quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O monstro do lodo


O monstro do lodo

À sombra daquelas altas falésias, o mar roçava os pedregulhos da praia e a espuma se desfazia lentamente na areia como um sonho fugidio. Foi assim que o sujeito desleixado despertou na madrugada daquele dia. Já havia se acostumado com o cheiro de poeira, mofo e abandono no qual aquela casa cheia de aposentos inabitados havia se perfumado. Já nem lembrava a última vez que outra pessoa deitou sobre aqueles colchões vazios de quartos sem dono. Só havia ele e a madeira que compunha a residência, estalando o tempo todo mastigada por cupins. Mas esses insetos estavam particularmente calmos nesses tempos. Era quase como se não quisessem mais ser notados. Até mesmo as baratas se escondiam em qualquer brecha nas paredes e no piso sem se revelar nem mesmo nas horas mais seguras e brandas da calada da noite para os seus furtos suculentos.

Como eu poderia esquecer do lixo e de toda aquela sujeira encardida e tingida em cada parede, chão, mobília? Bastava esboçar uma idéia sobre a fachada da casa e aquilo invadia os meus pensamentos. Como poderia deixar de mencionar que o sujeito largado em um colchão velho e surrado passava o tempo pintando com os seus dedos desgastados de estarem tanto em contato com as cores tóxicas enxaguadas pela tinta? Era esse o estado tanto da casa quanto do rapaz, estavam banhados num total ostracismo higiênico de ordem material e imaterial.

A imundície havia conferido uma aparência diferenciada a todo organismo e objeto que compartilhava daquele espaço, uma personalidade adquirida com o passar do tempo, com o passar dos pratos sujos negligenciados. Era da cozinha que emanava o aspecto mais marcante daquele ambiente mal cheiroso. Acredito que a essa altura o próprio lodo que germinava daquela pilha de pratos e panelas e comida velha e podre por sobre a pia, já havia sido abençoado com vida inteligente em um processo acelerado que ao invés de ter durado milênios, só precisou de alguns meses (Darwin e Oparin se sentiriam envergonhados nesse momento). Talvez, até mesmo um sistema político já pudesse estar em curso, uma colônia de seres que foram gerados da porcaria.

A fecundação do derradeiro e mais repugnante ato dos processos biológicos começa com a ação de comer. A inoculação do germe disfarçado em aromas e sabores que instigam o nosso apetite e saciam a fome e também o espírito de alguns poucos afortunados está inexoravelmente associada a uma cozinha no mundo contemporâneo. No final só resta uma matéria morta habitada por vermes decrépitos fervilhando orifício afora. O próprio banheiro daquela morada nem se compara no que se refere ao fedor e ao incômodo visual. Presenciar aquilo era pior do que ver bosta. Era como deglutir fezes no almoço em um dia bastante quente e incômodo. Nem o ato de se alimentar era agradável nessa casa. A cozinha estava com preguiça e literalmente pegou um atalho para o sanitário. Quando desaceleramos o carro para testemunhar um acidente, é como se estivéssemos nos certificando de que não somos nós ali estatelados no asfalto, como diria Neil Gaiman, ou de que não deveríamos estar ali naquelas condições ou simplesmente por que é deveras interessante ver a morte que nos ronda a todo o momento estampada em outras caras. A cozinha é a afirmação da merda que negamos para nós mesmos e aquela em particular refletia esse ponto de vista. Comer é cagar.

O repetido tilintar de pingos de torneira retumbando nos pratos e panelas ressoava irritante cozinha afora por todos os aposentos. Mas o que fez o sujeito relapso interromper o seu sono de litorais paradisíacos foi um barulho quase mudo de algo se remexendo no saco de lixo que ficava debaixo da pia. “Deve ser um rato”, disse para si mesmo enquanto limpava a remela de seus olhos e acariciava a parede onde havia escrito um pressagioso poema em prosa incompleto para a “menina dos seus olhos” que o deixou cego de amor por vários verões quando se despediu brutalmente de sua vida:

“Sua língua é uma constritora que se enrosca em minha mandíbula com a face apontada para os meus olhos submissos. O estalar dos ossos é um sinal para que a sua boca engula o meu crânio despedaçado. E de dentro da sua barriga reerguerei da minha casca idosa, desafiarei a morte como uma fênix e também dançarei nas chamas como um demônio travesso. Logo, te cobrirei como um casulo intumescido. Deixarei a chuva me lavar e quando o sol me desfizer como uma folha seca, uma brecha se pronunciará e você deslizará por sobre as flores como uma rainha recém-nascida. Até que o vento assopre suas asas embora e eu recolha sua matéria morta para os meus túneis cálidos...”

