sexta-feira, 31 de outubro de 2008

O Legado



Não era dia nem noite. Um momento cinzento que, em sua brevidade, parece eterno. Um momento que, de tão efêmero, merece ser traduzido numa tela estática e inanimada que, paradoxalmente, tenta imitar a vida na sua dinamicidade letárgica. Um momento cujo peso tudo comprime: Corpo, Coração, Alma, Nada.

Mirava o canto mais escuro da sala, onde um vulto negro ia e vinha, no balanço lento e hipnótico de sua cadeira. Naquela claridade escura dois olhos que mais pareciam abismos vazios e sem vida me retornavam o olhar que eu insistia em desviar. Olhos que não mais expressavam que o próprio Vazio e Morte inscritos em sua Alma.

Era Medo o que eu sentia, era a Morte, era o Vazio. Porém, mais que tudo, era preciso coragem para senti-lo, ao invés de simplesmente tentar fugir àquelas sensações. Aquele olhar se derramava sobre o meu Corpo, sobre o meu Coração, sobre a minha Alma, sobre o meu Nada, mais pesado que a atmosfera do instante. Aquele olhar me comprimia, me espremia, até retirar de mim toda a minha essência, como a torcer um pano molhado para retirar-lhe a água, violentamente roubando-me de mim:

"Tudo isso que estou a te tomar, Menino, jamais foi seu. Apenas recupero o que sempre foi meu, e sempre será."

Assim, despido, hipnotizado, amedrontado, absolutamente esquecido dos brinquedos que estavam dispostos no chão a minha frente e, por fim e por último, sentindo-me um bravo, permaneci sentado, fitando, e não fitando ao mesmo tempo, aquele que me olhava com um olhar distante, como se capaz de atravessar a minha Alma, o meu Pai.

Lentamente, dramatizando cada momento, pensando cada milímetro de seu movimento, levou a mão ao bolso. Nem por um segundo sequer aliviou o peso dos seus olhos sobre mim. Nem por um segundo...

O brilho daquilo que lhe saia do bolso destoava de tudo o mais na sala. Era uma perturbação ao cinza do ambiente. Sua luz preenchia o Vazio que ali se havia instalado. Era Vida num reino de mortos. No entanto, como uma ponta amarga no fim de um longo gole do mais doce vinho, algo me incomodava. E a fonte do meu incômodo não era senão aquele objeto.

Ao abri-lo, parecia martirizar-se. Parecia doer-lhe aquele gesto, contudo, não o interrompia. Ao ver o artefato dourado suspenso por uma corrente, seguro na mão do Pai, senti-me eu também atado a grossos e inquebrantáveis grilhões. Senti-me eu também enredado por aqueles dedos poderosos, que me prendiam, tal cadeia das mais fortes barras, e não me deixavam livre sequer o pensamento.

"É hora, meu filho".

Uma voz surpreendentemente leve, suave e doce ressoou na sala, vinda de algum ponto fora daquele corpo endurecido, vazio, sofrido... morto.

O olhar finalmente se desviara. Porém, não me sentia mais leve do que antes. Todo aquele peso viria de mim?

Senti um fio de vida deixar aquela sala pela porta dos fundos, como um invasor que se sabe indesejado. Fui até o Pai. Ele já não estava ali. Pelo menos, não mais estavam ali seu Coração, sua Alma, apenas um Corpo repleto de Nada.

Seu corpo já começava a apodrecer. Um fedor de morte, de não-vida, exalava de onde antes Nada existia. Quando principiava sua inexistência, foi que o Pai nasceu: de um grande Nada, tornou-se um algo, um fedor podre de morte.

O artefato luminoso, senti-me compelido a agarrá-lo. Um Relógio, nada mais. Um Relógio que, fatalmente, em algum momento do passado, quedou a marcar uma única hora, sem jamais mover seus ponteiros: a hora da morte do meu pai, exatamente.

Súbito, ao meu toque, girou em segundos o que não girara em décadas. Parou. Marcava nova hora. Em uma explosão de entendimento, percebi que ali estava selada a hora da minha própria morte. E, com uma compreensão que, agora sei, me veio cedo demais, antevi os restantes dias da minha vida. Dia após dia, como meu pai, esperaria pela hora da minha morte. Dia após dia, miraria o relógio exatamente naquele momento, tentando surpreender a vida que me deixava furtivamente. Dia após dia, viveria o meu último dia somente para ter a certeza de que a agonia de viver ainda não me deixara.


P.M.

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