasionais choramingos de sinceridade invejável. Clara voltara à realidade mais uma vez simplesmente para regressar às suas introspecções. Dessa vez o palco era uma suposta manifestação celebrante em uma escola.

Interessou-se pela forma com que as vozes humanas em conjunto se amalgamam e dão a luz a um coral uniformizado. Não só a nível de organização estrutural o gênero humano se homogeneíza, mas também na esfera biológica. Percebe-se que nesse tipo de manifestação da voz, a ovação, quando se tem um número semelhante de homens e mulheres, a voz feminina, mais estridente, se destaca. É como se o espírito feminino entrasse em conflito pacificamente com a dominação supressiva do macho. É a oportunidade que a mulher tem de berrar alto sem rechaçamento, uma auto-afirmação de nível exclusivamente biológico. O timbre da voz humana é particular a cada indivíduo e somente a ele. Mas, a melodia a qual acariciava a confusão de Clara, não passaria de uma estrutura indefesa e sem forma unitária quando colocada em meio à multidão (berros depois de um discurso político, gritos de celebração em um festival de música). Caso contrário, ela não pertence a você. Não dentro dessa lógica.

Atirou-se porta adentro e jogou-se no sofá. Sentia um desconforto no estômago, não sabia dizer se era mais provocado pela fome do que pelo mal estar. Uma lembrança tomou lugar ao seu alívio por ter chegado, enfim, ao lar doce lar. Uma lembrança de algumas cartas que Clara costumava escrever e endereçar a si mesma há alguns anos atrás, quando as jogou indevidamente na lixeira. O conteúdo era essencialmente de desabafo. Era melhor tê-las queimado, agora estão em algum lugar soterradas em um pútrido e miserável amontoado de lixo, desamparadas, perdidas. “Eu virei lixo”, murmurou dirigindo-se à janela do apartamento pela última vez naquele dia. Tudo o que via era uma omelete estragada revestindo todas as coisas que fora dali se encontravam. Sussurrou para si mesma uma espécie de antítese relativa à sua estréia introspectiva de pé esquerdo naquele dia em particular, “não, não. Nós somos o laboratório. O mundo é quem é o cientista maluco”. Foi até a cozinha e impetuosamente abriu o faqueiro.

Ilustração de Charles Allan Gilbert, "Tudo é vaidade"

I.B.


sábado, 10 de julho de 2010

Confissões de um casual desconforto de polidez


"Nenhum santo sustenta-se só"
Mindwalk

Eu estava passando por aquela avenida lustrosa no bairro mais aristocrático da cidade. Havia bares chiques nas calçadas de ambos os lados. Pessoas engoliam, literalmente, taças de vinho que eram servidas a cada cinco minutos de mesa em mesa, enquanto esparramavam notas recém saídas do "forno" pelas mesas de madeira maciça. Os garçons estavam vestidos de coelhinhos da páscoa, mas não creio que fosse mês de Abril. A avenida estava infestada de carros possantes e limousines, e como de praxe, atravessei despreocupadamente aquela senda tipicamente urbana revestida por uma densa película de dióxido de carbono que embaçou a minha visão, por pouco não tropeço em um pai que mastigava a sua filha ali mesmo sobre o asfalto. Olhei brevemente com certo desconforto, mas rapidamente recolhi as condolências de minhas feições e sem saber o que dizer eu me retirei com um desajeitado "boa-noite".

Sentei no primeiro banco de praça que encontrei para descansar as minhas pernas exaustas. Eu deveria ter pego um ônibus para poupar-me de todo esse suor que empapava as minhas roupas. Já subia aquele cheiro forte de poros sujos e encharcados. Foi então que um cão que estava zanzando pela praça, a procura de algo mais interessante do que ele mesmo para o seu estômago ou suas necessidades mais imediatas, se aproximou levantando uma de suas patas dianteiras em minha direção e para a minha surpresa, despejou algumas gotas de um líquido amarelado em minhas calças surradas. Não preciso dizer que espanquei o animal até o próprio beirar à morte. Enquanto eu refletia sobre o fato do cachorro urinar em mim, uma criança que por ali passava...

Desculpem a minha falta de polidez!, estava tão entretido em minha prosa que esqueci a quem eu estou dirigindo esses relatos. Vocês devem estar espantados, aterrorizados, mas deixarei claro de que o que estou lhes relatando faz parte do meu cotidiano banalíssimo. Por exemplo, algo que deve incomodar-lhes (claro que isso é muito abstrato), a fantasia dos garçons. Semana passada eles estavam trajados à la prostitutas coreanas de terceira. Não me impressionar com tais situações nefastas não me faz um indivíduo pior do que vocês, aliás, sou um sujeito de bom caráter, de acordo com as convenções da sociedade.

A razão para o meu desencanto diante dessa realidade assombrosa está mesmo na lógica da minha própria constituição, a matéria que me foi oriunda. Sou talvez o único ser que tem a consciência da própria procedência estrutural, não histórica (destituído de passado se não esse que vos relato no presente momento). Um santo solitário. O que se sucederá não cabe inteiramente à mim, mas às vicissitudes de cartolas alheias à minha gestação e meu ventre psicodélico. Sou um misto de caracteres, eletricidade, dispêndio ocioso, o que quer que seja... Mas, tenho cheiro, tenho carne, sou tão humano quanto o pai que acabara de defecar a sua própria filha em um processo digestivo ultra-rápido em meio a um congestionamento em ebulição. Absurdo é ser, meus caros. Não quero me portar como um "Senhor M" ou algo do tipo, mas todo o resto é puro ilusionismo barato.

I.B.