sábado, 20 de outubro de 2012

Ela

Ela sentou-se ao seu lado. Ninguém costumava fazer isso. Ele até que era um sujeito simpático, bem arrumado... Era bonito. De uma beleza exótica e cativante. Seus olhos amendoados eram quase hipnotizantes, sempre fixos ao seu objeto de interesse ou às vezes surpreendido por algo como se quase sempre estivesse em divagações. 

Estar ao seu lado era um exercício da curiosidade, era uma decisão a ser tomada com cuidado, pois era incômodo ou ao menos parecia, estar ali sentada próxima a ele. Por causa do silêncio, da mudez, do ar de indiferença, do charme blasé que exalava do perfume quase erótico que se desprendia dos seus poros quando por alguma ocasião ele se retirava da sala para atender o telefone ou ir ao banheiro deixando o seu rastro para trás.

"Que coisas secretas foi ele fazer", se perguntava enquanto estava ausente. Quando voltava sempre fazia questão de encará-lo nos olhos ao passo de que ele geralmente não percebia e se por alguma coincidência retribuia a visão a ela, era um simples acaso probabilístico como um dado perfeito de vinte faces arremessado em um tabuleiro onde o número exibido independe somente do desejo do seu jogador.

Enfim, a aula havia acabado e ela levantou-se prontamente no mesmo momento que ele também o fez e dessa vez parecia apressado, contrastando com a atitude preguiçosa que ele exibe na maior parte do tempo. Para que ele pudesse ir, precisava passar por ela que estava arrumando suas coisas para ir-se embora. Ela, que exibia suas belas costas praticamente nuas devido à sua blusa de última moda e uma tatuagem rente ao pescoço, aparentava estar pela primeira vez alheia à presença dele.

A aula já havia acabado e a urgência de ir possuía um efeito anestesiante que alienava a maioria das pessoas ali a uma realidade bastante diversa àquele ambiente claustrofóbico e ventilado precariamente por ventiladores de teto prestes a se aposentar por invalidez. O término da aula, os seduzia voluptuosamente com a ideia de que um mundo inteiro se revelava do outro lado da porta.

"Com licença", soou uma voz de timbre metálico e juvenil, de tonalidade suave e requintada que era clara e suficiente para se ouvir nitidamente, mas ao mesmo tempo parecia um sussurro tímido de forma a convencer qualquer um com sua mansidão. Sensual como água da chuva que escorre pelas maçãs do rosto expostas em um dia ensolarado, que molha a terra e faz germinar sementes e se torna um afluente que desemboca em outras águas.

Ela estremeceu, ficou eriçada e mecanicamente deu passagem a ele. Permanecia espasmodicamente estática enquanto ele atravessava a porta. Não parava de rir freneticamente em sua tentativa constrangida de impor-se o sigilo daquela manifestação desenfreada e vertiam-se lágrimas de seus olhos espremidos. A aula já tinha acabado. I.B.

sexta-feira, 16 de março de 2012

The Heart is a Drum Machine

Vocês já perceberam que não criamos nada? Apenas imaginamos. 
I.B.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Imitação

Foi o último do seu grupo de amigos a ter aqueles sonhos esquisitos. Já estava naquela fase de pensar que tudo era uma brincadeira sem graça ou uma conspiração, já que a sua realidade imediata era o reflexo de muitos outros episódios semelhantes e apenas ele não tinha tido os tais sonhos.

Nem mesmo os jornais puderam negar fato tão insólito. A imprensa empurrava religiosos, cientistas, místicos, adivinhos, junguianos, e as pessoas não sabiam em que acreditar. Foram tempos barulhentos envoltos em mistério.

Quando primeiro se notou o tal evento, foi naquelas plataformas virtuais de redes sociais, nas banalidades diárias comentadas pelos usuários da Rede. Em pouco tempo, todo o mundo não sabia se aquilo não passava de um truque barato que se espalhou de forma viral, uma conspiração de qualquer tipo com razões obscuras ou se era a maior coincidência de todos os tempos, teoria adotada por um ou outro cético em tantos milhões de pessoas.

