O monstro do lodo
À sombra daquelas altas falésias, o mar roçava os pedregulhos da praia e a espuma se desfazia lentamente na areia como um sonho fugidio. Foi assim que o sujeito desleixado despertou na madrugada daquele dia. Já havia se acostumado com o cheiro de poeira, mofo e abandono no qual aquela casa cheia de aposentos inabitados havia se perfumado. Já nem lembrava a última vez que outra pessoa deitou sobre aqueles colchões vazios de quartos sem dono. Só havia ele e a madeira que compunha a residência, estalando o tempo todo mastigada por cupins. Mas esses insetos estavam particularmente calmos nesses tempos. Era quase como se não quisessem mais ser notados. Até mesmo as baratas se escondiam em qualquer brecha nas paredes e no piso sem se revelar nem mesmo nas horas mais seguras e brandas da calada da noite para os seus furtos suculentos.
Como eu poderia esquecer do lixo e de toda aquela sujeira encardida e tingida em cada parede, chão, mobília? Bastava esboçar uma idéia sobre a fachada da casa e aquilo invadia os meus pensamentos. Como poderia deixar de mencionar que o sujeito largado em um colchão velho e surrado passava o tempo pintando com os seus dedos desgastados de estarem tanto em contato com as cores tóxicas enxaguadas pela tinta? Era esse o estado tanto da casa quanto do rapaz, estavam banhados num total ostracismo higiênico de ordem material e imaterial.
A imundície havia conferido uma aparência diferenciada a todo organismo e objeto que compartilhava daquele espaço, uma personalidade adquirida com o passar do tempo, com o passar dos pratos sujos negligenciados. Era da cozinha que emanava o aspecto mais marcante daquele ambiente mal cheiroso. Acredito que a essa altura o próprio lodo que germinava daquela pilha de pratos e panelas e comida velha e podre por sobre a pia, já havia sido abençoado com vida inteligente em um processo acelerado que ao invés de ter durado milênios, só precisou de alguns meses (Darwin e Oparin se sentiriam envergonhados nesse momento). Talvez, até mesmo um sistema político já pudesse estar em curso, uma colônia de seres que foram gerados da porcaria.
A fecundação do derradeiro e mais repugnante ato dos processos biológicos começa com a ação de comer. A inoculação do germe disfarçado em aromas e sabores que instigam o nosso apetite e saciam a fome e também o espírito de alguns poucos afortunados está inexoravelmente associada a uma cozinha no mundo contemporâneo. No final só resta uma matéria morta habitada por vermes decrépitos fervilhando orifício afora. O próprio banheiro daquela morada nem se compara no que se refere ao fedor e ao incômodo visual. Presenciar aquilo era pior do que ver bosta. Era como deglutir fezes no almoço em um dia bastante quente e incômodo. Nem o ato de se alimentar era agradável nessa casa. A cozinha estava com preguiça e literalmente pegou um atalho para o sanitário. Quando desaceleramos o carro para testemunhar um acidente, é como se estivéssemos nos certificando de que não somos nós ali estatelados no asfalto, como diria Neil Gaiman, ou de que não deveríamos estar ali naquelas condições ou simplesmente por que é deveras interessante ver a morte que nos ronda a todo o momento estampada em outras caras. A cozinha é a afirmação da merda que negamos para nós mesmos e aquela em particular refletia esse ponto de vista. Comer é cagar.
O repetido tilintar de pingos de torneira retumbando nos pratos e panelas ressoava irritante cozinha afora por todos os aposentos. Mas o que fez o sujeito relapso interromper o seu sono de litorais paradisíacos foi um barulho quase mudo de algo se remexendo no saco de lixo que ficava debaixo da pia. “Deve ser um rato”, disse para si mesmo enquanto limpava a remela de seus olhos e acariciava a parede onde havia escrito um pressagioso poema em prosa incompleto para a “menina dos seus olhos” que o deixou cego de amor por vários verões quando se despediu brutalmente de sua vida:
“Sua língua é uma constritora que se enrosca em minha mandíbula com a face apontada para os meus olhos submissos. O estalar dos ossos é um sinal para que a sua boca engula o meu crânio despedaçado. E de dentro da sua barriga reerguerei da minha casca idosa, desafiarei a morte como uma fênix e também dançarei nas chamas como um demônio travesso. Logo, te cobrirei como um casulo intumescido. Deixarei a chuva me lavar e quando o sol me desfizer como uma folha seca, uma brecha se pronunciará e você deslizará por sobre as flores como uma rainha recém-nascida. Até que o vento assopre suas asas embora e eu recolha sua matéria morta para os meus túneis cálidos...”
Ainda lembrava-se de uma história melancólica que ela havia sussurrado em seu ouvido sobre o amor do céu e do sol. Daquelas que são contadas por vozes melodiosas como se fossem cantigas. Daquelas que começam sem um começo e acabam sem um final. O sol havia desaparecido e os dias se tornaram nebulosos e amontoados de nuvens no dia seguinte. O céu não cessou de chorar por dias incontáveis, isso na aurora dos tempos. Quase não havia luz e calor, só o negrume da noite e o frio úmido de chuvas torrenciais. Oceanos e rios brotaram dessa era triste e lamuriosa. Um dia, o céu decidiu parar de chorar e para a sua surpresa, avistou o sol incólume na vastidão do espaço. “É preciso desobstruir o céu nublado para que paremos de chorar”, a moral seria algo desse gênero se é que havia alguma intenção naquelas palavras.