Ainda lembrava-se de uma história melancólica que ela havia sussurrado em seu ouvido sobre o amor do céu e do sol. Daquelas que são contadas por vozes melodiosas como se fossem cantigas. Daquelas que começam sem um começo e acabam sem um final. O sol havia desaparecido e os dias se tornaram nebulosos e amontoados de nuvens no dia seguinte. O céu não cessou de chorar por dias incontáveis, isso na aurora dos tempos. Quase não havia luz e calor, só o negrume da noite e o frio úmido de chuvas torrenciais. Oceanos e rios brotaram dessa era triste e lamuriosa. Um dia, o céu decidiu parar de chorar e para a sua surpresa, avistou o sol incólume na vastidão do espaço. “É preciso desobstruir o céu nublado para que paremos de chorar”, a moral seria algo desse gênero se é que havia alguma intenção naquelas palavras.

Dias e mais dias se passavam e em todas as madrugadas sem exceção, aquele barulho escapava pela cozinha interrompendo o sono do sujeito relapso. O barulho de algo se esperneando no saco plástico dentro do lixeiro congestionado se tornou um hábito tal, que o sujeito já o havia ignorado. Mal dava atenção ao fato de aquilo estar acontecendo com mais freqüência e até mesmo durante o dia. Também não lembrava a última vez que havia se sentado para comer na cozinha ou lavar pelo menos um copo para beber água. Se havia ratos perambulando livremente pela casa ele não estava dando à mínima. Pelo menos havia companhia naquela casa grande e vazia. Já que os cupins e as baratas decidiram tirar férias daquele lugar emporcalhado, o que era estranho, pois em dias comuns esse seria o próprio paraíso para os insetos carniceiros. Há alguns meses moscas e formigas também já não eram mais vistas por lá. O que ele não sabia é que na verdade esses bichos fugiram da casa, fugiram de medo. Era sufocante para eles suportar aquele fedor exótico proveniente daquela pia enlameada de lodo cáustico.

Toda a cozinha agora tinha esse bafo monstruoso que se tornou o próprio cheiro do rapaz e se atirava em todas as direções num raio de vários metros até mesmo fora das dependências da residência. De alguma forma inexplicável o rapaz era tão despreocupado e indiferente àquilo que pouco fazia diferença. Não havia percebido que o cheiro havia moldado a sua própria aparência de uma forma tão eficaz que se uma pessoa o visse por acaso, o confundiria com um monte de merda cagado repetidas vezes pelo mesmo ânus infeccionado de tanto defecar. Uma diarréia humanóide, sem exageros. Só percebeu a gravidade da situação quando enfim foi passear pela cidade depois de muitos dias de enclausuramento naquela masmorra. Os animais não se aproximavam de sua pessoa e algumas pessoas tiveram acessos de nojeira tão profundos que vomitaram umas às outras. Repulsa física no grau mais absurdo que se possa ter noção. “Basta”, disse para si mesmo.

Entrou na cozinha empunhando uma garrafa plástica de água sanitária em uma mão e na outra um facão que ele usava para se defender de cobras e outros animais quando resolvia acampar. Não sabia ao certo o porquê de ter levado aquele facão, foi mais uma atitude impulsiva, instintiva, auspiciosa. O lugar estava mudado. Era como se um nevoeiro houvesse fincado uma bandeira naquela cozinha declarando abertamente o seu domínio, como em um terreno onde as brumas assolam com eventos sombrios e histórias soturnas. Estava morno lá dentro e algo parecia borbulhar das panelas sobre a pia. Sua pele começou a coçar e seus olhos lacrimejavam em ardentes salpicos de vapor mal-cheiroso.

Enquanto jogava água sanitária e bactericida para esterilizar aqueles azulejos vestidos com uma gosma cinzenta e esverdeada, o saco de lixo se sacudia em reprovação àquela ofensa à imundície. O pavor tomou conta do sujeito relapso, mas ele caminhou cuidadosamente até o lixeiro. Tinha certeza de que havia algo se esgueirando por ali, o observando, e não era um rato. Mirou aquele bolo de lixo e até conseguiu reconhecer uma lasanha quase secular que havia jogado pela metade no topo daquela massa quase uniforme de refeições desperdiçadas. Sentiu nostalgia, uma sensação familiar e quase tão pesada quanto o amor. Esqueceu do perigo iminente perdido em memórias tenazes de uma discussão sobre uma refeição pré-pronta. De repente, um braço magricelo e peludo com garras afiadas se atirou de dentro do monturo e agarrou firmemente o pulso armado do rapaz distraído.