Existiam algumas características que distinguiam alguns sonhos de outros e os especialistas os dividiam em grupos. Mas, isso foi uma ação desnecessária que basicamente forçava os cientistas, os religiosos, os pensadores e os mentirosos a criar uma relação racional entre os fenômenos oníricos. Os físicos e matemáticos passavam horas fazendo cálculos gigantescos. Os psicólogos estavam bastante atarefados nesses tempos, na verdade não só eles, mas uma gama de todo tipo de especialistas. Acentuei os psicólogos por causa do tal do inconsciente coletivo de Jung, que tomava proporções radicalíssimas e se espalhava muito além do seu campo de ação.

Teria a globalização gerado um processo em cadeia, uma anomalia psíquica, será que a consciência humana iria ruir, se esfacelar diante do amálgama individual provocado por esse fato sobrenatural? Será que a humanidade estava migrando para outro estágio de existência, ou estariam todos simplesmente sonhando? Qual é a pergunta certa a ser feita num momento desses? Existiam muitas questões, muitas respostas, por ora suficientes para sustentar a criatividade das pessoas, mas foi também um período de muita angústia e medo.

Tornaram-se proibidas as previsões apocalípticas do fim do mundo e mais do que nunca as pessoas temiam o dia de amanhã, apesar de muitas outras estarem em um estado de catarse constante. As igrejas e todo tipo de culto religioso estavam lotados e abarrotados de pessoas em busca de respostas. Os mais ortodoxos se tornaram mais duros em muitos casos. Antigos novos trechos de textos antigos ganhavam nova cara. O mundo como o conhecíamos passou por uma releitura desesperada, tudo por causa de alguns poucos sonhos que não pertenciam a ninguém.

Com o tempo as coisas se abrandaram e em contrapartida as pessoas passaram a não mais ter sonhos sobre suas perspectivas singulares. Tudo foi se tornando homogêneo no plano onírico. Por um breve momento esse novo evento foi recebido com bastante alarde, mas o interesse das pessoas não perdurou muito. No leito, as pessoas adotavam um uniforme descolorido e sem cheiro e a prosa e todo tipo de comunicação se tornou insípida e sem sentido. Não levou muito tempo para o tédio desfigurar todos os indivíduos.

Durou algum tempo para que aqueles três sujeitos percebessem que nem sequer levantaram o dedo para pôr em prática um dos planos mais relevantes do universo, e as coisas pareciam estar em profundo desequilíbrio antes mesmo do derradeiro cataclismo.

Foram décadas fabricando um aparelho daquele porte secretamente. Muitas vezes, manter a discrição daquele projeto provocou algumas indelicadezas sanguinolentas, se é que me entendem. Sofreram antipatias involuntárias de todas as naturezas, viveram praticamente alienados do convívio social como se as pessoas soubessem de algum segredo íntimo e tenebroso que eles guardavam. Nem mesmo os animais suportavam a presença desses pobres indivíduos.

E agora que a hora chegou, deveriam aceitar que tudo seria realizado justamente quando tudo parecia perdido, dando um ar de benevolência para o que planejaram todo esse tempo. Sentiam-se como seres divinos e misericordiosos que cessariam a dor da Síndrome da Unidade que acometeu o mundo.

Antes, parecia uma atitude mesquinha de três pessoas destinadas a algo que desconheciam o propósito. Presenteados com um sentido, uma razão, o juízo deles enfim tapava os olhos e silenciava toda a balbúrdia que desenfreadamente desfilava em seus pensamentos berrando mil justificações de tudo que observavam estudando algum significado nos eventos planetários mais distintos. "A Terra não precisa ser destruída por que abriga muita crueldade, mas por que a vida nela está definhando", concluíram em seus últimos minutos.