Dias e mais dias se passavam e em todas as madrugadas sem exceção, aquele barulho escapava pela cozinha interrompendo o sono do sujeito relapso. O barulho de algo se esperneando no saco plástico dentro do lixeiro congestionado se tornou um hábito tal, que o sujeito já o havia ignorado. Mal dava atenção ao fato de aquilo estar acontecendo com mais freqüência e até mesmo durante o dia. Também não lembrava a última vez que havia se sentado para comer na cozinha ou lavar pelo menos um copo para beber água. Se havia ratos perambulando livremente pela casa ele não estava dando à mínima. Pelo menos havia companhia naquela casa grande e vazia. Já que os cupins e as baratas decidiram tirar férias daquele lugar emporcalhado, o que era estranho, pois em dias comuns esse seria o próprio paraíso para os insetos carniceiros. Há alguns meses moscas e formigas também já não eram mais vistas por lá. O que ele não sabia é que na verdade esses bichos fugiram da casa, fugiram de medo. Era sufocante para eles suportar aquele fedor exótico proveniente daquela pia enlameada de lodo cáustico.
Toda a cozinha agora tinha esse bafo monstruoso que se tornou o próprio cheiro do rapaz e se atirava em todas as direções num raio de vários metros até mesmo fora das dependências da residência. De alguma forma inexplicável o rapaz era tão despreocupado e indiferente àquilo que pouco fazia diferença. Não havia percebido que o cheiro havia moldado a sua própria aparência de uma forma tão eficaz que se uma pessoa o visse por acaso, o confundiria com um monte de merda cagado repetidas vezes pelo mesmo ânus infeccionado de tanto defecar. Uma diarréia humanóide, sem exageros. Só percebeu a gravidade da situação quando enfim foi passear pela cidade depois de muitos dias de enclausuramento naquela masmorra. Os animais não se aproximavam de sua pessoa e algumas pessoas tiveram acessos de nojeira tão profundos que vomitaram umas às outras. Repulsa física no grau mais absurdo que se possa ter noção. “Basta”, disse para si mesmo.
Entrou na cozinha empunhando uma garrafa plástica de água sanitária em uma mão e na outra um facão que ele usava para se defender de cobras e outros animais quando resolvia acampar. Não sabia ao certo o porquê de ter levado aquele facão, foi mais uma atitude impulsiva, instintiva, auspiciosa. O lugar estava mudado. Era como se um nevoeiro houvesse fincado uma bandeira naquela cozinha declarando abertamente o seu domínio, como em um terreno onde as brumas assolam com eventos sombrios e histórias soturnas. Estava morno lá dentro e algo parecia borbulhar das panelas sobre a pia. Sua pele começou a coçar e seus olhos lacrimejavam em ardentes salpicos de vapor mal-cheiroso.
Enquanto jogava água sanitária e bactericida para esterilizar aqueles azulejos vestidos com uma gosma cinzenta e esverdeada, o saco de lixo se sacudia em reprovação àquela ofensa à imundície. O pavor tomou conta do sujeito relapso, mas ele caminhou cuidadosamente até o lixeiro. Tinha certeza de que havia algo se esgueirando por ali, o observando, e não era um rato. Mirou aquele bolo de lixo e até conseguiu reconhecer uma lasanha quase secular que havia jogado pela metade no topo daquela massa quase uniforme de refeições desperdiçadas. Sentiu nostalgia, uma sensação familiar e quase tão pesada quanto o amor. Esqueceu do perigo iminente perdido em memórias tenazes de uma discussão sobre uma refeição pré-pronta. De repente, um braço magricelo e peludo com garras afiadas se atirou de dentro do monturo e agarrou firmemente o pulso armado do rapaz distraído.
Um combate violento se desenrolou. A prataria se espatifava, talheres fincavam nas paredes que escorriam um líquido tão consistente quanto melaço, armários despencavam, a despensa se quebrava e o sujeito relapso lutava desesperadamente por sua vida contra aquele homúnculo esquisito e asqueroso que estava hospedado sob a pia da sua cozinha. Conseguiu se desvencilhar daqueles braços tão maleáveis quanto tentáculos e despejou todos os produtos de limpeza que encontrava espalhados pela casa sobre a torpe criatura. Mal havia notado que seu braço pendia sem vida devido ao ataque fulminante do monstro do lodo. Estava bastante escoriado e encontrava-se no chão enquanto a criatura caminhava enfraquecida devido aos produtos desinfetantes, em sua direção. Estava determinada a tomar conta daquele lugar. Para isso deveria exterminar o seu último morador.
O duende abissal expressou um sorriso tão sublime quanto um esboço de algo que o próprio Satanás faria quando se deparasse com a vitória quase certa sobre Deus. Uma felicidade tão eminente que estaria consequentemente à sombra de um vazio autodestrutivo. Estava tão entretido na véspera daquele evento tão assustador quanto sedutor, que mal percebeu os potes de tinta que o sujeito relapso e abatido arremessou em suas órbitas e focinho. Um uivo lancinante se projetava de algo semelhante a uma garganta e o sujeito aproveitou o momento para desferir-lhe um golpe com um rodo que estava encostado ali em algum lugar. Atacou furiosamente até que só restasse uma poça de lodo mutilada. Despencou exausto no chão e em meio a vários pensamentos do tipo “preciso de um balde, uma vassoura”, “como poderei pintar com um braço inútil?”, ele percebeu que antes de mais nada precisava de um banho.
Para Igor e para Lara Celi, por Igor Bacelar
Arte de Dave Mckean