Um combate violento se desenrolou. A prataria se espatifava, talheres fincavam nas paredes que escorriam um líquido tão consistente quanto melaço, armários despencavam, a despensa se quebrava e o sujeito relapso lutava desesperadamente por sua vida contra aquele homúnculo esquisito e asqueroso que estava hospedado sob a pia da sua cozinha. Conseguiu se desvencilhar daqueles braços tão maleáveis quanto tentáculos e despejou todos os produtos de limpeza que encontrava espalhados pela casa sobre a torpe criatura. Mal havia notado que seu braço pendia sem vida devido ao ataque fulminante do monstro do lodo. Estava bastante escoriado e encontrava-se no chão enquanto a criatura caminhava enfraquecida devido aos produtos desinfetantes, em sua direção. Estava determinada a tomar conta daquele lugar. Para isso deveria exterminar o seu último morador.

O duende abissal expressou um sorriso tão sublime quanto um esboço de algo que o próprio Satanás faria quando se deparasse com a vitória quase certa sobre Deus. Uma felicidade tão eminente que estaria consequentemente à sombra de um vazio autodestrutivo. Estava tão entretido na véspera daquele evento tão assustador quanto sedutor, que mal percebeu os potes de tinta que o sujeito relapso e abatido arremessou em suas órbitas e focinho. Um uivo lancinante se projetava de algo semelhante a uma garganta e o sujeito aproveitou o momento para desferir-lhe um golpe com um rodo que estava encostado ali em algum lugar. Atacou furiosamente até que só restasse uma poça de lodo mutilada. Despencou exausto no chão e em meio a vários pensamentos do tipo “preciso de um balde, uma vassoura”, “como poderei pintar com um braço inútil?”, ele percebeu que antes de mais nada precisava de um banho.

Para Igor e para Lara Celi, por Igor Bacelar

Arte de Dave Mckean

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Vinho, vodka, cigarros e sanduíches a fazer

Era bem tarde e o amigo que estava sentado comigo bebendo umas garrafas de vinho vagabundo, vodka e alguns cigarros de um maço amassado já havia ido embora há algum tempo. Só sobrou uma última garrafa de vodka. Barata. Fiquei sentado na escadaria de um teatro abandonado, que é de frente para uma avenida freneticamente movimentada nos horários de pico, apenas para sentir a brisa noturna. Os ares da noite sempre nos confortam com uma breve promessa de que o calor abafado tropical da manhã seguinte não nos incomodará. Já era hora de ir, acho que para pegar o último ônibus, mas eu esperei.

Esperei por que quis esperar, aquela coisa meramente animalesca de fazer por fazer, por que é assim que nós somos. Ignorei a "última chamada" do ônibus da meia-noite sem nenhuma razão aparente. E é assim que somos, como qualquer animal, só que temos a capacidade fantástica de justificar. Pra isso criamos histórias coerentes com a nossa razão. Com o tempo botamos aquela merda toda em uma porção de registros humanos e blá blá blá. Agora temos bíblia, leis e livros de auto-ajuda. Somos mestres para o ato de justificar-nos quando na verdade a gente num sabe de porra nenhuma. Bom, descobri mais tarde o porque de ter esperado. Sem saber, por obra do cosmo ou algo tão soturno quanto, o que eu realmente esperava era uma boa história que estava prestes a acontecer ali na minha frente. Daquelas sem razão, daquelas que independem da compreensão racional e baseada na repetição de fatos e verdades óbvias para o nosso completo entendimento. Afinal, só entendemos o que sabemos. Se não entendemos, não precisamos ouvir. Se tentarmos entender, será óbvio. Óbvio, ovo. Ovo óbvio (sic).

