terça-feira, 5 de outubro de 2010

Vinho, vodka, cigarros e sanduíches a fazer

Era bem tarde e o amigo que estava sentado comigo bebendo umas garrafas de vinho vagabundo, vodka e alguns cigarros de um maço amassado já havia ido embora há algum tempo. Só sobrou uma última garrafa de vodka. Barata. Fiquei sentado na escadaria de um teatro abandonado, que é de frente para uma avenida freneticamente movimentada nos horários de pico, apenas para sentir a brisa noturna. Os ares da noite sempre nos confortam com uma breve promessa de que o calor abafado tropical da manhã seguinte não nos incomodará. Já era hora de ir, acho que para pegar o último ônibus, mas eu esperei.

Esperei por que quis esperar, aquela coisa meramente animalesca de fazer por fazer, por que é assim que nós somos. Ignorei a "última chamada" do ônibus da meia-noite sem nenhuma razão aparente. E é assim que somos, como qualquer animal, só que temos a capacidade fantástica de justificar. Pra isso criamos histórias coerentes com a nossa razão. Com o tempo botamos aquela merda toda em uma porção de registros humanos e blá blá blá. Agora temos bíblia, leis e livros de auto-ajuda. Somos mestres para o ato de justificar-nos quando na verdade a gente num sabe de porra nenhuma. Bom, descobri mais tarde o porque de ter esperado. Sem saber, por obra do cosmo ou algo tão soturno quanto, o que eu realmente esperava era uma boa história que estava prestes a acontecer ali na minha frente. Daquelas sem razão, daquelas que independem da compreensão racional e baseada na repetição de fatos e verdades óbvias para o nosso completo entendimento. Afinal, só entendemos o que sabemos. Se não entendemos, não precisamos ouvir. Se tentarmos entender, será óbvio. Óbvio, ovo. Ovo óbvio (sic).

Mal percebi uma confusão que surgiu aparentemente do nada no meio da avenida. Havia uns cinco sujeitos cercando um rapaz baixinho de porte atlético e eles estavam literalmente se quebrando. Mais precisamente, tentando arrebentar as fuças, as costelas, crânio e o caralho do sujeito baixinho. Para minha surpresa não estavam conseguindo. Ele se esquivava e usava latões de lixo, paredes e até os próprios perseguidores para se defender e evitar as duras pancadas. Depois ele partiu para uma estratégia mais agressiva. Começou com um carequinha de barba mal-feita e meio pançudo. Abri o dicionário como faço toda manhã antes de dar uma bela cagada e mirei a palavra descomer. Descomer é a mesma coisa que expulsar os alimentos pelo ânus, defecar. Cagar. Uma coisa que sem dúvida seria dolorosa para o sujeito que sem ter tempo para reagir à investida do baixinho, recebeu a mesma garrafa de vinho que eu havia tomado e jogado em qualquer canto por ali horas antes bem no cu. Ela se espatifou e com o resto despedaçado dela, o "pequenino glutão" desferiu um golpe bem na barriga gorda do infeliz.

Os caras finalmente conseguiram cercá-lo e começaram a encher o "exército de um homem só" de porrada. Era muito soco e ponta-pé. O pequeno conseguiu se agarrar no pescoço de um e cravou os seus dentes nele. Uma gritaria infernal escorreu goela abaixo do agressor. Chegava a ser engraçado como um filme de Tarantino. Era muito sangue, muita violência e eu estava bêbado. A briga foi se arrastando de um lado para o outro, dois homens estavam agonizando no chão e aquele bolo de pessoas em frenesi se movia de um lado para o outro em um bailar quase premeditado. Como um balé insistentemente ensaiado até beirar à perfeição. E a música. Oh, mas que música ressoava daquele bando de filhos duma puta. A respiração ofegante, o som de costelas se partindo no meio, a lama sangrenta vomitada em direção ao asfalto morno, os dentes tilintando no asfalto com um som oco e praticamente imperceptível, maxilares deslocados. As navalhas! Já ia me esquecendo, não sei de onde surgiram, provocavam um som gasturento. Era pior do que arrastar as unhas em uma lousa. Rasgava não só a carne daqueles viados, rasgava a minha tranquilidade em ver aqueles artistas selvagens se apresentando naquele palco a céu aberto estocando aquelas lâminas no couro anelante. Acho que até gritei pra que eles parassem, mas não me deram ouvidos. O bom artista nunca cede. Genuíno demais! Ali era a peça da vida em sua forma mais crua e verdadeira. O embate desesperado entre a vida e a morte. E a morte, meus caros, nunca perde uma luta, apenas adia o veredicto.

Debaixo de toda aquela carne moída, eis que surge o sujeito baixinho. Todo melado, coberto de sangue, filé e a porra toda. Levantei o meu braço direito empunhando a garrafa de vodka que estava há um terço do final e ele veio até mim. Bebeu tudo e nem deixou um gole, depois meteu uma garrafada na minha cabeça. Pelo menos eu caguei direitinho na manhã seguinte.

I.B.


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