Devo dizer que desde crianças a ideia definitiva os convidava a assumir esse papel e foi extremamente penoso para eles aceitarem essa missão vinda de algum lugar desconhecido. Passavam períodos sem comer em aflitiva depressão na infância e as primeiras tentativas de suicídio foram antes mesmo da adolescência.

No princípio eles pensavam que era uma ideia oriunda de suas mentes nebulosas e seus egos ardilosos, mas essa teoria foi descartada quando finalmente se encontraram. Existia algo demasiadamente comum aos três para ser de fato parte deles.

Era nítida a influência de algo que não pertencia a eles mesmos. Desconfiaram de coisas inimagináveis, mas nunca suspeitaram do fato de existirem entidades cósmicas responsáveis por essa ideia irrecusável, irreversível. Com o tempo, graças às inúmeras e inventivas conjecturas que vislumbraram das poucas possibilidades de aniquilar simultaneamente todas as formas de vida na Terra, acreditavam que eles não foram os únicos a serem designados a tal tarefa.

Afirmavam que as epidemias e pandemias virais e bacteriológicas eram sintomas da existência de outros antes deles, de tentativas que nunca chegaram a cumprir o seu objetivo e pouquíssimas vezes obtiveram pleno êxito, apenas em casos isolados de algumas colônias de vida extintas ou povos isolados. Eles viam na desgraça e nas contingências mais banais um propósito homicida. Se estavam certos eu sinceramente não posso afirmar, mas essa foi a única ocasião que o planeta Terra se descuidou, não teve força suficiente para expurgar de dentro de si os arautos da destruição.

Enviou diversos avisos para alguns indivíduos, mas esses pareciam entretidos demais com algumas coisas, incrédulos talvez. Logo, forçou os seres vivos a sonhar com informações menos precisas (pois estava desgastada com as outras investidas), mas que serviam de pista. Alguns sonhos continham a localização de onde estaria algo monstruoso e destrutivo, outros apresentavam rostos de pessoas jamais vistas pelos sonhadores, mas foi tudo em vão. Posteriormente, a própria urgência do seu socorro fez com que o planeta se quedasse enfermo, alterando bruscamente uma das qualidades inalienáveis da vida terrestre: a pluralidade. O planeta antecipou a própria morte.

A Terra caiu em uma armadilha que ela mesma desconhecia. Uma armadilha engenhosamente promovida pelo acaso, por outras formas primitivas de consciência que habitam a imensidão, o mar cósmico, o breu. De alguma forma a vida se tornou autônoma demais incentivando tudo que havia sob influência tirana da Terra. Não estou aqui pretendendo fazer com que creiam que a tecnologia afastou os seres de alguma espécie de estágio natural e em decorrência disso não puderam ver os sinais, entender a linguagem. Nunca! Só existe uma linguagem e todos a compreendem seja intelectualmente ou instintivamente. A vida nunca se afastou de lugar algum e sempre esteve umbilicalmente ligada aos seus princípios. Tanto metal, quanto carne, ondas eletromagnéticas ou sinapses, tudo é parte de um grande, único e onisciente ego colossal terreno.

A Terra estava solitária, tudo estava sozinho, só existia solidão e por isso mesmo não havia nada. Foi por acaso, foi por uma série de coincidências, foi por uma improbabilidade que brotou o rascunho da inconsciência e a Terra tragou para si infinitos sóis, galáxias e todo tipo de coisa, escravizando-as involuntariamente à sua influência e por infinitas eras nem se dava conta de coisa sequer. Até que uma ideia germinou.

O esboço da vida procriou-se naquele microcosmo, uma partícula minúscula invisível para qualquer aparelho sequer imaginado, intangível, sem forma, que é, simplesmente. O próprio universo em si. Espírito. Foi assim que nasceu a vida e ela só existia nas mediações da Terra. Agora nada restou em meio a tantos sonhos perdidos. As mãos, agora vazias e adimensionais, em um esforço ininterrupto de terem-se envolvidas em afago. Um pesadelo terno e cordial que emudece carinhosamente a mais promissora das insinuações. Só sobrou nostalgia.

I.B.