Mal percebi uma confusão que surgiu aparentemente do nada no meio da avenida. Havia uns cinco sujeitos cercando um rapaz baixinho de porte atlético e eles estavam literalmente se quebrando. Mais precisamente, tentando arrebentar as fuças, as costelas, crânio e o caralho do sujeito baixinho. Para minha surpresa não estavam conseguindo. Ele se esquivava e usava latões de lixo, paredes e até os próprios perseguidores para se defender e evitar as duras pancadas. Depois ele partiu para uma estratégia mais agressiva. Começou com um carequinha de barba mal-feita e meio pançudo. Abri o dicionário como faço toda manhã antes de dar uma bela cagada e mirei a palavra descomer. Descomer é a mesma coisa que expulsar os alimentos pelo ânus, defecar. Cagar. Uma coisa que sem dúvida seria dolorosa para o sujeito que sem ter tempo para reagir à investida do baixinho, recebeu a mesma garrafa de vinho que eu havia tomado e jogado em qualquer canto por ali horas antes bem no cu. Ela se espatifou e com o resto despedaçado dela, o "pequenino glutão" desferiu um golpe bem na barriga gorda do infeliz.

Os caras finalmente conseguiram cercá-lo e começaram a encher o "exército de um homem só" de porrada. Era muito soco e ponta-pé. O pequeno conseguiu se agarrar no pescoço de um e cravou os seus dentes nele. Uma gritaria infernal escorreu goela abaixo do agressor. Chegava a ser engraçado como um filme de Tarantino. Era muito sangue, muita violência e eu estava bêbado. A briga foi se arrastando de um lado para o outro, dois homens estavam agonizando no chão e aquele bolo de pessoas em frenesi se movia de um lado para o outro em um bailar quase premeditado. Como um balé insistentemente ensaiado até beirar à perfeição. E a música. Oh, mas que música ressoava daquele bando de filhos duma puta. A respiração ofegante, o som de costelas se partindo no meio, a lama sangrenta vomitada em direção ao asfalto morno, os dentes tilintando no asfalto com um som oco e praticamente imperceptível, maxilares deslocados. As navalhas! Já ia me esquecendo, não sei de onde surgiram, provocavam um som gasturento. Era pior do que arrastar as unhas em uma lousa. Rasgava não só a carne daqueles viados, rasgava a minha tranquilidade em ver aqueles artistas selvagens se apresentando naquele palco a céu aberto estocando aquelas lâminas no couro anelante. Acho que até gritei pra que eles parassem, mas não me deram ouvidos. O bom artista nunca cede. Genuíno demais! Ali era a peça da vida em sua forma mais crua e verdadeira. O embate desesperado entre a vida e a morte. E a morte, meus caros, nunca perde uma luta, apenas adia o veredicto.

Debaixo de toda aquela carne moída, eis que surge o sujeito baixinho. Todo melado, coberto de sangue, filé e a porra toda. Levantei o meu braço direito empunhando a garrafa de vodka que estava há um terço do final e ele veio até mim. Bebeu tudo e nem deixou um gole, depois meteu uma garrafada na minha cabeça. Pelo menos eu caguei direitinho na manhã seguinte.

I.B.


sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Supernova




Era um dia agradável de uma estação primaveril. Um belo casal passeava por colinas raramente visitadas em dias que não fossem sábados ou domingos. Nessa época, todas as flores desabrochavam e o céu despertava com um tom róseo delicado todas as manhãs. Era um vasto jardim semeado por pássaros e pequenos insetos, cortado por pequenos córregos e habitado por lebres acanhadas e quase invisíveis. Vinham ali com certa freqüência para repousar o espírito e silenciar o alvoroço das frivolidades cotidianas. Costumavam fazer amor e não dizer nada por longos períodos, apenas se abraçavam e entretinham os seus ouvidos com o chacoalhar da relva provocado por ventos brandos, a carne acariciada no âmago por suas peles nuas cheirando levemente a suor mesclado com pólen e terra úmida.

Presenciaram por incontáveis noites o céu se encher de estrelas e ocasionalmente algumas delas se atirarem sem aviso, de um lado para o outro, rompendo o seu piscar letárgico. E pensar que todo aquele céu, coalhado de estrelas, é apenas um reflexo de uma época que não mais existe. Um reflexo do passado composto por estrelas mortas. Nossos olhos encaram um gigantesco e maravilhoso universo com lentes ingênuas e imprecisas e ainda assim nos admiramos, ainda assim nos é imensamente belo. Geralmente eles apontavam para aquela vastidão misteriosa e sorriam, ás vezes choravam. De alguma forma esse estado de paixão e amor intenso os aproximava de um espírito comum a todos os seres sensíveis, os aproximava daquele segredo miraculoso que nos fascina tanto quanto as serpentes que são encantadas por domadores do oriente, seduzidas por um ritmo freqüente e irrecusável. Hipnotizados por uma pergunta sem resposta ou resposta sem pergunta, pelas questões essenciais desse processo todo.

