Mais um dos meus amigos faleceu,
acredito que na manhã deste dia 30 de Maio de 2013. Não tenho tanta certeza
deste fato porque ele morreu só e não havia testemunhas. Mas, seu corpo
desfalecido conservava a tranquilidade de alguém que estava simplesmente
dormindo, se não fosse pelos seus olhos abertos e opacos que denunciavam o seu
destino. Seus olhos expressavam uma melancolia tamanha que me fizeram
compreender o que se passava em seu leito de morte. Ainda havia um pouco de
calor que era emitido de seu estômago enfermo, uma das razões de seu fatídico
revés. Eu ainda assobiava para ele e dava-lhe afagos em sua cara sem vida. Meu
pai cavou uma vala funda para repousar os seus restos e o jogamos como se fosse
um saco de batatas podres... aquelas perninhas magras e aquele focinho que
outrora vivia úmido e cheirando coisas, inclusive a minha pele quando voltava
de viagens longas ou simplesmente aquelas que depositam muitos aromas distintos
em nossas roupas. Um dos meus mais valorosos amigos, que sempre me visitava
durante o meu sono representado de múltiplas formas e transmitindo múltiplas
mensagens, pois fora daí para ele era impossível se comunicar comigo além de
pedir comida, água, afagos, companhia. Sempre balançando o seu rabo peludo e
frenético de boca sempre aberta expondo a sua língua proeminente e de certa
forma introvertida, pois ele diferente dos outros de sua espécie não tinha o
hábito de lamber. Também não me recebia com saltos e patadas sujas sobre o
peito, isso só acontecia ocasionalmente. Ele se contentava apenas em deitar ao
lado de alguém ou ficar no quintal espiando pela porta quando esta estava
aberta. Caso contrário, se erguia sobre as cinco janelas que o separavam de
dentro de casa e nos observava ou pedia alguma coisa nem que fosse para abrir a
porta: “ei, estou aqui”. Nos últimos dias ele regurgitava todo o alimento que
ingeria e silenciosamente sentia dores em seus quartos idosos de uma década de
existência. Sinto-me como um vampiro enquanto escrevo, aprisionado na condição
de ter que passar por várias eras e me contentar com todos os que morrerão a
minha volta enquanto eu permaneço ileso. Nós somos imortais enquanto os cães
despencam sobre o solo rígido de nossas moradas de concreto. Ele chegou lá em
casa quando eu tinha 15 anos, ele era um bebê agitado e inofensivo e uma década
se passou e nada mudou. O meu amigo mais prestativo, o que se atirava para
frente dos lugares antes que eu chegasse para ver se estava tudo bem, o que
guardava o meu sono com um senso de dever e responsabilidade invejáveis. Há
dois dias atrás eu tive pesadelos sobre a dor que ele sentia e acordei
transtornado. Eu sabia que ele ia morrer em questão de dias e o deixei na casa
da praia sem saber que esse dia seria o último que eu o veria em vida. No
caminho, dentro do carro, nós tivemos o último contato corporal e íntimo. Eu o
segurava no banco de trás como sempre o fazia quando o transportava de carro
para algum lugar e lembro que ele deitou sobre meu colo e senti amor naquele momento,
senti conforto e calma e ali ele permaneceu até voltar ao seu alvoroço e
ansiedade comuns de querer olhar para tudo e chegar logo a algum lugar. Desci
do carro enquanto meu pai abria o portão e o deixei sair para onde quisesse.
Estava livre. Havia alguns cachorros curiosos, mas ele sempre me pareceu
indiferente aos outros de sua espécie. Sua relação com os outros era de puro e
genuíno desinteresse, mas eu desconfiava que ele fosse simplesmente muito
tímido. Esquentei a sua comida com água quente, pus água em sua tigela e no
outro dia voltaria e faria a mesma coisa e ele sabia disso, pois sempre quando
eu me despedia ele permanecia no mesmo lugar e me recebia no mesmo lugar. No
início da varanda perto da torneira. Meus pais foram levar-lhe a comida nesta
manhã e me informaram sobre o fato de ele ter vindo a óbito. Nessas horas, só
pensei em que tipo de dor ele deve ter sofrido. E talvez, maior do que o seu
estômago vazio e cáustico e seus ossos doloridos que faziam com que levantar-se
de um agradável sono de fim de tarde se tornasse um esforço hercúleo, morrer só
tenha sido o maior castigo que ele poderia ter tido. Longe de todos aqueles que
o amavam e de todos aqueles que ele protegia com seus dentes ferozes. Se não me
engano, foi Tolstoi quem disse que a felicidade só é plena se compartilhada e
os cães são a prova disso. Sempre balançando os seus rabos não importa o que
tenha acontecido. O mesmo vale para a dor, a tristeza... Ela só mingua se
compartilhada, ela se torna suportável. A solidão é anti-natural e isso é
facilmente verificável quando observamos fenômenos naturais e sociológicos. A
solidão é a estrada para a morte. Sempre ouvi dizer que os cães quando estavam
diante da própria morte se afastavam e morriam solitários. Mas, ele, Chatran,
se recusou a morrer como um cão. Seu corpo sem vida jazia no mesmo lugar em que
eu me despedia dele sempre que o deixava na casa da praia, no mesmo lugar em
que ele me aguardava quando eu regressava para dar-lhe o que comer. Havia
vestígios de que ele havia estado em outros lugares na casa, mas ao que me
parece, o início da varanda era um local importante para ele. Simbolizava
esperança, dever talvez. Esperou pacientemente o momento em que ele poderia
balançar o seu rabo mais algumas vezes.
Chatran* 22 de Fevereiro de 2002 - 30 de Maio de 2013