Alguma coisa começou a mudar e eu
ainda não sei exatamente o quê. O céu está tomado por edificações monstruosas,
castelos fantásticos, catedrais, montanhas e elas despencam vagarosamente em
direção do solo, ofuscando a lua nesta noite trêmula e fria. As pessoas se
amontoaram na frente de suas casas para observar com pavor a exibição absurda
daquele momento singular da história da humanidade. O dia em que a realidade
escancarou suas portas, janelas, para o absurdo.
Pela primeira vez em mais de uma
década, pude ver meus vizinhos reunidos ali na porta, interagindo, fazendo
parte de uma comunidade. Reunidos pelo medo. Não um medo comum. Um medo do
desconhecido, medo das fronteiras da percepção, medo da inexatidão, medo de
perder suas certezas, medo de serem incapazes de alcançar os seus lugares
misteriosos, medo da loucura.
Eu havia entrado em uma dessas
construções há alguns anos com um amigo. Ela havia surgido onde antes era uma
casa abandonada na rua detrás. Não conseguimos compreender o que estava acontecendo,
mas sentíamos que era grandioso. Era maior que qualquer coisa que algum
indivíduo havia experienciado. A coisa
sumiu do mesmo jeito que surgiu e por muito procuramos sempre afogar estas
lembranças nebulosas. Tudo não havia passado de um delírio compartilhado.
Uma mentira provocada por
circunstâncias improváveis e uma carência por uma fantasia quimérica que só
teríamos acesso em uma partida de RPG ou um sono profundo. Os sonhos foram
feitos para morrer junto com seus sonhadores e atormentar aquele que desperta
com a memória de um universo despedaçado. Através desta rodovia é que
conduzimos por qual senda vamos nos embrenhar e em qual ponto vamos nos chocar
em qualquer ponto ocasional.
Talvez naquele dia, nós dois não
fizemos mais do que abrir um portal para que essa coisa viesse para cá. Pelo
simples fato de termos coexistido naquele pedaço de um mundo impossível, ele
próprio impôs a sua existência, esta é a sua condição. Milhões de olhos se
amalgamavam na visão apocalíptica da fusão de dois mundos aparentemente
antagônicos. A imaginação desabava sobre as noções fabricadas pelo bem comum.
Todos aguardavam a aterrissagem
daquelas construções, daqueles horizontes, relevos. Será que havia alguém
vivendo ali? A ansiedade mastigava o estômago daqueles corpos silenciosos e
desamparados. Se há alguém lá, eles estão dispostos a dividir o mundo cá
embaixo conosco? Talvez simplesmente deixaremos de existir assim como foi no
dia em que eu e meu amigo, na casa abandonada, tivemos o que por muito nos
esforçamos a interpretar como uma alucinação coletiva. A plenitude de um mundo
necessariamente reivindicaria a anulação do outro?
Havia tão pouco tempo e
provavelmente o gastaríamos simplesmente sentindo medo. Existiu um período em
que havia muito tempo e o medo, nós construímos para nos isolar do mundo lá
fora. Nada havia mudado exatamente. O que começou como uma manifestação
sobrenatural e encantadora do absoluto alastrou-se para o interior do coração
dos homens como uma chaga. Não havia espaço para não-espaços.
Eu já havia sonhado muito, todos
os dias. Já fui trocentos heróis e trocentos covardes. Já enfrentei centenas de
monstros e dezenas de amores e cada vez mais pessoas se amontoavam na frente de
minha casa para me consultar sobre alguma coisa proveniente de um lugar que
achavam que era íntimo de minhas elocubrações frequentes. Queriam ir, pelo
menos, com a ilusão de compreender o que viria dali e no meio daquela balbúrdia
mimética eu vi a esperança alva como se a lua ofuscada tivesse descendido o céu
nublado e tomado pelos rabiscos mais nefastos das mentes mais criativas. Me aproximei
de sua consternação resignada e em tuas plumas cândidas eu a fiz sorrir. No
último dia. No último agora. No último hoje de um amanhã que nunca morreria.
I.B.
Pintura de Jacek Yerka.