Imagine-se sentado em um assento de um teatro lotado onde os cenários são o palco indefinível e negro das vastidões do universo e o elenco as estrelas que enfeitam e dão vida e sentido ao vazio ou o contrário ou nada disso. Você, como espectador, define a peça que se desenrolará? Ela acontece para você ou você que acontece para a peça? Certamente não faria muito sentido uma trupe se apresentar para ninguém, claro que não da mesma forma que se você fosse ao teatro para assistir a nenhum espetáculo. Mas, no momento que todos esses elementos estão no palco, na platéia, no presente e exato momento desse acontecimento, alguém poderia me dizer se há como discernir a importância de cada elemento daquele fato no espaço-tempo? A participação de cada um é óbvia e clara. Mas, por mais que um brilhe mais do que o outro, por mais que um seja “mera” criação inorgânica da criatividade do artista em papelão e papel crepom, por mais que um dê palpites inoportunos sobre a performance de fulano e sicrano, só há um único e complexo organismo chamado “espetáculo gratuito para incentivo à cultura” ou qualquer outra alcunha. Quando olha para o céu estrelado não consegue ver nada disso além de um ponto luminoso e desconhecido na escuridão pontilhada. Para o casal de amantes nada disso acontecia em seus devaneios mudos, era tudo um profundo e inescrutável oceano onde o belo se apresentava em seu aspecto mais extremo e divino. 

Certo dia, tudo acabou. Encaminhou-se ao necrotério completamente chocado e aflito. Saiu cambaleante e catatônico, em frangalhos. Reconhecera o corpo que para outros era irreconhecível. Verificou uma verruga em suas partes íntimas, praguejou para si mesmo de que não encontraria nada de familiar naquele cadáver que de nada tinha em comum com a mulher que ele devotou os seus dias mais felizes de uma breve e agora penosa vida. A família se encarregou de levá-lo e resolver os assuntos burocráticos daquela tragédia fatídica. O homem não fazia idéia para onde ir, o que fazer, o que falar (se é que se fala algo em um momento como esses), e por pouco não sabia mais como respirar com os pulmões que ele convive desde que nasceu. Nada fazia sentido algum, nem o sentido fazia mais sentido. O homem foi consumido por um buraco existencial que se alojou em seu pequeno ser, por vezes tão grande. Não derramou nenhuma gota de lágrima nesse dia.

No dia do velório o caixão estava lacrado e ele não suportaria ver aquele ser deformado uma vez mais. As pessoas vinham e iam com votos de condolências, oras vazios, oras realmente deprimidos, mas eram invariavelmente as mesmas palavras. Palavras, que nesses dias permaneceriam em desuso quase religioso por parte do pobre rapaz. Ele estava transtornado, mas não havia lágrima, não havia sequer expressão, frio e calmo como mármore. Isso incomodava as pessoas de alguma forma, mas ninguém ousava dizer algo sobre o assunto. As reprovações eram subliminares, mas estavam lá. Tinham medo do silêncio, pois estavam habituados demais aos sinais e signos, às provas do crime e do pecado, provas de amor. Ele, o rapaz, fez questão de cavar a cova e enterrar aquele lembrete vil, confinado por uma urna de madeira maciça, de sua bela amada que morrera dolorosamente por mãos assassinas. O que restara daquela carcaça em decomposição eram apenas vivas e dolorosas memórias. Foi só, para casa.

Desde o dia do enterro, acordava no meio da noite e dormia muito mal, aterrorizado por pesadelos torpes de um mundo subterrâneo onde o dia não possuía sol e nem a noite tinha uma lua para dar graça àqueles que vagam sob a sua proteção. Abutres, corvos e morcegos compunham a fauna do alto das florestas e cidades, e nas vielas estreitas os ratos dominavam como reis devassos. As pessoas se esgueiravam por becos sorrateiramente e tinham a pele grudada em seus ossos. Eram como defuntos que não querem ser descobertos pela profanação de sua teimosia em não trilhar o caminho da morte. Certo dia, ela estava lá, “você me acha suja”? O pobre rapaz era atormentado incessantemente por essas visões durante o seu sono e ele já não mais tinha forças para sair de casa ou se relacionar com as pessoas, tamanha a intensidade dos pesadelos. Os pesadelos se utilizavam sagazmente dos seus medos e nojos, de cada cor que o fazia sentir-se desconfortável, monstros repugnantes, episódios obscenos e a sua amada aparecia cada vez com mais freqüência. Um dia, uma idéia se apossou de sua cabeça. Em um sonho essa tal idéia até o fez literalmente. Devo admitir que fora uma cena interessante, até engraçada, apesar dos berros de pavor - desculpem-me pela intervenção desnecessária. 

O jovem estava diante da lápide sobre o local onde havia sepultado o ataúde onde se encontrava a sua jovem esposa. Cavou incansavelmente em direção ao seu corpo que já deveria estar pútrido e sendo por sua vez devorado por vermes decrépitos. A cova parecia não ter fim e ele cavou, e cavou, e cavou, e cavou rumo ao abismo, ao outro lado, aos domínios daqueles que não mais sentem os prazeres da vida. Lá estava a cidadela dos seus pesadelos, adornada por gárgulas em seus sujos edifícios antigos cheios de limo. Era noite, mas não havia lua ou estrelas assim como em suas visitas anteriores durante o seu sono. Uma névoa densa, quase sólida, habitava toda a extensão daquelas construções góticas e abandonadas. Vez ou outra via-se um morto-vivo perambulando indiferente e desinteressado, entrando e saindo por portas ruidosas de madeira velha. Os abutres estavam à espreita, no topo de torres de concreto e telhados esburacados. Enquanto caminhava, o rapaz avistou um velho sentado em um banco de praça jogando comida aos corvos como se fossem pombos. Eram dedos humanos que jogava como se fosse alpiste. Depois de muito tempo sem pronunciar alguma palavra, o rapaz achou conveniente indagar em voz alta o seu recente estado de confusão para o seu “anfitrião (?) por necessidade”.

- O que faz aqui? – perguntou hesitante, o jovem.

-No momento, estou alimentando os passarinhos – respondeu preguiçosamente, o velho.

-Onde estamos?

-Não sei exatamente que lugar é esse. Há muitos anos eu vim parar aqui, minhas costas nem eram encurvadas e meus cabelos nem ameaçavam ficar grisalhos.

-Uma coisa eu tenho convicção. Não estamos mortos, estamos? Ou sonhando? Isso é real.

-Você é o primeiro como eu que vejo em anos. As únicas coisas que respiram por aqui são os pássaros carniceiros e roedores. A princípio eu não simpatizava muito com eles. O segredo é ver pombos no lugar de corvos e preás no lugar de ratos.

-Por que está aqui?

-Nem me recordo mais o que houve e quase nada do que deixei ou foi-me deixado pra trás.

-Muito antes de vir a esse lugar, tudo o que havia em minha vida fora arremessado para trás, para longe de mim, como um saco pesado de batatas podres.

-E você, por que veio parar aqui?

-Talvez, recuperar o que me fora negado. Por que não? – disse com um entusiasmo incomum e lunático.

Vagou como um desbravador pelas ruas lívidas daquele lugar, proibido para os que ainda sorviam da vitalidade, que possuíam um coração que distribuía sangue quente e corrente pelas veias. Se alimentava de ratos, morcegos, urubus e gralhas, bebia água suja de esgoto. Conforme penetrava cada vez mais em direção do coração daquela cidade interminável, uma sensação insistente de que algo íntimo e familiar estava cada vez mais perto o motivava a seguir sempre naquela direção como uma música que pode nos fazer recordar de cheiros, imagens, sensações praticamente tangíveis de nossas lembranças mais recentes, ou lugares revisitados, que nos levam às mais recônditas delas.

Eis que lá estava ela sentada à beira de um mangue lamacento parecido com o que eles foram logo quando se conheceram. “Você é tão suja quanto a lama que nos acalentou os poros em uma outra época há muito esquecida”, disse em prantos. Era pálida, e alva como uma pequena lua terrena em forma de mulher, a perda do calor de seu sangue em seus tecidos não fora suficiente para roubar-lhe a graça de seu corpo. Era tão ou mais linda quanto fora em dias passados, quando havia estrelas palpitando no céu. Pelo menos agora, nesse reflexo distorcido e macabro da vida, não havia espaço para simulacros e ilusões sobre suas cabeças. Sem ludíbrios. Apenas uma vala preenchida de trevas, o negrume absoluto da noite.

I.B.